Nos tempos da peste
Crítica do espetáculo Poema,
do Grupo do Ator Nu, do Recife

Edjalma Freitas no espetáculo Poema. Foto Rogério Alves /Divulgação

A peste tem muitas facetas. Todas horrendas, sabemos com a memória bem acesa pelos óbitos da pandemia. Quando a arte transborda do real pode amplificar o registro de um tempo, expondo em combinações complexas as dores e precariedades da existência. Na fase mais crítica da pandemia de Covid-19, o poeta, jornalista e gestor Antonio Martinelli criou e publicou em São Paulo, em 2020, sua Tetralogia da peste [+ dois tempos, uma cidade], pela n-1 edições. Ele construiu versos inspirados na calamidade que parou o mundo. É uma escrita sôfrega e inflamada, que percorre geografias e sugere imagens de convulsão das cidades diante das perdas.

Do Recife, o ator Edjalma Freitas foi instigado pelo texto e articulou uma equipe para criar um espetáculo virtual em 2021. Poema (um título muito genérico, que não traduz o espírito da coisa) foi erguido de forma virtual nos piores momentos da incerteza provocada pela crise sanitária e agravada no Brasil por um governo genocida.

A dramaturgia da peça está calcada nos poemas Brasilândia, Zona Norte; Calvário e O Eco de Bérgamo. As palavras ganharam uma força diferente no palco (antes na telinha da virtualidade), que tem a ver com compartilhamentos. Muitos olhos dividindo as inquietações do instante. Assisti ao espetáculo em duas oportunidades on-line, em 2021, e em duas sessões em 2022, no Itaú Cultural.

A pulsação do medo, dos fantasmas, do isolamento e do desejo quase desesperado de viver são sustentados pela luz de Luciana Raposo e pelas sonoridades produzidas por Tarcisio Resende e Pedro Huff, que trabalham os climas da interpretação. Há densidades, mas elas vão se distanciando no retrovisor da memória do vivido.

O vírus acentuou a fragilidade da vida humana. Edjalma Freitas busca transpassar essa vulnerabilidade na toada das palavras de Martinelli. O corpo impregnado da cal desses tempos investe na carga dessas tragédias. Algumas vezes o peso se restringe às palavras, quando parece que o corpo ainda procura o devir das cicatrizes que combinem com a gravidade dos episódios expostos.

Sozinho no palco, o ator narra as desgraças, a partir da convulsão de três cidades, uma do Brasil, outra do Equador e a terceira da Itália. Nas partituras corporais possíveis para traduzir o horror, Edjalma avança por Brasilândia, contaminada por outras pragas: do açoite da herança escravocrata às marcas da exploração bandeirante nos degraus da desigualdade.

As visões indignadas do diretor teatral Quiercles Santana estão na cena, com o registro da obstinação em fazer arte, mesmo em condições precárias ou adversas. E disso tira fios para construção de linguagens. A diretora de cinema Tuca Siqueira também participou da criação do experimento na versão on-line, nos idos de março de 2021. 

O texto é de Antonio Martinelli e a direção de Quiercles Santana 

O ato Calvário conta o que aconteceu na portuária Guayaquil, no Equador. “A cidade que abandonou seus doentes em cima das macas, seus mortos, em cima das mesas. [carnes para urubus nas praças públicas]”, nos versos de Martinelli.

A escuta do colapso em Guayaquil é contundente. As imagens desconcertantes suscitadas pelo texto se expandem para Manaus e outros territórios onde houve falta de ar. As feridas expostas pelos sons das palavras escancaram a miserabilidade humana.

“Toda hora é de luto em Guayaquil”, marca uma batida no tempo quase musical. Com pequenas nuances de leituras, se avulta o imponderável diante da morte. Mas não há imprevisibilidade que ampare a incompetência e a maldade na incumbência de gerir situações de calamidade púbica. 

O cenário de Guayaquil desse momento lá, – no auge da pandemia, com suas assombrações e tempos suspensos – remete para muitos Brasis. De muitas vítimas como os Yanomamis, alvos do desprezo dos vermes inescrupulosas que ocuparam o poder e anularam vidas na escolha do uso das verbas públicas. Fome e peste como dados da necropolítica.

Peça tem três pequenos atos. Foto Rogério Alves / Divulgação

No poema O Eco de Bérgamo, Martinelli expõe sua intimidade com as artes visuais, avançando  por muitos séculos da arte ocidental, mas dificulta para o leitor não tão próximo da linguagem. O autor cita pinturas famosas como O Nascimento de Vênus, de Botticelli; A Última Ceia, de Leonardo da Vinci e A Balsa da Medusa, de Théodore Géricault, para falar dos efeitos da pandemia na cidade italiana.

O eixo escolhido pelo escritor para o roteiro em Bérgamo é a série Espacios Occultos, do espanhol José Manuel Ballester. O pintor e fótógrafo madrilenho apagou as figuras humanas das obras. Ou como disse o crítico de arte e professor espanhol Francisco Calvo Serraller, despojou as obras dos seus personagens e de “todas as suas ações miseráveis ou desesperadas”, mantendo as paisagens do fundo da tela.

O ato de Bérgamo é mais espinhoso para levar ao palco. São muitas obras apontadas, de Cristo Crucificado, de Velázquez, passando por Os Fuzilamentos de 3 de maio de 1808, de Goya, a Guernica, de Pablo Picasso, além das já mencionadas nessa crítica. O embaralhamento das narrativas e definição das estratégias dramáticas ainda se mostram um desafio para a equipe.

A peça faz um registro da pandemia, numa percepção de dentro do tempo histórico e se se posiciona contra a política pública criminosa do governo nazifascista e de seus iguais pelo mundo. Na cena, o mais frágil gesto à expressão mais virulenta transbordam de ação política. Os aliados da peste têm as mãos sujas de sangue nas mortes. Poema reforça o coro: “Sem anistia”.

FICHA TÉCNICA
Texto: Tetralogia da Peste [ + dois tempos, uma cidade]
Autor: Antonio Martinelli
Direção: Quiercles Santana e Tuca Siqueira (on-line)
Elenco: Edjalma Freitas
Cenografia e figurino: Luciano Pontes
Iluminação: Luciana Raposo
Trilha sonora: Henrique Huff e Tarcísio Resende
Provocação corpo/voz: Henrique Ponzi
Vídeo (computação gráfica): Pingo
Designer gráfico: Hana Luzia
Fotografia: Rogério Alves
Produção: Cia do Ator Nu
Duração: 50 min
Indicação etária: 16 anos

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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