Da primeira vez que assisti ao espetáculo A Doença do Outro, idealizado, escrito e protagonizado por Ronaldo Serruya, com direção de Fabiano Dadado de Freitas, me perturbou a transição rápida entre o relato e o apelo para a festa, que encerra a apresentação. Cerca de um ano depois fui lá de novo (reassisto, quando a peça me diz muito), na reestreia, desta vez no auditório do Sesc Ipiranga, em São Paulo.
Faço comparações de memória com a outra sessão no Centro Cultural São Paulo, naquela estrutura com a que é exibida agora. Confesso que sinto falta da profundidade espacial do porão e dos elementos simbólicos que o lugar suscita. Serruya disse que pensou na montagem para ali mesmo, naquela sala miúda do Ipiranga ou algo parecido. A Doença do Outro integra a programação do Teatro Mínimo, projeto criado em 2011 pela equipe do Sesc Ipiranga. Bem, o espaço é importante, mas não é o principal.
Serruya expõe os estados – as cores e as tensões – da sua convivência com o vírus HIV. Para falar desses percursos com pessoas de uma plateia supostamente empática – mas que provavelmente nem de longe sentiu na carne o estigma da doença – o ator se derrama em uma generosidade atroz.
Cada um de nós se distingue dos demais por suas qualidades, encaradas positivamente ou não. Algumas condições são temporárias. Aliás, todas, como salienta o artista, mas que às vezes duram mais tempo e dão a sensação de perenidade, de ser mais do que uma circunstância. É bonito como Serruya nos lembra disso. Do imponderável. Ele, Fabiano Dadado de Freitas e equipe, fazem um corte cirúrgico na existência.
A Doença do Outro é um espetáculo desconfortável. Que vai incomodando aqui e ali; nas nossas certezas de bem-estar, e nas armadilhas de poder que o capitalismo criou com as fantasias de proteção, imunidade, impermeabilidade. O dicionário indica que proteção vem do latim protectio.onis, “esconder”; a pensar.
Tudo está por um triz. Acaso, coincidência, acidente, os acontecimentos marcantes têm um teor disso aí. Viver é correr riscos. O conforto é traiçoeiro, descobre quem se deslocou.
Com coragem o ator abre passagem na sua história para expor seu corpo político. Um corpo pleno de vida que atua no presente, fala, ouve, subverte, performa, faz conexões filosóficas, celebra, dança, se revolta, se indigna, que movimenta as circunstâncias.
Na palestra-peça-perfomance, Serruya convoca os textos de Susan Sontag e os conceitos da socióloga Patricia Hill Collins, além de imagens que que entraram pelos nossos olhos, adubaram o terreno da subjetividade vindas de poderosas máquinas de fazer gente como o cinema e a música.
Em Doença como metáfora, a escritora norte-americana Susan Sontag analisa as fantasias sentimentais ou punitivas quando se passa para o reino dos doentes; os estereótipos e as estigmatizações a partir da linguagem; enfim, as metáforas lúgubres desse lugar e a libertação do seu jugo. O livro completou 40 anos em 2018 e foi escrito no torpor da descoberta de um câncer em 1976. Naquela época, a luta contra o câncer era bem mais difícil.
Sontag refletiu nesses escritos sobre o poder da linguagem, as palavras que tramavam um jogo perverso como presença do Mal no mundo. Metáforas que praticamente naturalizavam os aspectos negativos de determinadas enfermidades ao longo da história da humanidade.
A DOENÇA É A ZONA NOTURNA DA VIDA, uma cidadania mais onerosa. Todos que nascem têm dupla cidadania, no reino dos sãos e no reino dos doentes. Apesar de todos preferirmos só usar o passaporte bom, mais cedo ou mais tarde nos vemos obrigados, pelo menos por um período, a nos identificarmos como cidadãos desse outro lugar.
Susan Sontag
A ensaísta analisa especificamente duas patologias, a tuberculose e o câncer. A tuberculose se encontra associada ao romantismo, aos sentimentais e apaixonados, forjando um imaginário quase lírico. Já o câncer ocupa no livro um lugar mais tenebroso, de invasão que arrasa e destrói tudo por dentro. Atualmente o câncer não ostenta o peso de outras épocas.
Uma década depois, Sontag direciona suas reflexões para as metáforas associadas à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, AIDS ou SIDA. O ensaio Aids e suas metáforas foi publicado num momento em que ter HIV era encarado praticamente como uma sentença de morte. Essa realidade mudou com as descobertas da ciência e atualmente uma pessoa portadora de HIV pode ter a mesma expectativa de vida do que alguém que não tenha o vírus.
Patricia Hill Collins desenvolveu o conceito de imagens de controle para falar da feminilidade de mulheres negras. Ou melhor, para detectar os elementos operacionais de dominação para o exercício da violência simbólica. Da manipulação dentro do sistema de poder no padrão ocidental branco eurocêntrico. Mas as articulações podem ser aplicadas a outras realidades. Como já disse a escritora ativista Winnie Bueno, são scripts de como determinados grupos devem se portar.
Para mostrar a força das imagens de controle, a peça-palestra-perfomance projeta na cena trechos do filme Filadélfia (1993) e outras para atacar essas representações do que seria viver com o vírus.
A Aids já chegou à sua quarta década, mas as metáforas sombrias, que remetem à condenação, prosseguem sua função de estigmatizar e discriminar. A Doença do Outro rechaça essa posição que continua sendo alimentada, acerca das enfermidades.
Serruya chega à cena usando uma grande máscara de gás. Convoca as pensadoras para fundamentar sua argumentação na peça-manifesto ou palestra performativa ou conferência artística. Traça uma breve história social em torno da Aids e faz as conexões com o diagnóstico recebido em 2014. Situa seu corpo no campo dos que são considerados dissidentes e/ou subalternizados.
Fala das heranças, de Fucô (adorei a grafia, Dadado), de Cazuza, etc. Acena que honra o legado de luta, mas celebra a vida em cena.
Projeta, expõe, sacode os panfletos SILÊNCIO = MORTE. Não dá para calar. E ele pede para a plateia repetir coletivamente a palavra Aids, Aids, Aids. Falar, ouvir. É preciso registrar em bom som a sobrevivência dos vaga-lumes.
O diálogo da videoarte com a cenografia (trabalhos assinados por Caio Casagrande, Evve Avila e Mauricio Bispo) assume um papel preponderante nesta montagem. O videografismo ocupa as projeções sinalizando tempos, contribuindo nas pulsações.
Estamos vivos, apesar da mira. O artista destaca que um corpo portador do HIV é um corpo perigoso, recusado, fracassado e sigiloso para a maioria dos mortais. Erguer essa peça foi uma forma de recusar o silêncio e a culpabilização.
Dadado lembra no programa do espetáculo que derrubamos no voto um governo comprometido com a necropolítica. Isso muda muito.
Sinaliza caminhos que é preciso dizer de si para dizer do mundo. A autoescritura como ativismo político. Para afrontar a construção de terceiros, para erguer imagens positivas sobre si, por meio de uma autorrepresentação.
O teor festivo desse manifesto pela vida ganhou outras camadas para mim. Uma pandemia no meio, um governo massacrante que já vai tarde. No entanto, é preciso cantar, dançar. “Apesar de tantas mortes no caminho: passado presente e futuro, porque as mortes nunca cessam” pontua o autor-performer. Mais que nunca é preciso contagiar a cidade de alegria. Isso também é um gesto revolucionário.
Ficha técnica:
Idealização, Texto e Atuação: Ronaldo Serruya
Direção: Fabiano Dadado de Freitas
Cenografia: Evee Avila e Mauricio Bispo
Figurino: Luiza Fardin
Luz: Dimitri Luppi
Trilha Sonora Original: Camila Couto
Operação som e vídeo mapping: David Costa
Assistente e operação de luz: Paloma Dantas
Videoarte: Caio Casagrande, Evve Avila e Mauricio Bispo
Produção: Corpo Rastreado
Serviço
A Doença do Outro
Onde: Sesc Ipiranga (Rua Bom Pastor, 822 – Tel. 3340-2000)
Duração: 60 minutos
Classificação indicativa: 14 anos
Quando: Até 11 de dezembro de 2022
Sextas, 21h30; sábados, 19h30; domingos, 18h30.
Ingressos: R$ 30,00 (inteira); R$ 15,00 (meia); R$ 9,00 (credencial plena)
Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.