Marco Nanini subiu ao palco do Teatro do Parque, na Boa Vista, região central do Recife, para abrir a programação do 23º Festival Recife do Teatro Nacional com o espetáculo Traidor, de Gerald Thomas, na quinta-feira, (21/11), com mais duas sessões nos dias seguintes. Leia como foi a abertura. O primeiro impacto dessa montagem é o cenário, uma representação visual pesada do caos e da fragmentação presentes na dramaturgia e na encenação. Concebido por Fernando Passetti, o palco se apresenta como um mundo em ruínas, repleto de escombros e objetos desconexos que refletem o estado mental conturbado do protagonista. O elemento mais impactante é um boneco gigante amarrado. Uma metáfora visual do personagem aprisionado em seus próprios delírios? De todo modo, o ator não se relaciona com o Naninão e em algum momento comenta. “Não consigo (olhar). É muito fake”,
Espalhados pelo palco, encontram-se restos de colunas de concreto, adereços variados, inclusive uma cafeteira largada, que o protagonista diz não ter nenhuma utilidade na cena e que até debocha que deve ser teatro “moderno”. A iluminação transforma constantemente a percepção do cenário, alternando entre focos específicos e iluminação geral, contribuindo para a sensação de instabilidade. Este panorama amplifica a sensação de um mundo em ruínas.
Tudo parece tão confuso. Tem obras assim. Não sei por onde entrar. Me chamam, mas não me pegam. É a terceira vez que assisto Traidor, título que intriga e não entrega. A primeira vez foi na estreia no Teatro Antunes Filho, do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, com todas aquelas pedras cenográficas no caminho; uma segunda vez no mesmo teatro, com algumas alterações na montagem. E desta vez no Festival Recife do Teatro Nacional, onde o cenário fica mais concentrado. Esse festival bancado pela Prefeitura do Recife quase foi extinto; resgatado ano passado para o bem da cultura, pois é um evento muito importante.
Com sua metralhadora falatória, o protagonista pula do mundo em guerra, com as bombas que explodem em Gaza, para as redes sociais que estilhaçam imagens. A dramatugia/encenação de Thomas brinca com a ideia de que a narrativa tradicional está morta. Ele estica até esgarçar a convicção de que o teatro contemporâneo não comporta enredo e personagem convencionais. Em fragmentos desconexos, aciona o fluxo de consciência de um homem beirando à loucura, refletindo a cacofonia do mundo atual.
Na construção do protagonista, observa-se um vasto painel de referências culturais e literárias. Do vulto de Samuel Beckett ao niilismo do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, o personagem central incorpora elementos do enigmático Próspero, o mago desterrado da obra-prima shakespeariana A Tempestade, absorvendo sua solidão e o domínio sobre um reino que existe apenas na imaginação. Paralelamente, ele ressoa as angústias de Joseph K., o emblemático anti-herói de Kafka em O Processo, enredado em uma teia de absurdos burocráticos e dilemas existenciais. A característica marcante do cabelo desgrenhado do renomado maestro britânico Leopold Stokowski (1882-1977) é incorporada ao personagem como uma nota da genialidade caótica e da excentricidade artística.
“Roubei de Shakespeare. Sim, do Próspero de A Tempestade. Mas essa voz é minha. Até certo ponto, claro. Somos quem somos, até certo ponto. Isso também não é meu. É… de Kafka. Como veem, nada em nós é totalmente original. Mas nada é inteiramente falso também. Estamos no meio. Do quê? É assim! O Século 21. Bem-vindos a essa zona!”, solta o personagem.
Em meio à narrativa ficcional, Nanini, que atua em uma cadeira de rodas, explica ao público que ainda se recupera de uma cirurgia para a reparação do menisco – estrutura interna do joelho, – e que faz o seu melhor para que o público goste do espetáculo.
Do espetáculo, há quem goste, há quem não. Mas da atuação do Nanini, da dignidade do seu trabalho, é praticamente uma unanimidade. O que fica ao final é uma comovente ode à arte do artista da cena.
Em sua construção dramatúrgica, Thomas tece fios de memórias, observações mordazes e desabafos, entrelaçados com referências à cultura pop e à publicidade. Essa estrutura aparentemente caótica revela-se como um meticuloso exercício de autorreferência. As vivências do autor – desde sua estadia em Nova York e a angústia burocrática da imigração até suas passagens por Punta Cana e elucubrações sobre a realidade brasileira – são destiladas em um mosaico autobiográfico.
Na última parte de Um Circo de Rins e Fígados, de 2005, escrito e dirigido por Thomas, Nanini encerrava a peça com uma reverência à sua profissão: “Quando dizem que o ator não se emociona, estão errados. A gente se emociona sim”. Esta frase retorna em Traidor: “A gente se emociona, a gente se emociona sim.” A repetição desta afirmativa permeia diversos momentos da apresentação, até que o protagonista admite: “Gente, vamos ser honestos. Sério. Eu vou parar com essa coisa de dizer ‘A gente se emociona sim’. É truque. É bobagem. É efeito. Sim, sim, a gente se emociona sim, mas não precisa ficar afirmando isso na frente das crianças não”.
É provocação em muitas escalas, essa dramaturgia erguida a partir de fragmentos, como se o personagem fosse um roteiro do Instagram, onde imagens passam rapidamente sem conexão aparente entre si. Nesta estrutura, o encenador espalha sua erudição pelo palco, transitando de um assunto a outro, citando artistas e conceitos na velocidade de um feed de rede social. É como se Thomas tivesse mergulhado na piscina do conhecimento, desafiando o público a acompanhá-lo neste fluxo vertiginoso de informações.
A crítica ao mercado e ao capitalismo neoliberal é elaborada através de cenas em que o protagonista faz publicidade de salsichas vestido de mulher. Enquanto alguns podem considerar esses quadros hilários, eles também podem ser percebidos como irritantes, devido às falsas inocentes exaltações fálicas embutidas na publicidade. Em um momento, o ator na propaganda da peça declara: “É com chucrute no bumbum é que se vai… É isso aí…”. Em outra intervenção comercial, ele se rebela: “Não vou, não vou e não vou fazer mais um desses comerciais ridículos! Eu descobri tudo! Você acha que vai me tapear com chucrute no bum bum? Ora? Essa linguiça não tem nada a ver com Chico Mendes e nem com Punta Cana. Tem a ver com… Tira isso tudo de mim, tira essa cozinha daqui…”
Estas cenas satirizam a indústria publicitária e questionam o papel do ator neste sistema, criando um contraponto irônico à afirmação recorrente sobre a emoção do ator.
O humor, a ironia e o nonsense são oferecidos e alguns identificam e compram. A gravidade dos assuntos apontados se diluem na velocidade do processo de desumanização causado pela tecnologia e pela constante exposição a tragédias mundiais. Com isso, a peça escancara nossa relação com a informação na era digital, onde o Google substitui a leitura aprofundada e as redes sociais moldam nossas percepções. O protagonista, em um momento, exclama: “O Instagram é pior do que as fogueiras da Inquisição! O Facebook é pior do que o Terceiro Reich!” – uma hipérbole talvez, mas que carregada desse sentimento de alienação na era digital.
Afirmações seguidas de negações dão o tom da montagem. E que ninguém busque uma salvação. “Nada nessa história faz sentido. Nada. O corpo da minha mãe não foi jogado ao mar. (…) Não havia barco onde morávamos. Não morávamos no litoral. Não tinha praia”, aponta o personagem.
Quatro atores coadjuvantes trabalham como elementos cênicos vivos, amplificando a atmosfera surreal da peça. Apollo Faria, Hugo Lobo, Marllon Fortunato e Wallace Lau forma o coro que executa uma variedade de ações performáticas em apoio ao monólogo de Nanini.
Suas intervenções são diversas: iluminam o protagonista com lanternas, manipulam guarda-chuvas, simulam cenas de guerra, realizam coreografias em nudez e executam pantomimas. Essas ações tem intenção de preencher espaços físicos e metafóricos da peça.
Complementando o elenco presencial, a voz em off de Fabiana Gugli interpreta uma diretora imaginária, funcionando como uma espécie de consciência externa ou alter ego do protagonista ou do diretor.
Embora os elementos adicionais em Traidor representem uma escolha estética e conceitual deliberada, é plausível argumentar que a peça poderia funcionar bem como um monólogo, prescindindo do cenário grandioso e do coro de atores. A dramaturgia autorreferencial de Thomas, aliada à presença magnética de Marco Nanini, potencializada pelo uso eficiente do ponto eletrônico, e realçada pela iluminação exuberante característica do diretor, seria mais que suficiente para sustentar a obra.
A estética experimental de Gerald Thomas, que causou furor nas décadas de 1980, 1990 e 2000, revela-se paradoxal em Traidor. Sua estrutura e estética podem parecer nostálgicas, um teatro particular que não dialoga plenamente com as sensibilidades atuais. Talvez seja justamente nessa aparente singularidade que resida seu fascínio peculiar. O texto enigmático de Thomas, permeado de referências particulares e divagações existenciais, serve como um veículo para algo mais profundo: a revelação da humanidade de Marco Nanini.
É nos interstícios entre o personagem e o ator que Traidor encontra sua força. Nanini, figura icônica do teatro, cinema e televisão brasileiros, traz para o palco não apenas sua técnica apurada, mas também fragmentos de sua própria essência. A ambiguidade entre o real e o fictício, característica intrínseca do teatro, é aqui elevada a um novo patamar, convidando o público a um exercício de percepção sobre onde termina o personagem e onde começa o homem.
Um episódio emblemático na estreia no Teatro Antunes Filho, do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, ilustra perfeitamente essa dualidade. A queda acidental de Nanini no palco, um momento potencialmente catastrófico, transformou-se em uma demonstração pungente de sua grandeza profissional. Sua determinação em retornar e concluir o espetáculo transcendeu a mera atuação, tornando-se uma afirmação poderosa sobre resiliência e compromisso com a arte. Leia sobre o incidente.
Enfim, Nanini é um grande ator que potencializa qualquer material com o qual trabalha. Nesta 23ª edição do Festival Recife do Teatro Nacional, ele é acarinhado por seus conterrâneos, sendo ele mesmo recifense que ainda na infância se mudou para o Rio de Janeiro. Sua presença no festival enriquece o evento e reafirma sua conexão com suas raízes pernambucanas.
Ficha técnica:
Texto, direção e concepção visual: Gerald Thomas
Iluminação: Wagner Pinto
Cenografia: Fernando Passetti
Figurinos: Antonio Guedes
Direção musical e trilha sonora: Alê Martins
Direção de movimento: Dani Lima
Assistente de direção: Samuel Kavalerski
Direção de produção: Fernando Libonati
Coordenação de produção: Carolina Tavares
O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica