Mãe, eu sou você
Crítica de Azira’i

“O tempo indígena é o tempo circular. O tempo da natureza. E ela não anda pra frente. Ela anda sobre si mesma, “pra trás” nesse sentido”.

Daniel Munduruku, escritor e professor

Zahy Tentehar em Azira’i. Foto: Annelize Tozetto

O escritor e professor Daniel Munduruku escreveu que “o tempo indígena é o tempo circular. O tempo da natureza”. E que o passado “é o tempo da memória”. Zahy Tentehar, atriz e dramaturga indígena, nos dá a ver essa percepção de tempo a partir da relação com a mãe, Azira’i, título do espetáculo que lhe rendeu o prêmio Shell de melhor atriz, sendo essa a primeira vez que uma indígena recebe esse reconhecimento. A montagem estreou no Rio de Janeiro no ano passado, passou pelo Festival Recife do Teatro Nacional, fez temporada em São Paulo e participou do Festival de Curitiba.

Tendo como subtítulo “Um musical de memórias”, o espetáculo parece só ter sido possível graças a esse tempo circular a que se refere Munduruku, que é o da natureza, dos ciclos, do amadurecimento, da sabedoria de revisitar o passado entendendo que ele se faz memória. Tendo, senão curado, apaziguado as emoções, não se deixando cair nas armadilhas dos julgamentos.

Azira’i confunde os estereótipos, conflui possibilidades de existências, expande os imaginários e não se dispõe a fazer concessões, respeitando quem se é. O espetáculo se põe de pé a partir da dignidade que é assumir a autoria da própria narrativa e compartilhá-la em sua inteireza, explicitando dores e contradições, mas esmiuçando a beleza nos detalhes, seja na possibilidade de imaginar um céu estrelado, na contação de uma história sobre o macaco e o tatu no terreiro, na voz doce e límpida de uma mulher que canta um lamento, no riso que vem de uma suposta bobagem do cotidiano.

Para uma artista indígena, colocar-se em primeiro plano, neste caso como dramaturga e atriz, é assumir a dianteira da própria representação, em vez de aceitar aquelas formuladas por terceiros, muitas vezes preconceituosas, fantasiosas, românticas, construídas ao longo dos séculos de colonização. Estar no palco se constitui como uma atitude política, que reivindica visibilidade e pertencimento ao teatro, ao tomar as decisões sobre quais histórias se deseja contar e a partir de quais perspectivas.

A arte – e o teatro, em sentido expandido – estão imbricados na existência indígena: nos rituais, nos cantos, nas danças, nas pinturas, na contação de histórias. Mas é importante reconhecer, para que nunca se repita, que o teatro, como o conhecemos a partir do contato com o colonizador, foi instrumento de subjugação dos indígenas no Brasil. Para o escritor, ambientalista e tradutor indígena Kaká Werá, o teatro foi tão maléfico aos povos originários quanto a guerra e as doenças trazidas pelos que aqui chegaram. No livro Teatralidade do Humano, publicado em 2011, Werá afirmou: “O teatro desestruturou cosmovisões ancestrais, valores ancestrais, valores sagrados. Ele desestruturou o modo de pensar e o modo dos índios (sic) se relacionarem com a realidade, em nome de uma suposta verdade maior. Isso foi chamado de catequização. Então, a guerra não foi pior que o teatro”.

O trabalho de Zahy Tentehar e de outros artistas indígenas pelo país afora, ao se apropriarem do espaço do teatro, principalmente assumindo a construção dos discursos, nos mostra que essa arte pode se inserir nos esforços decoloniais, na visibilização de cosmovisões estruturadas noutras bases, que não a da exploração. O teatro precisa ser cada vez mais indígena, para que seja de todos.

Zahy, como atriz e dramaturga, assume a dianteira da própria narrativa. Foto: Annelize Tozetto

Em Azira’i, especificamente, a presença de Zahy traz uma camada além: a artista é nordestina, nascida na Aldeia Colônia, na reserva indígena Cana Brava, no Maranhão. O historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, autor do livro A invenção do Nordeste e outras artes, escreveu sobre a invisibilidade dos povos indígenas na região em artigo para o Diário do Nordeste, publicado em 23 de maio de 2023. O autor explicita o quanto, na região, temos vivenciado os processos nomeados de emergência ou ressurgência étnica, “ou seja, grupos que negavam ou não tinham consciência de sua descendência étnica, de sua origem étnica, e que passam a se reconhecer e se identificar com essa descendência e com essa origem”.

De acordo com dados do IBGE divulgados em 2023, a região Nordeste concentra a segunda maior população indígena do país, 31,22%, ficando atrás apenas do Norte, com 44,48%. Ao mesmo tempo, como aponta Alburquerque Júnior, o Nordeste, local onde começou o genocídio dos povos originários – antes mesmo que o Nordeste fosse “inventado” – é considerado esse lugar berço da miscigenação entre brancos, indígenas e negros, o que já sabemos que aconteceu tendo como contexto a violência em todos os âmbitos, dificultando a sobrevivência e a manutenção das tradições dos povos originários.

Zahy Tentehar carrega esses dois marcadores, indígena e nordestina, mas consegue friccionar os estereótipos relacionados a ambos, não se deixando enquadrar em caixinhas. Faz isso com inteligência e destreza, numa encenação que nos envolve pela sensibilidade. No espetáculo, a atriz mostra como, em seu cotidiano, as tradições e a cultura indígenas estão organicamente imbricadas com as vivências de alguém que mora em Copacabana, toma suco detox e come bofe frito, fala por chamada de vídeo com o filho que mora na Inglaterra com o pai, um inglês que ela conheceu no Tinder, e se espanta mais com a música preferida tocando na rádio, um forró da banda Magníficos, do que com o motorista de aplicativo que pergunta se ela é indiana.

Ao invés de ressaltar sua ida para o Sudeste, decide enfatizar as migrações que precisou fazer dentro do seu próprio território para que pudesse, de acordo com o pensamento do pai, aprender a ser do jeito que ele tinha idealizado. De modo bem-humorado, resolve assinalar o machismo desse pai na sociedade patriarcal nordestina, ao não se conformar com uma “traição”. A cada cena, Zahy compartilha conosco sua visão de mundo, não deixa passarem suas críticas impunemente, mas faz isso com generosidade e leveza. Em nada nos remete ao discurso aguerrido, militante, embora instaure seu modo particular de ver as coisas. O espetáculo se expande assim em amplitude temática: além da relação com a mãe, fala das influências culturais a que os indígenas são submetidos, de educação, de relação com a natureza, com o sagrado, de suas vivências na cidade.

No terreno das não concessões do espetáculo, talvez a mais significativa diga respeito ao ze’eng eté, língua do tronco tupi-guarani. Em alguns momentos, Zahy Tentehar fala em ze’eng eté, sem traduções, assumindo a possibilidade de que a comunicação não se limite ao campo do entendimento formal dos significados, mas da importância de ouvir essa oralidade, de respeitar a língua do outro e de compreender parte das violências linguísticas a que os povos originários foram submetidos. Zahy é delicadeza quando ensina os espectadores, a partir da repetição, a língua ze’eng eté. Rimos diante da dificuldade da pronúncia das palavras ditas pela atriz e da sua expressão de “ih, não tá lá essas coisas, mas vamos tentar de novo”. Depois de alguma insistência no exercício da repetição, a plateia engajada, um coro em ze’eng eté, ficamos surpresos com a nossa própria capacidade, ao que recebemos o elogio da professora.

Algumas cenas do espetáculo são faladas em ze’eng eté e a atriz tenta ensinar um pouquinho da língua ao público. Foto: Annelize Tozetto

A partir dessa aula, uma pedagogia que se ergue no campo do afeto, a dramaturgia impulsiona no espectador o confronto com a violência do processo de educação dos indígenas na língua portuguesa. Zahy conta que, da primeira vez em que entrou numa sala de aula, não sabia o porquê de as crianças estarem sentadas em cadeiras e não entendia o que a mulher lá na frente dizia. Como não conseguia corresponder às expectativas daquele ensino, recebeu orelhas de jumento e foi obrigada a ficar em pé, virada para a parede. Por que ninguém gosta do jumento? Ela gostava.

Minutos antes, já tinha nos deixado aturdidos quando, depois de revelar que ze’eng eté significa “fala verdadeira”, perguntou o que significa “essa outra língua que eu tive que aprender para me comunicar com vocês”. Silêncio na plateia.

A dramaturgia de Azira’i, assinada por Zahy em parceria com Duda Rios, é tramada como um tecido cru num tear manual. Em determinado momento, percebemos o quanto o texto é hábil ao incentivar a partir das palavras a imaginação do espectador, ao lidar com a matéria do cotidiano e tecer relações que se complementam. É uma operação laboriosa de uma dramaturgia que vai se construindo como uma trama, cada linha apoiada na seguinte, até que o tapete encanta os olhos pela sofisticação alcançada na simplicidade. A direção do espetáculo é assinada por Duda Rios e Denise Stutz.

A mãe, a primeira pajé de Cana Brava

A professora, poeta, ensaísta e dramaturga, Leda Maria Martins, diz que “a concepção ancestral africana inclui, no mesmo circuito fenomenológico, as divindades, a natureza cósmica, a fauna, a flora, os elementos físicos, os mortos, os vivos e os que ainda vão nascer, concebidos como anelos de uma complementariedade necessária, em contínuo processo de transformação e de devir”. Tomo emprestada essa concepção de ancestralidade africana ao me deparar com Azira’i, primeira pajé da reserva de Cana Brava, no Maranhão, através de sua filha mais nova, Zahy. A montagem promove essa compreensão de que todos esses elementos nos constituem em suas singelezas e complexidades.

Zahy conta como era a mãe, Azira’i. Foto: Annelize Tozetto

Azira’i tinha seis filhos quando perdeu o marido. O sogro, cacique, deu a nora para que um homem que vinha do Piauí se casasse com ela. O pai, como chama Zahy, tinha uma mágoa no coração e os dois combinavam em muitas coisas, inclusive no silêncio e na cegueira, que os acometeria na velhice. Azira’i, cantadora e contadora de histórias, pajé com o poder da cura, tinha uma perturbação com a qual não sabia lidar e isso se refletia em episódios de violência com a filha, Zahy. O primeiro deles é narrado de forma mítica: a mãe tira a criança de casa e a deixa do lado de fora; a criança chora, enquanto a mãe canta seus lamentos. Mais tarde, a criança não está mais lá. No meio da mata, ela acorda banhada pela luz da lua cheia. Daí vem o seu nome, o nome da lua, Zahy.

Os episódios seguintes são atravessados pela violência física, nos quais a mãe bate na criança até chegar à exaustão física e emocional. Aos 15 anos, Zahy enfrenta a mãe, perguntando se ela queria mesmo bater na filha. Apesar da tensão que se instala na plateia nos momentos em que Zahy está narrando esses episódios, a dramaturgia passa ao largo da culpabilização, do julgamento, da vingança, e isso interfere na relação que nós, espectadores, estabelecemos com aquela personagem. Assim como Zahy, não julgamos o comportamento de Azira’i, e isso é muito bonito, inclusive pela desmistificação da mãe, por sua humanização.

Nessa trama, o passado é visto como memória, ajudou a nos fazer quem somos, mas não necessariamente nos determina. Há um distanciamento nessa autoficção que se evidencia como respeito à história do outro, que foi do jeito que foi, do modo como poderia acontecer diante das circunstâncias da vida. Nesse movimento de ancestralidade que é circular, Zahy reencontra a mãe, mas também a si mesma, como filha e como mãe de um menino. Ao longo do espetáculo, a atriz é narradora de sua própria história e da história da mãe, em primeira ou terceira pessoa. E se, desde o início, a voz de Azira’i ecoa no teatro, acompanhamos em algumas cenas a sua presentificação por meio da representação da filha, que se veste como ela se vestiria, se senta no chão com as pernas esticadas como ela, lida com as limitações trazidas pela cegueira, dança e, principalmente, canta.

Da mãe, Zahy herdou o dom do canto. Foto: Annelize Tozetto

A música, aliás, foi o dom que a pajé suprema transmitiu para a filha mais nova, um elo entre as duas e entre elas e nós. Zahy canta lindamente em muitos momentos do espetáculo, sejam lamentos que aprendeu com a mãe, músicas compostas especialmente para a peça, o forró da banda Magníficos ou uma versão em ze’eng eté de Assum preto, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, numa das cenas que considero uma das mais bonitas do teatro brasileiro recente.

A direção musical do espetáculo é de Elísio Freitas, que assina algumas músicas em parceria com Zahy e Duda Rios. Freitas reforça conexões que o espetáculo pode suscitar: ele é o produtor responsável pelo álbum Nordeste Ficção, de Juliana Linhares, provocado pela peça A invenção do Nordeste, do grupo Carmin, do Rio Grande do Norte, e pela pesquisa de Durval Muniz de Albuquerque Júnior sobre a construção, inclusive a partir das artes, do Nordeste e de uma identidade nordestina.

Nesse alinhamento de referências, a encenação se estrutura sem que os elementos disputem espaço narrativo. Nada está sobrando ou é excessivo, uma coisa colabora com a outra. A música está lá ajudando a contar o que se quer dizer. O cenário, que me lembrou as cortinas coloridas de palha da costa africana que dançavam na instalação Sumidouro n.2 – Diáspora fantasma, que Laís Machado e Diego Araúja apresentaram na 35ª Bienal de São Paulo, é composto por uma cortina de corda crua, que abriga as projeções do multiartista Batman Zavareze. São instalações sonoras e visuais que conseguem instaurar outras dimensões sensoriais no espetáculo.

Afinal, Azira’i é sobre isso mesmo, sobre sentir. E viver. Do jeito mais digno e honesto conosco mesmos, com quem somos ou desejamos ser, independentemente das cobranças dos outros. É sobre lembrar que nós já sabemos ser. De modo perverso, assim como Assum Preto, o pássaro da caatinga, tivemos nossos olhos furados pela colonização, pelo genocídio indígena, pela escravização, pela exploração, pelo capitalismo. Os nossos olhos continuam sendo furados cotidianamente, mas o canto em ze’eng eté nos resgata e reanima. A arte persiste. O teatro que Zahy articula sofisticadamente une mundos e temporalidades distintas, possibilita que ela e a mãe contem histórias e cantem juntas, e ao mesmo tempo nos faz perceber o quanto podemos ser mais livres, ao permitir que, por meio da arte, nossos corpos sejam afetados, nossas sensibilidades revolucionadas, nossos imaginários expandidos.

O espetáculo Azira’i foi apresentado nos dias 6 e 7 de abril de 2024 no Festival de Curitiba.

* Pollyanna Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.

O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Guilherme Diniz (Horizonte da Cena) e Kil Abreu (Cena Aberta).

Ficha técnica:
Um solo de Zahy Tentehar
Dramaturgia: Zahy Tentehar e Duda Rios
Direção: Denise Stutz e Duda Rios
Direção de arte e design gráfico: Batman Zavareze
Trilha sonora original: Elísio Freitas
Iluminação: Ana Luzia Molinari de Simoni
Figurinos: Carol Lobato
Direção de produção e produção artística: Andréa Alves e Leila Maria Moreno

Mãe de Zahy era pajé em aldeia no Maranhão. Foto: Annelize Tozetto

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