Amor e ódio eletrificam Medeia, protagonista da tragédia grega de Eurípides, escrita em 431 a.C., que tem como fonte o mito dos Argonautas e a busca do Velocino de Ouro. Em Eurípides, o retrato dessa mulher desesperada frente a consumação da perda de seu homem para outra mais jovem, mais rica e temporariamente mais poderosa é de uma fúria de tsunami, que irá destruir parte da realidade que a rodeia.
Na tragédia grega, Jasão larga Medeia e seus dois filhos para se casar com a filha do rei de Corinto, Creonte. Esposa repudiada e estrangeira perseguida, a protagonista vai resolver as mágoas (ou parte delas) com as próprias mãos. Medeia já havia “traído” sua pátria e sua família, para promover e proteger Jasão, por quem se apaixonou e com ele se exilou em Corinto, depois de provocarem a morte do rei de Iolco.
Para vingar-se do homem que ama, Medeia assassina os próprios filhos, frutos do casamento com Jasão. Mas antes envia um presente de grego à nova noiva, um manto que mata a princesa e o rei. E sai de cena vitoriosa e sobre-humana, após abandonar sua condição humana, no carro de seu avô, o Sol.
Em Gota D’Água, de Chico Buarque de Hollanda e Paulo Pontes, o território é transferido para a periferia do Rio de Janeiro, um conjunto habitacional popular chamado Vila do Meio-Dia, onde os subalternos se viram de todo jeito para sobreviver.
Creonte de Vasconcelos é o proprietário dos imóveis populares, e impõe aos seus moradores salgadas taxas juros, o que provoca alto índice de inadimplência.
O sambista Jasão de Oliveira é o futuro genro do dono do império imobiliário, que ganhou visibilidade graças ao seu samba Gota d’água.
E mestre Egeu é uma espécie de liderança comunitária, fruto da combinação do rei de Atenas que promete exílio para Medeia, e o preceptor dos filhos dela. Indignado, ele estimula os vizinhos a combaterem os juros abusivos cobrados por Creonte. Mestre Egeu lidera o “coro dos descontentes”.
A feiticeira grega Medeia transforma-se na macumbeira brasileira Joana.
A primeira montagem dessa tragédia urbana estreou em 26 de dezembro de 1975 e teve Bibi Ferreira no papel de Joana, com direção de Gianni Ratto e direção musical de Dory Caymmi. Bibi Ferreira gravou o áudio de sua atuação que influenciou gerações futuras.
O avassalador ressentimento amoroso da heroína ganha contornos melodramáticos em Madleia + ou – Doida, da Companhia do Chiste, que tem roteiro de Henrique Celibi, direção de Carlos Bartolomeu e Henrique Celibi e Daniel Silva no elenco. A montagem busca na Música Popular Brasileira (MPB) as expressões de desvario dessa mulher traída e revoltada, que conclama os orixás para trazer “seu” homem de volta.
Madleia retira a força das relações estáveis para inserir a personagem numa contemporaneidade líquida. Ao convocar um repertório da música popular brasileira de teor romântico, a montagem parece dividir a protagonista em várias outras. A que reage de várias formas ao abandono; a que não suporta o desamor do homem que ela ajudou a construir. Da maquiavélica que elabora uma vingança cruel contra a mulher que fisgou seu amado. E a que atenta contra seus filhos pequenos, como forma de punir o pai.
No centro do palco encontramos Henrique Celibi, que comemora 30 anos de carreira. Nessa bricolagem dos textos de Medeia de Eurípedes e Gota d´Água de Chico Buarque de Hollanda e Paulo Pontes, com enxetos popularíssimos de dor-de-cotovelo, Celibi projeta seu talento e ganha a plateia, às vezes com mínimos gestos, uma virada de cabeça, uma sutileza com as mãos. Mas tudo com um timing preciso e pessoal.
Em alguns momentos, para representar os fantasmas de Madleia, aparece o bailarino Daniel Silva, proporcionando imagens de alguma beleza.
Ao optar pelo brega, pela melodramático, os artistas fazem uma manobra difícil. Enquanto absorvem o que predomina na indústria cultural, criticam esse modelo da sociedade de consumo. Mas não é uma crítica quadrada, chata, mas munida da irreverência, a partir das suas próprias heranças culturais.
Vale lembrar que tanto Celibi, quanto o diretor Carlos Bartolomeu participaram do Vivencial Diversiones. O grupo teatral que se desenvolveu em Olinda, foi influenciado pelo tropicalismo e pela contracultura. Entre os anos 1970 e 1980 foi um campo de irreverência e transgressão da cena cultural pernambucana. E ninguém passou pelo Vivencial impunemente. Ele deixou marcas.
Tanto no cenário quanto nos adereços predomina um vermelho que se aproxima mais do kitsch das manifestações da indústria cultural, como os programas televisivos populares, do que do pathos da tragédia grega. Com direito até a coraçãozinho de pelúcia.
A partir das músicas que formam uma nova dramaturgia e dos pedaços de Medeia e Joana, Madleia cria seu pastiche com músicas inteiras ou trecho de canções escritas e conhecidas na voz de Chico Buarque, Paulo Pontes, Vanderléia, Roberto Carlos, Fernando Mendes, Maria Bethânia e outras figuras.
Bartolomeu e Celibi dessacralizam a tragédia grega e sob uma determinada perspectiva zombam desse conceito de amor como sentimento natural e universal, que deve estraçalhar a figura que “perde” o objeto amado. Em outra camadas de leitura, o amor passa a ser encarado com uma uma construção social, que em algumas situações passa a ser ridículo. Com Álvaro de Campos e a lembraça dos sentimentos esdrúxulos.
O pastiche carrega também uma carga de ressignificação do mundo, o esvaziamento de sentidos e a banalização do amor. E com isso Madleia faz evaporar a função social presente nas obras de referência anteriores.
Mas o que é realmente maior nessa montagem é a performance de Henrique Celibi. Além de seguro de seu trabalho, ele é carismático e tem personalidade ao atuar. E passa dos excessos melodramáticos, arranca risos e por alguns instantes convence da grande dor de sua personagem.
SERVIÇO
Espetáculo: Madleia + ou – doida
Onde: Teatro Arraial (Rua da Aurora)
Quando: Sábados e domingos, às 19h, até 27 de março
Quanto: R$ 20 e R$ 10 (meia)
Roteiro, Figurino e Cenografia: Henrique Celibi
Sonoplastia e Direção: Carlos Bartolomeu
Intérpretes: Henrique Celibi e Daniel Silva
Parabéns! Henrique Celibi, Carlos Bartolomeu e Daniel. Vida longa para MADléia + ou – doida.
Parabéns, Ivana! Texto lindamente informativo (diria mesmo: educativo) e perfeito nas apreciações estéticas.
As Yolandas estão aí mostrrando ao que vieram!