O público de Garanhuns já estava totalmente nocauteado, no bom sentido, conquistado, entregue, emocionado, agradecido com o espetáculo Gonzagão – A Lenda, de João Falcão. Para dar o arremate final, o carioca de origem paraibana Marcelo Mimoso canta Onde o Nordeste Garoa, de Luiz Gonzaga, já nos agradecimentos. Ele, que era taxista e vocalista de uma banda de forró e foi levado para o teatro por Falcão, se disse muito honrado em se apresentar na terra de Dominguinhos. Era o que faltava para consolidar o clima sentimental para a plateia de quase duas mil pessoas, que lotou o Palco Pop, na noite de sexta-feira do Festival de Inverno de Garanhuns.
O musical foi concebido para celebrar Luiz Gonzaga, o Rei do Baião (1912-1989), no centenário de seu nascimento. Já tem muitos quilômetros de estrada. A adesão do público é alta por onde passa. Uma cena vibrante, com uma trilha sonora bem executada e um elenco afinado a contar de um jeito bem particular a trajetória de um herói da música brasileira.
João Falcão embaralha a trajetória do Rei do Baião com a de uma trupe, Barca dos corações partidos, que mambemba com a história de Gonzagão. O dramaturgo e diretor se afasta de uma concepção biográfica ou de um compromisso com a verdadeira história de Gonzaga. Não é um espetáculo documental e muitas das quadros foram inspirados em causos que o próprio Luiz Gonzaga contava em seus shows.
E isso fica claro desde o início do espetáculo, quando o elenco entoa em versos: “Quase tudo que sabemos / Do nosso protagonista / Vem de gerações extintas / De um tempo a perder de vista / O resto nós deduzimos / Juntando pista com pista / Por Deus, perdoem os deslizes / Que certamente virão / As imprecisões dos fatos / Os erros de condução / As relevantes ausências / No enredo desse baião”.
A fluidez dramatúrgica é equalizada por uma encenação ágil, bem-humorada, de uma musicalidade contagiante. Falcão acelera o texto com flashes da história do protagonista real/ficcionado, em que os atores assumem vários papeis e a troca entre eles se dá como uma passagem de bastão imaginário. É uma profusão de informações, sem ordem cronológica, permeados por lindas músicas e uma movimentação de cena em ritmo alucinante.
A outra “subtrama” é da atriz que vira a cabeça de todos integrantes do grupo. Mas nessa trupe, segundo o líder não há espaço para a mulher, porque ela desestrutura o ambiente. A atriz e cantora Larissa Luz no papel de Branca não se intimida e sai com os versos “Que diferença da mulher o homem tem? Espera aí, que eu vou dizer, meu bem! Se Eva deu mancada, Adão também deu!”, em Pouca Diferença, com pegada de jazz. A intérprete transborda de energia, sensualidade e vigor e colabora para manter um espetáculo pra cima.
Até tornar-se uma lenda, Gonzagão encara muitas aventuras, que são traduzidas no palco nesses dramas curtos, justapostos, com as canções conduzindo as cenas. Das melodias choradas da sanfona, são apresentadas quase 40 composições, entre elas, Cintura fina, O xote das meninas, Qui nem jiló, Xamego, Baião, Olha pro céu e Asa Branca. Os arranjos musicais tomam outras ousadias, como Roendo Unha como drum’n’bass e Assum Preto como uma peça para violoncelo e voz.
No elenco estão Marcelo Mimoso, Adrén Alves, Alfredo Del Penho, Eduardo Rios, Fábio Enriquez, Thomas Aquino, Renato Luciano , Ricca Barros e Larissa Luz, além dos músicos Rick de La Torre, Daniel Silva, Beto Lemos e Rafael Meninão.
O reencontro entre Gonzaguinha e Gonzagão é um momento especial e ganha um tom emotivo por tudo que o público sabe, ou imagina, sobre pai e filho. Os atores Marcelo Mimoso e Alfredo Del-Penho dividem a música Sangrando.
O ator Adrén Alves carrega na garganta vários timbres. Com sua aparência andrógina, ele desliza por personagens masculinos e femininos com muita facilidade. Assume o papel de Santana, a mãe de Gonzaga, se traveste de demônio, ou se queda amorosamente apaixonado. O pernambucano Thomas Aquino (que já foi do Cordel do amor sem fim) trafega com desenvoltura por vários personagens.
A movimentação cênica de Duda Maia enche o palco, com o entra e sai de atores, que carregam os elementos de cada cena. Sergio Marimba, que assina a cenografia e os adereços, criou as sanfonas cenográficas, que produzem um belo efeito. Os figurinos, com seu acento clownesco, são de Kika Lopes.
Nessa celebração à vida, João Falcão inventou um encontro que nunca ocorreu: entre Luiz Gonzaga e Lampião. É uma peleja bem interessante que traz para a peça as experimentações temporais do diretor.
Depois de um solo de rabeca comovente de Beto Lemos, o musical encerra em tom apoteótico, otimista, arrebatado, com Óia eu aqui de novo.
* A jornalista Ivana Moura viajou a convite do 25º Festival de Inverno de Garanhuns