Uma quase amiga comentou que a artista Flávia Pinheiro é “cabeçuda”.
Não, ela não estava dizendo que a atriz/bailarina se parece com as tanajuras, aqueles “frutos” que caem do céu em determinada época do ano, que deliciavam os indígenas na época da colonização portuguesa e prosseguem valorizados até hoje em algumas regiões. Dizem que o gosto lembra o do camarão e tem alto valor proteico.
Mas a expressão não se refere à fina iguaria da culinária cabocla.
Ser “cabeçuda” é um elogio, mesmo que o termo seja um pouco antiquado.
Os trabalhos de Flávia forçam à expansão de pensamentos e de reflexões sobre corpo, movimento, presenças, ausências e um punhado de coisas que dizem respeito ao existir contemporâneo.
Nas pegadas de Giles Deleuze, suas obras testam a deformação do chichê e buscam truncar o “conjunto visual provável” para fazer emergir a imagem, contaminada de sensações de diferentes níveis. “Só transformando o clichê, ou, como dizia Lawrence, maltratando a imagem, isso poderia ocorrer, como nas imagens-cinema de Eisenstein, ou nas imagens-foto de Muybridge,” provoca Deleuze em Francis Bacon: Lógica da Sensação.
Imagem e a filosofia estão na base da criação 58 indices sur le corps, performance inspirada no texto do filósofo francês Jean-Luc Nancy, professor emérito da Universidade Marc Bloch, de Estrasburgo. Ele é autor de livros sobre muitos pensadores, entre eles Hegel, Kant, Descartes e Heidegger. Entre as principais influências de Nancy estão Derrida, Bataille, Blanchot e Nietzsche.
Nesta sexta (27/05) e sábado (28/05) Flávia Pinheiro apresenta 58 Indícios sobre o corpo, na Aliança Francesa Derby, com entrada gratuita.
O ensaio de Nancy sobre o corpo, um escrito anti-cartesiano em forma e conteúdo publicado em 2006, medita sobre os problemas do mundo. E é partir dele que a atriz/bailarina traça uma cartografia sobre a corporeidade.
O corpo de J-L.Nancy é o corpo que transborda. No fragmento 52, ele diz: “O corpo funciona por espasmos, contrações e distensões, dobras, desdobramentos, nós e desenlaces, torções, sobressaltos, soluços, descargas elétricas, distensões, contrações, estremecimentos, sacolejos, tremores, horripilações, ereções, arquejos, arroubos”.
Na performance de Flávia Pinheiro a dança é praticada como uma arte de todos e de qualquer pessoa, mas que desobstrui o gesto e movimento de marcas narrativas. Esse corpo que “grita”, até exceder o limite do próprio corpo, está tomado por intensidades.
Alguns fragmentos de Nancy impregnados no corpo vivo e desejante de Flávia Pinheiro.
1. O corpo é
material. É denso.
Impenetrável. Se
o penetram, fica
desarticulado,
furado, rasgado.
3. Um corpo não
é vazio. Está cheio
de outros corpos,
pedaços, órgãos,
peças, tecidos,
rótulas, anéis,
tubos, alavancas
e foles. Também
está cheio de si
mesmo: é tudo o
que é.
5. Um corpo é
imaterial. É um
desenho, um con-
torno, uma ideia.
9. O corpo é visível, a alma, não. Vemos que um paralítico não pode mexer sua perna direito. Não vemos que um homem mau não pode mexer sua alma direito: mas devemos pensar que isto é o efeito de uma paralisia da alma. E que é preciso lutar contra ela e obrigá-la a obedecer. Eis aí o fundamento da ética, meu caro Nicômaco.
43. Por que indícios em vez de
caracteres, signos, marcas distintivas?
Porque o corpo escapa, nunca está
bem seguro, deixa-se suspeitar, mas
não identificar. Poderia sempre ser
não mais que uma parte de um corpo
maior, que supomos ser sua casa, seu
carro ou seu cavalo, seu burro, seu
colchão. Poderia não ser mais que um
duplo desse outro corpo tão pequeno e
vaporoso que chamamos de sua alma e
que sai de sua boca quando ele morre.
Só dispomos de indicações, traços,
pegadas, vestígios
58. Por que 58 indícios? Porque 5 + 8
= os membros do corpo, braços, pernas e
cabeça, e as 8 regiões do corpo: as costas,
o ventre, o crânio, o rosto, as nádegas,
o sexo, o ânus, a garganta. Ou, senão,
porque 5 + 8 = 13 e 13 = 1 & 3, 1 valendo
pela unidade (um corpo) e 3 valendo
pela incessante agitação e transformação
que circula, se divide e se excita entre a
matéria do corpo, sua alma e seu espíri-
to… Ou, senão, ainda: o arcano XIII do
tarô designa a morte e a morte incorpora
o corpo no inconsumível corpo univer-
sal dos lodos e dos ciclos químicos, dos
calores e dos brilhos estelares.
59. Surge, por conseguinte, o quinquagésimo-nono indício, o
supranumerário, o excedente, o sexual: os corpos são sexuados.
Não existe corpo unissex como hoje se diz de certas peças de
roupa. Ao contrário, um corpo é por toda parte também um sexo:
assim os seios, um membro, uma vulva, os testículos, os ovários,
as características ósseas, morfológicas, fisiológicas, um tipo de
cromossoma. O corpo é sexuado em essência. Esta essência é de-
terminada como a essência de uma relação com a outra essência.
O corpo é assim determinado como essencialmente relação, ou em
relação. O corpo é relacionado com o corpo do outro sexo. Nessa
relação, trata-se da sua corporeidade à medida que ela toca pelo
sexo em seu limite: ela goza, quer dizer, o corpo é sacudido fora
de si mesmo. Cada uma de suas zonas, gozando por si mesma,
emite no fim o mesmo clarão. Isto se chama uma alma. Porém,
mais frequentemente, isto permanece apreendido pelo espasmo,
no soluço ou no suspiro. O finito e o infinito se cruzaram, inter-
cambiaram-se por um instante. Cada um dos sexos pode ocupar a
posição do finito ou do infinito
Ficha Técnica:
Performer: Flavia Pinheiro
Imagens : Leandro Olivan
Produção : Coletivo Mazdita
Apoio: Aliança Francesa
SERVIÇO
58 Indícios sobre o corpo
Onde: Aliança Francesa Derby (Rua Amaro Bezerra 466)
Quando: Sexta-feira 27 às 17h; Sábado 28, às 19h
Quanto: Grátis