O filme O som ao redor , de Kleber Mendonça, foi a primeira imagem que me veio à memória quando atravessei a ponte Maurício de Nassau, passei pela Pracinha do Diario e pela Avenida Dantas Barreto, até chegar ao Pátio do Carmo, no Centro do Recife. As paisagens pareciam imagens estouradas e saturadas pelo sol do quase meio-dia – o céu de um azul forte; e me dei conta de que há muito não olhava o céu. E não ouvia o som ao redor – principalmente no Centro da cidade. A música do camelô, o cantor de música gospel que insistia em dizer que os CD´s e DVD´s estavam acabando, o vendedor da barraca de fruta. Na igreja, mesmo com o calor agoniante, os fieis cantavam e ouviam as palavras do padre.
Foi em meio a esse cenário que o Coletivo Construções Compartilhadas, de Salvador, propôs a intervenção urbana chamada {pingos&pigmentos}. De repente, guarda-chuvas rosa, cerca de 30 deles (eles fizeram uma oficina na cidade e a partir dela reuniram os performers) começaram a aparecer naquela paisagem. Primeiro de maneira quase displicente, espalhada, imperceptíveis aos olhares dos afazeres cotidianos. Em questão de instantes, a imagem ganha força. Aqueles que carregam os guarda-chuvas ficam lado a lado, interagem, se complementam.
Não tenho a menor intenção de querer dar conta das possibilidades da performance – neste caso, da intervenção urbana; “o que está em jogo nesse caso é o sentido, e não as formas das ações corporais; ou, em termos linguísticos, seus significados, não seus significantes. Expressão e conteúdo, categorias básicas de compreensão das performances, resultam estreitas para abarcar o vasto e desconhecido campo das manifestações corporais”, explica Jorge Glusberg no seu livro A arte da performance. “O que interessa primordialmente numa performance é o processo de trabalho, sua sequência, seus fatores constitutivos e sua relação com o produto artístico: tudo isso se fundindo numa manifestação final”, diz noutro trecho do livro.
{pingos&pigmentos} modificou não só a paisagem urbana – óbvio por demais que fosse assim. Construiu imagens plasticamente belas, principalmente na interação com os personagens da vida real e com a arquitetura do Centro da cidade. Noutra chave, foi interessante notar o quanto aquela aparição de guardas-chuvas alterou a rotação cotidiana daquele espaço. O espectador foi trazido para o tempo dos artistas, como se, de alguma forma, aqueles minutos não estivessem passando, como se a simples autopermissão para notar que havia algo de diferente já trouxesse consequências. E realmente traz. Despertar o olhar, a curiosidade. Fazer respirar e olhar ao redor. E nem vamos discutir o quanto isso altera o conceito de arte que as pessoas têm, passando pelas artes plásticas e por Duchamp.
Geralmente a primeira reação dos espectadores é querer saber porque aquelas pessoas estão com aqueles guarda-chuvas; porque andam em fila, param daquele jeito, sentam no chão, sobem na torre da igreja. Na sociedade do pensamento cartesiano, embora já tão fragmentado, as explicações contam muito. Seu João, mais conhecido como “Homem da cobra”, vende pomadas para aliviar a dor há mais de 20 naquele local. Quando puxei assunto, queria logo saber o que era aquela filmagem (ah, sim, ainda há uma relação complicada que se estabelece, já que equipes de imagens e fotografias sempre acompanham as performances). Assim como as mulheres da lojinha de produtos para cabelo e os dois homens que vendiam comida e disseram que por ali sempre acontecia alguma coisa estranha.
Também conversei com uma senhora que participava da performance. Eu era alguém que estava passando e tinha achado interessante, bonito, resolvi fotografar. “Ah, minha filha! Isso é para trazer poesia para o dia das pessoas. Essa não é a função de uma atriz?”, perguntou. Realmente não sei responder se essa é a função só da atriz. Deveria haver mais gente no mundo para nos trazer poesia. Se não poesia, ao menos um respiro, uma sombra. O aconchego de um guarda-chuva cor de rosa no sol do meio-dia.
*Texto extensivo ao projeto editorial do jornal Ponte Giratória, que circula impresso durante o 7º Festival Palco Giratório Recife, organizado pelo SESC PE. Outras informações no hotsite do festival.
É isso aí Polly! Vamos pleitear/ descobrir/ alardear mais poesia para o mundo, mais beleza para o cotidiano. Vamos encontrar mais gente que valorize os momentos de alegria, como os transeuntes anônimos, mais abertos e disponíveis para os abraços, para o afeto e para o encontro verdadeiro.
Valeu!
:))