Uma mulher (não) é uma mulher
Por Luciana Romagnolli – Horizonte da Cena
A performer espanhola Angélica Liddell habita o palco carregada de memórias e simbologias em Eu não sou bonita. O espetáculo foi criado sobre material autobiográfico, a partir do qual ela elabora uma poética da agressão. Desde uma perspectiva íntima compartilhada, a artista cria um espaço extracotidiano de expressão verbal e corporal contra a violência de gênero. Assume uma postura de enfrentamento da construção cultural do ser mulher, que limita a experiência do feminino, denunciando violências simbólicas e físicas castradoras do desejo e da liberdade.
A afirmação-título de recusa à beleza surge como negação ao imperativo da submissão ao olhar masculino como legitimador. Angélica coloca o público diante da escuridão do trauma. Em sua poética, o erotismo é um elemento essencialmente gerador de mal-estar, tanto quanto a violência autoinfligida e a direcionada ao homem, discursivamente.
É justamente no campo discursivo que Liddell mais abertamente depõe sobre uma condição feminina enfraquecida. A corporeidade é desempoderada seguindo uma concepção binária de mente/corpo, associada ao macho/fêmea, com desprestígio para os segundos termos constituidores dos pares. Os corpos femininos, nesse tecido cultural, carregam distintos tipos de controle – a anulação da presença física; a reificação; a repressão disciplinadora; e a escravidão ao padrão estético dominante são alguns dos apontados pela pesquisadora Elódia Xavier, em Que Corpo É Esse?.
E que corpo é esse que Liddell performa? Ela faz-se presente como um corpo violento, que urra, berra, corta-se, queima-se. Seu corpo é palco da contestação sociocultural. Feito objeto pelo gesto violento do outro, responde como sujeito e objeto de sua própria violência, desfazendo a dicotomia. A presença de um cavalo em cena, mais do que um elemento biográfico e de irrupção do real, traz o contraponto de uma natureza supostamente ingênua e alheia a condicionamentos culturais. Natureza e cultura: outro binômio a explodir.
O mal-estar maior gerado pelo espetáculo, contudo, está no aprisionamento do corpo feminino à incessante restauração do trauma vivido. O lugar de onde Liddell fala é o da vitimização masoquista (portadora de uma camada de prazer) e do ódio (que implica um bloqueio da alteridade). Um lugar de impotência. Mas qual outro lugar de empoderamento seria possível? Se no campo discursivo a vitimização e o ódio impõem um limite, na dimensão da produção de presença outras afetações se instalam. Há, sem dúvida, uma potência sensível na presença de Liddell que produz um desenho de forças de intensidades variáveis. Contudo, a intervenção de ativistas pró-animais na sessão de estreia na MITsp interrompeu o fluxo dessas forças.
Ainda assim, ao resistir a uma apreensão totalizadora (cuja força continua atuando sobre o espectador tempos depois da fruição, como um cavalo indomado), a experiência do paroxismo da vitimização e do discurso do ódio, em tensão com a materialidade daquele corpo, proporcionada pelo espetáculo, lega ao espectador um saturamento radical do imaginário, que acena para a impossibilidade da manutenção desse status quo. Este é um mal-estar que o espectador pode abafar, restaurando o conforto, ou deixar que lhe tome o corpo de modo que se lance ao enfrentamento da falta de saídas com que a própria Liddell aprisiona seu discurso, para a criação de outros possíveis ao ser feminino.
E ao ser masculino. O aprisionamento cultural do ser homem é algo ao qual o discurso de Liddell não alude. Mas, justamente por sua cegueira, apela ao espectador que reaja. O ato performático, por sua característica de restauração do comportamento, serve ao trauma. Mas também é saber privilegiado da explosão das dicotomias. E só na explosão da dicotomia há liberdade.
O indivíduo revelado através da observação dos animais
Por Ruy Filho – Antro Positivo
Muito se fala de uma cena contemporânea cujo teor dramatúrgico se confirma autorreferente. Ora como o contar biográfico, ora no uso simbólico da experiência real, a aproximação entre o vivido e o encenado explicita também a necessidade de tornar espetaculares ocorrido e sentido, produzindo uma espécie de materialidade assertiva, pela qual o artista deixa de ser meramente instrumento para se exibir estrutura de atenção. Ocorre não ser tão simples o uso do próprio, visto o processo exigir consistência em seu argumento. Então são poucos os trabalhos que, verdadeiramente, superam a narrativa ilustrativa. É possível dividir em duas as disposições: a que confirma o uso do particular como meio de resolvê-lo, e a que aceita e reaviva sua condição. A diferença fundamental está na perspectiva da culpa igualmente autorreferente e daquela transferida ao outro. E ambas, até certo ponto, se confundem demasiadamente com mecanismos terapêuticos sobre o próprio dizer.
Precisa mais, então. Oferecer ao dizer um processo pelo qual refazer a ação, recuperar o vivido, insistir em sua encenação, revelam a linguagem por sua instabilidade, na qual o corpo necessita entregar ao movimento não mais da culpa e sua resposta, mas ao trauma e seu estigma simbólico. Dá-se pelo trauma a recuperação sensível de manutenção de uma realidade a qual não se busca negar. Ao contrário, quer-se conviver em estado pleno, transformando o corpo no mecanismo mais próximo ao pessoal, enquanto é mobilizado o insuportável a uma longevidade exponencial.
Angélica Liddell pertence aos artistas que não buscam o perdão nem para si nem o oferece ao espectador. Aceita sua condição pela presença da manutenção da dor particular, colocando-se frágil e solitária, em uma espécie de inércia irresolvível do viver.
Há, evidentemente, o feminino como consequência a seu estado imposto ao existir. Sua condição de mulher sugere a confirmação de seu discurso. Todavia, Angélica afirma ser radicalmente contra o entendimento ideológico do feminino que, por questões socioculturais, antecipam a classificação ao reconhecimento da individualidade. Ser mulher é parte do trauma que não se quer solucionar, ainda que provoque a encenação também na caricatura de punição ao gênero. Essa dicotomia se resolve pela perspectiva de estar mulher, ou seja, na maneira estereotipada pela qual apresenta sua condição feminina, enquanto protege do outro sua própria individualidade. Assim, o corpo se mostra feminino, tal qual se espera, como pele nua, enquanto a individualidade é escondida pela pele encenada tornada narrativa autorreferencial.
Nada ali é real, apenas a potência do trauma que se insiste recuperar. O processo performativo sobre a construção da dor física, a construção erótica da dor, a submissão da memória ao erótico, a teatralização da necessidade da memória, o teatro como artificialidade de uma unidade possível de sentido apenas se colocado em cena o próprio artista como signo. O percurso em si revela a artimanha necessária para tornar a exposição do processo o discurso ao outro. É quando o espectador é revelado a ele mesmo igualmente autorreferente. Agora é o próprio sujeito quem assiste e não mais a construção ficcional de um observador anônimo e coletivo. Ao encarar a pele encenada como única tradução plausível, aquele que observa, a toca como invasor de sua intimidade, pois acessa os meios para assistir o indivíduo e não apenas a mulher. Então divide o trauma. Torna-o espelhamento de seus próprios, assumindo a culpa da necessidade de sua repetição ao desejar o espetacular do outro.
Ao assistir Eu não sou bonita o espectador faz-se responsável pela manutenção da dor da artista. Mas não desista. O encontro é radicalmente importante aos dois lados. Permita-se o exercício de oferecer sua responsabilidade. Pois à artista, o doer reflete mais do que um estado de internação na memória, mas, pelo não esquecimento, o gerar procedimentos de reconhecimento de alguém ainda capaz de lidar com o sentir e assim permanecer vivo, mesmo que seja mediante a teatralidade das reaproximações com os sentidos mais cruéis daquilo que lhe apresentem sua condição humana.