A artista sul- africana Ntando Cele já havia jogado na nossa cara que sabemos pouco sobre a África, continente multifacetado e encaixotado como “país” pela mentalidade reducionista e deturpada de europeus e americanos. O bailarino e coreógrafo congolês Faustin Linyekula expõe as feridas e vocifera com seu corpo a questão “de quem se importa de verdade com o sofrimento alheio”. É preciso afinar a sensibilidade e usar lentes mais humanitárias, menos capitalistas para abraçar o espetáculo A Carga (Le Cargo), exibido ontem como parte da programação do 27º Festival de Teatro do Agreste – FETEAG, no Teatro Hermilo Borba Filho (com ar-condicionado desligado durante a apresentação, porque o silêncio é um elemento importante… ah meu sonho é que os teatros da cidade possuam refrigeração silenciosa!).
Com sua conversa de contador de histórias e desejo de acolhimento, ele nos conduziu por suas memórias, histórias pessoais e sua aldeia, lugares perdidos no tempo, afetos desmontados por outras “ordens de progresso”. Ele começa seu relato dizendo: “Eu sou um contador de histórias. Mas eu não estou aqui para contar histórias. Eu estou aqui para dançar”. Para depois indagar: “Nesses anos será que eu dancei verdadeiramente?”; “Que diferença isso faz? E para quem faz?”.
Linyekula levou para a cena um instrumento musical de percussão, dois livros, um computador. Suas narrativas erguem imagens de territórios longínquos, de trajetórias em busca de uma passado que ficou impregnado no seu corpo, que baila uma dança que se perdeu.
A iluminação garante micro-ambientes com os claros escuros e sombras que se ampliam nas paredes. A perda produz dor e a melancolia do tempo que se foi. Mas também, porque é preciso mais que sobreviver, viver, brota festa desses gestos, desse corpo coreográfico que se mexe de forma encantadora.
E ele canta, lindamente. E seu corpo miúdo se agiganta e nos conduz no escuro por seu desejo de resgatar arte de sua infância e juventude.
Sua fala vem da República Democrática do Congo, segundo maior país da África, francófano e com uma população formada por cerca de 200 grupos étnicos. Um dos países mais pobres do mundo com baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), mas ao mesmo tempo, um dos mais ricos do planeta em recursos naturais biodiversificados.
É desse lugar, que mudou muitas vezes de nome, que foi articulado esse corpo, atravessado por guerras e assolado por chagas colonialistas e ditaduras, flagelado em sua cultura. Nesse território nasceu sua avó, que ninguém sabe a data porque não havia registros.
As marcas e as relações de poder estão no começo do seu discurso, repetido na etapa final do espetáculo como o reforço de uma resistência. E da busca de danças que sumiram, dessa carga e suas marcas históricas.
Linyekula expressa emoções íntimas e abarca um país. Resgata em seu texto personagens como um mestre percussionista que conheceu na infância, que virou pastor evangélico fazedor de milagres e foi proibido de fabricar arte. Também busca celebrar a existência de figuras que carregam a sabedoria com a idade.
Esse relato minimalista e que se repete para não se perder, alimenta um tempo de ancestralidades, de conversas olho no olho, que pode incomodar a nossa pressa. Ele se comunica em português com sotaque francês, para evitar a mediação, e um trecho em francês. Sua locução se refere o tempo todo a uma humanidade esquecida, a um cuidado com o ser que precisa ser recuperado, ressignificando afetos com o sagrado que existe em cada um.
Linyekula potencializa do corpo as muitas vozes que o compõem e que formam povo do seu país. Sua coreografia é uma postura libertadora. Sua arte , sua dança um ato político. Faz parte do processo de descolonização, que inegavelmente é atravessado pelo lugar de fala e reconhecimento dessa alteridade. Ao final, o laptop desferia imagens suas e dos seus de um retorno ao paraíso do afeto, nos convidando para seguir junto.