Arquivo da categoria: Ensaio

Ilha do Massangano, um reduto de encanto
Dossiê Aldeia do Velho Chico
#10

Artistas e público na Ilha do Massangano. Foto Fernando Pereira / Divulgação

 

Pankararus Foto André Amorim / Divulgação

“Alguém me avisou para pisar nesse chão devagarinho”, indica a canção. Para pisar em território sagrado é preciso pedir Agô, me disseram. Agô significa uma solicitação de licença em Yorubá. Assim se deve fazer para facilitar a chegada, harmonizar.

Não sei se qualquer um esqueceu de pleitear passagem no translado de barco entre Petrolina e a Ilha de Massangano, mas no trajeto a Barca Nilo Brasileiro deu um susto nos passageiros ao esbarrar nas grandes pedras imersas no Rio São Francisco. Ou foi uma brincadeira de algum encantado. Bem, um pouco de emoção não faz mal a ninguém.

E seguimos naquele domingo de agosto para saborear um dia bem especial. É a festa da Aldeia do Velho Chico na Ilha do Massangano, com direito à sensação de suspensão de tempo (desacelera coração para curtir as coisas simples, as mais ricas do mundo, que o dinheiro não pode comprar).

Trilhas Ancestrais, com Camila Yasmine, de Petrolina e Gean Ramos, de Jatobá. Foto Andre Amorim

Nessa travessia, além de apreciar a Mostra Flutuante de Artes Visuais – Rio a Dentro: Confluências do imaginário Ribeirinho com peças de artesãos do Vale do São Francisco, também assistimos à apresentação musical Trilhas Ancestrais, com Camila Yasmine, de Petrolina e Gean Ramos, de Jatobá, com seus lindos cantos de protesto.   

Yasmine investe nos encantos do Rio São Francisco e do Samba de Véio nas suas músicas. E trabalha com as musicalidades e interpretações da identidade cultural do povo negro no resgate da ancestralidade, com ginga e alegria.

Punâ Pankararu, nome indígena do músico e produtor cultural Gean Ramos, aprendeu a gostar de música com os pais Seu Eronildes e Dona Tida e cresceu ouvindo sonoridades dos animais da aldeia, das manifestações da natureza e as expressões de festa nas celebrações do seu povo. Sua música tem um pouco disso tudo com o posicionamento político de quem reivindica os direitos dos povos originários em versos, rima e som.  

Apresentação dos Pankararus na Ilha do Massangano. Foto André Amorim / Divulgação

A Ilha do Massangano é uma porção de terra de cerca de cinco quilômetros quadrados cravado no meio do Rio São Francisco. Pense nas ilhas que você imaginou na infância, ou leu em livros, ou viu em filmes. O que posso dizer é que é uma experiência inigualável.

Essa ilha tem dona. Ou donas / donos. Encantados e encarnados. Todos têm os seus caprichos. Portanto, cuidado e respeito. “Terra alheia, pisa no chão devagar”, diz o canto. Pedi licença, como já disse, aos ancestrais que atravessaram essa história.

O Rio manda no pedaço. No modo de ser, de andar, de pensar. 

O gestual de quem trabalha na monocultura da cana-de-açúcar é forjado também na lida. Observem os passos e os jogos de corpo do maracatu. Quem é do mar tem outra regência. Os ventos, a terra, as águas, o Sol, o sal, a Lua influenciam no jeito de ser das gentes e seus territórios.

Não seria diferente com as pessoas, com os artistas da região do Vale do São Francisco, em sua prosódia, jeito de andar e de dançar. O Rio é o vetor de um modo de ser, viver e se relacionar com o mundo. Talvez mais doce, como suas águas, quem sabe algo menos reto e mais ondulado se instala no corpo.

“A ilha do Massangano é o local dos antepassados, do trabalho, dos festejos, da sociabilidade, da família, da própria identidade… o sentimento de pertencimento à ilha. Essa identidade está muito ligada aos seus cultos (religiosidade), à forma como se relacionam entre si, à estrutura familiar e ao samba de véio”, escreve a professora Antonise Coelho de Aquino na sua dissertação de mestrado Ilha do Massangano : dimensões do modo de vida de um povo; a (re) construção do modo de vida e as representações sociais da Ilha do Massangano no Vale do São Francisco, transformada no livro Ilha do Massangano: uma terceira margem no Velho Chico.

Samba da Beira. Foto Tássio Tavares / Divulgação

“Puxar um samba, que tal? Para espantar o tempo feio?”, propõe Chico Buarque e o Samba da Beira, grupo musical de Petrolina já faz isso há cinco anos. Propôs um trago na Ilha do Massangano.

O Samba da Beira animou o povo com músicas maneiras e/ou bem dançantes, celebrou a vida, o Rio e todas as conexões incríveis de um dia de festa. Com alegria vislumbrou um novo tempo, que está chegando com muito trabalho para uma vida não fascista. sem medo de ser feliz! Brindes.

Palestra sobre Economia Criativa e a Transformação dos Territórios. Na foto Rita Marize, Josiana Ferreira, Galiana Brasil e Oswaldo Ramos. Foto: André Amorim / Divulgação

Uma pausa para trocar uma ideia foi a proposta da Palestra sobre Economia Criativa e a Transformação dos Territórios, com Galiana Brasil (Itaú Cultural), Oswaldo Ramos (Sesc Pernambuco), Josiana Ferreira (SEBRAE – Petrolina/PE) e Mediação de Rita Marize (Sesc Pernambuco). 

Cada qual falou de suas práticas e propostas para o território de Petrolina. Mas muitas vezes as entidades chegam com um discurso que parecem ensinamentos mais que diálogos, nossa herança colonial. Numa das falas, Ramos deixou a entender que estaria inaugurando algo naquele pedaço.

Uma empreendedora, empresária da cidade, ou melhor uma guerreira ancestral pediu a palavra para fazer um posicionamento das lutas travadas de dentro do capitalismo e contra os abusos do sistema para realizar coisas muito bonitas naquele território. Uma fala firme, direta, comungada com o chão. Sol, apaixonante.

O tom inauguratório foi baixado e a conversa seguiu com as propostas e ações que serão tocadas pelo HUB Criativo, que esperamos que na próxima edição da Aldeia do Velho Chico tenha muitas realizações para apresentar.

Pankararus. Foto André Amorim / Divulgação

O Samba da Peba Véia , com Mel Nogueira- Foto Tássio Tavares /Divulgação

Luanda Ruanda – Foto André Amorim_24

O Encontro dos povos originários com Pankararus, de Jatobá e Tuxás de Inajá foi marcado pelo sentimento de luta e resistência. Teve discursos para expor o descaso e mesmo perseguição aos indígenas por parte desse desgoverno federal. E celebração da luta, com suas danças e cantos de guerra, louvor e festa.

Mel Nogueira fez suas homenagens à ancestralidade com a performance O Samba a Peba Véia. Um vestido é materialização de uma saudade, de uma vida que se agita noutro corpo, na dança e no aprendizado de outra arte. É emoção para a artista que continua na brincadeira. 

O mundo foi reinventado / redescoberto pelo prisma da cultura africana no espetáculo Luanda Ruanda – Histórias Africanas, do Coletivo Tear, de Garanhuns. Com trilha original executada pelos músicos garanhuenses Alexandre Revoredo e Nino Alves.

A peça funcionou como mais um bálsamo na ilha, quando as narrativas orais de raízes africanas e afro-brasileira, os elementos cênicos e as paisagens sonoras da peça se misturam com o ambiente deslumbrando do Massangano, remetendo para outros tempos e outros territórios, valorizando a identidade negra. Um embalo cênico em estado de levitação. 

Dançando aos Pés do Baobá. Foto Tássio Tavares / Divulgação

Cartas ao Vento com Déa Trancoso. Foto Tássio Tavares / Divulgação

O Baobá é uma árvore símbolo da resistência na cultura africana. Muitas lendas e mitos existem sobre o baobá. Uma delas é que os africanos foram obrigados a deixarem suas memórias em volta do baobá na época da diáspora africana. Dançando aos Pés do Baobá – Na Fresca do Baobá se constitui numa louvação dos artistas  Daniela Amoroso, Denilson das Neves e Larissa Zani, de Salvador, na Bahia, a tudo o que o baobá significa de força e fertilidade.

Ao entardecer, à beira do São Francisco, a cantora, compositora e pesquisadora Déa Trancoso deu o seu recado no show Cartas ao vento. No concerto solo, tocou cuatro venezuelano (instrumento da família do violão), que ela ganhou da chilena Tita Parra. Sua proposta é ambiciosa de criar e compartilhar canções que atuem entre mundos existentes. Déa navega pela arte promovendo a fruição e a cura, a experiência suprema do corpo a partir da música.

Grupo Africania mostrou seu som a partir do disco O Curador do Museu do Imaginário. Foto: Divulgação

O grupo Africania levou o som do seu álbum O Curador do Museu do Imaginário para ilha no final da festa. É mais que samba de batuque do Sertão da Bahia; cabe uma mistura com samba chula e toada em diálogo antropofágico com as influências da música mundial do jazz, rock e música psicodélica. É uma musicalidade contagiante repleta de axé e ancestralidade, amor e futuro,  talento e transpiração.  

Foi intenso. Como não poderia faltar, teve Samba de Véio, símbolo da ilha do Massangano. “Existem hipóteses entre os moradores mais antigos de que o samba nasceu com os negros escravos refugiados nos quilombos …  ou com os índios cariris que habitavam o alto sertão pernambucano, muito antes dos portugueses que aqui”, está anotado na dissertação de Antonise Coelho de Aquino.

Dançar essa dança é um ato político. E não vá pensando que é fácil, né não. Tem toda uma técnica, que está atravessada por experiências singulares de festejos e performances da oralidade. Além dos exercícios convivência, da comunhão, das trocas comunitárias. Uma poética derramada em paisagens, sonoridades, jeito de corpo, festas e danças comandadas pelas praticas populares da ilha.

Meu olhar de estrangeira. Cúmplice e crítico. Que não sabe das idiossincrasias locais, dos seus afetos monumentais, mas consegue perceber o movimento dos barcos e das pessoas saiu repleto de atravessamentos. O acolhimento, os seguidores, os resistentes. Essa experiência ficará para sempre guardado num lugar da memória. Suas imensas riquezas e suas ínfimas falhas.

Samba de Veio da Ilha do Massangano. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Uma festa na Ilha do Massangano com o Samba de Veio. Foto Fernando Pereira / Divulgação

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Música, audiovisual e ideias
Dossiê Aldeia do Velho Chico
#9

Gabi da Pele Preta e Alexandre Revoredo em show no Teatro Dona Amélia. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Efraim Rocha (contrabaixo), Betinho Lima (bateria),  Jose Carlos Pereira (piano, sanfona), Gabi da Pele Preta e Aexandre Revoredo. Foto Fernando Pereira / Divulgação

José Carlos Pereira, o Zezinho da sanfona. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Conheci a Aldeia do Velho Chico e a cidade de Petrolina, no Sertão de Pernambuco neste ano. E me surpreendo rindo sozinha quando faço uma associação da programação com os versos da música de Caetano Veloso: “Eu sempre quis muito / Mesmo que parecesse ser modesto”. Uiii. A programação é larga e profunda e logicamente que é permitido se perder nos seus labirintos.
Então, vou lembrar um pouquinho do que mirei, senti, vivenciei, soube. Isso, logicamente, com toda argamassa da minha subjetividade.

Gabriella Freitas, ou melhor Gabi da Pele Preta, mulher agrestina de Caruaru, desperta a festa no corpo com as músicas que canta. O show dela com o músico garanhuense Alexandre Revoredo (que mostrou canções de Revoredo, disco lançado em 2020), chegou repleto de poesia e transita pela trajetória e repertórios dos dois artistas, banhados de afetos. O canto militante de Gabi é lugar de reflexão e confronto.

Vestida de vermelho carmim, ela defendeu no seu canto-dança o que ostenta na sua vida. A cantora engaja arte e manifesto das pautas de gênero, classe e raça em canções femininas e feministas. Gabi faz seus próprios levantes como mulher.

Entre as peças interpretadas incluem Revolução, uma composição de Juliano Holanda, carregada de uma musicalidade rebelde contra os padrões caretas e patriarcais. Ela enche seu repertório de luta, com músicas que pregam por uma vida transformadora.

Com a dançante Gente, com letra de Uma Luiza Pessoa, artista trans de São Paulo, Gabi avisa que é preciso cuidado com o que se fala, se posiciona contra normatividade e salienta que “nós não somos iguais”; lembrando que o que existe em comum é que “somos todos mortais”.

Uma artista destemida que reivindica um amanhã mais justo e brada música para curar o ódio, o medo, todos os maus-tratos. 

Documentário Baque Opará na Mostra de Curtas. Foto Sandriele Gomes / Divulgação

Filme Medida Provisória foi exibido na programação seguido de debate. Foto André Amorim / Divulgação

A Mostra de Curtas Regionais com a exibição de produções audiovisuais de Petrolina é um dos orgulhos recentes da cidade, instigada pela pesquisa e realização no Vale do São Francisco. Entre as exibições estavam A Menina da Ilha, que foca nas belezas do Rio São Francisco, fazendo cruzamentos com a lenda da Mãe d’água e os desejos de uma garota que almeja ser cantora.

Já o documentário A Nossa Ancestralidade Pulsa, Produz Alegria, Resiste: Baque Opará, com direção de Chico Egídio, faz um passeio poético pelo percurso do grupo percussivo Baque Opará, que se nutre na produção coletiva e dos batuques de saberes de ancestrais.

O filme Medida Provisória, longa de estreia de Lázaro Ramos na direção foi exibido na Aldeia, seguido de debate. A obra sofreu ataques conservadores e preconceituosos de toda ordem quando do seu lançamento. A peça cinematográfica suscita controvérsia inclusive entre os povos pretos e a militância. A conversa foi acalorada.

Baseado na peça Namíbia, não! (2011), de Aldri Anunciação, também dirigida por Lázaro, o filme expõe um Brasil distópico, cujo governo não especificado determina o “retorno” dos cidadãos negros de melanina acentuada à África como forma de reparação, vejam a lógica, dos danos provocados pela escravatura.

André Vitor Brandão (de costas), Tiago Ferraz, Raphael Vianna, Galiana Brasil e Luiz Antônio Sena Jr. Foto Tássio Tavares / Divulgação

Flávia Santos, Raphael Vianna, Liana Gesteira e Júlia Vasconcelos no Tecendo Ideias. Foto André Amorim

Entre a programação de reflexão e formação, o projeto Tecendo Ideias busca provocar, instigar um diálogo, um debata sobre temas relacionados à programação. Com duração de cerca 45 minutos, essas reuniões abriram espaços para falas institucionais, iniciativas críticas e aula de empreendorismo.

A conversa Encontros no pós-mundo: Retomadas e Deslocamentos nas Artes Cênicas reuniu os gestores Raphael Vianna, da direção nacional do Sesc; Luiz Antônio Sena Jr, do FIAC/BA; Tiago Ferraz, do Itaú Cultural e mediação de Galiana Brasil, também do Itaú Cultural. Discorreram sobre providências, iniciativas tomadas durante a época mais dura da pandeia e as perspectivas de sobrevivências culturais para os próximos tempos.

O Coletivo 4 Parede, do Recife e o Podcast Deixe de Pantim, de Petrolina, sob mediação de Raphael Vianna, do Rio de Janeiro, versaram sobre as Possibilidades de produção crítica em Artes da Cena no jornalismo cultural por meio das tecnologias digitais. Esse bate-papo foi parte do Pensamento Giratório. A atriz, jornalista e pesquisadora Liana Gesteira falou das atividades desenvolvidas pelo 4Parede, as oficinas técnicas que vem desenvolvendo junto a vários festivais, a ampliação do lugar do podcast na vida dos brasileiros e como eles executam a critica dentro de suas plataformas. O 4 parede realizou na programação da Aldeia a Oficina: Possibilidades de produção crítica em Artes da Cena no jornalismo cultural por meio das tecnologias digitais.

O coletivo Deixe de Pantim, que tem esse nome ótimo, por sinal, é tocado por quatro jovens comunicadoras: Victória Resende, Júlia Vasconcelos, Flávia Santos e Maiara Borges. Flávia e Júlia participaram da conversa. O projeto delas não foca somente na crítica das artes da cena, mas trabalha com análises de assuntos cotidianos, dos mais graves aos pontos de humor, numa linguagem coloquial. Então o foco dos podcasts do Deixe de Pantim são as questões sociais, sob a mirada feminina, jovem, de quem mora no Serão de Pernambuco e que olha para as questões de gênero, raça, território e cultura pop desse lugar.

Willian Fernando Soares, Rodrigo Frazzão, Antonise Coelho, Ariane Samila Rosa, Socorro Lacerda e Victor Flores no Tecendo Ideias de Literatura. Foto: André Amorim / Divulgação

Antonise Coelho de Aquino e Socorro Lacerda. Foto André Amorim / Divulgação

A conversa sobre literatura reuniu as escritoras e os escritores Socorro Lacerda, Antonise Coelho, Rodrigo Frazzão, Victor Flores, Willian Fernando Soares. Trocas de ideias  sobre letras, livros, criação são sempre prazerosas e instigantes.

Escritora, professora e militante feminista de Petrolina, Socorro Lacerda se posiciona questionando o patriarcado na ficção e na vida, na defesa da cultura e das mulheres.  Autora dos livros O mistério do sumiço do velho Chico, em que faz um percurso fluvial pelas riquezas do rio São Francisco e Vira-vira, Violeta, infanto-juvenil que discute sobre as representações de gênero, a partir da protagonização da luta das mulheres, entre outros.

Antonise Coelho de Aquino é professora de Língua Portuguesa, revisora literária e acadêmica, e consultora em Literaturas Infanto-juvenis. É autora do livro Ilha do Massangano: uma terceira margem no Velho Chico, uma pesquisa documental e a investigativa acerca da vida da população do Massangano e sua cultura. Publicado em 2021, o livro é oriundo de sua tese de mestrado em Sociologia, defendida em 2004.

O Jovem escritor Rodrigo Frazzão contou sua história de superação para se tornar artista. Ele começou a ensaiar rimas ainda menino, no rastro de sua paixão por vaquejada e aboios. Como morava na zona rural de Petrolina e precisou trabalhar na roça desde cedo, ele andava vários quilômetros para ir a escola. Seguiu insistindo nos estudos. Em 2020,no auge da pandemia, Frazzão postou um vídeo para mostrar seu talento no cordel. Depois com uma vaquinha virtual publicou seu livro O Poeta e o Isolamento.

Victor Flores considera a educação ambiental um dos grandes desafios desses tempos. Seu trabalho foca no respeito à natureza e no desenvolvimento sustentável. O ambientalista é autor de Tita e o Mistério do Velho Chico, um livro infanto-juvenil que busca acender nesse público o desejo pela defesa do Planeta. 

Educador e contador de histórias, Willian Fernando Soares, recebeu em setembro o  troféu Baobá, considerado o “Oscar” dos Contadores de Histórias. Ele é entusiasta dessa arte narrativa, que valoriza a tradição oral. Tanto é assim que escreveu o livro A turma do contador de histórias e a passagem do Juazeiro, em formato gibi em quadrinhos.

Essas histórias de vida e informações profissionais confirmam a riqueza da da produção literária do Vale do São Francisco. A mediação foi tocada pela professora do Sesc Petrolina  Ariane Samila Rosa

Paulo de Melo, Cleilson Queiroz e Antonio Veronaldo conversam sobre produção das artes cênicas no interior. Foto Tassio Tavares / Divulgação

Antonio Veronaldo, da Cia Biruta de Petrolina no Tecendo Ideias. Foto Tassio Tavares / Divulgação

A Produção em Artes Cênicas no Interior do Estado e a Descentralização da Cadeia Produtiva da Cultura foi o Tecendo Ideias mais acalorado desta edição da Aldeia. O tempo ficou curto para tantas constatações, reivindicações, desejos de valorização da cena que é feita longe da capital. Antonio Veronaldo, da Cia Biruta de Petrolina, é um combativo companheiro que atua como diretor, dramaturgo, produtor e militante cultural no Vale do São Francisco. Ele falou sobre o trabalho desenvolvido, não devidamente valorizado, dos estereótipos sofridos pelos grupos do interior, o desigual investimento (quando há) das políticas públicas. Com um trabalho de forte cunho político, ele reivindica a descentralização dos recursos e do pensamento. Também destacou o crescimento na produção cênica em Petrolina e região.

Cleilson Queiroz é um artista pesquisador da Cia Ortaet, de Iguatu, no Ceará. Ele trilha os caminhos acadêmicos e artísticos. Cleilson pesquisa autobiografia, teatro documentário e questões de gênero e atualmente cursa doutorado na UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina e é ator da peça Chorume, apresentada na Aldeia. Os problemas, as demandas para as artes na cidade Iguatu são idênticas aos de Petrolina.

A mediação dessa conversa foi feita pelo ator, professor e diretor Paulo de Melo, do Núcleo de Teatro do Sesc de Petrolina. Ele cresceu e se tornou artista em Petrolina. Com uma experiência de estudos e atuação cênica no Rio de Janeiro – Paulo participou de espetáculos como Gonzagão, a Lenda e Chacrinha o musical – que permite que tenha  visão de vários pontos geográficos da situação das artes cênicas no país. O que ficou dessa discussão é que há necessidade, espaço e interesse de grupos, artistas e público para um seminário específico sobre a produção cênica no interior. São demandas urgentes.

O Tecendo Ideias fechou com a aula Café com o Empreendedor: inovação e empreendedorismo no Vale do São Francisco, com SEBRAE/PE, quando foram mostradas as possibilidade de atuação para o setor e os caminhos a serem trilhados.

 

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Artes Visuais
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#8

 

Exposição Alumiando Afetos. Foto: André Amorim / Divulgação

Exposição Alumiando Afetos – Foto André Amorim

Peças em preto e branco na exposição Alumiando Afetos. Foto: André Amorim

Artista Alaido e a curadora Lys Valentim. Foto: André Amorim

Felipe Almeida, que adotou o nome artístico de Alaido em homenagem à mãe Alaide, é um artista visual que compõe sua arte a partir da relação com o cotidiano desacelerado da cidade grande. Suas peças são uma miscelânea de ideias e referências, emoções e memórias de sua trajetória. Para a Aldeia do Velho Chico expôs a primeira individual na região Alumiando Afetos, na Galeria de arte Ana das Carrancas, no Sesc Petrolina.

Nascido em Feira de Santana (BA), o artista mora em Igatú – Chapada Diamantina, onde o tempo impõe outro ritmo de vida, mais cuidadoso com as pessoas e com o Planeta. Alaido iniciou sua trajetória artística no Vale do São Francisco, onde viveu por 10 anos. E passou a mostrar sua arte urbana nas ruas da cidade de Juazeiro.

O universo lúdico de Alaido é projetado em cenas prosaicas e inspirações de paisagens marcadas pela cultura nordestina. As esculturas e telas predominantemente em preto e branco, ricos em detalhes das representações. Há acrílico sobre tela pensado sobre o samba de roda, de No batuque dos tamboretes. Ou acrílica sobre casca de árvore de Feixe de lenha.

Ele escolheu suportes que por si mesmo já carregam muitos significados. Como as cascas de pedra – da peça Multidão, por exemplo – um material habitualmente empregado para revestir o chão nas ruas e que guardam marcas e memórias a partir das pegadas dos transeuntes. A exposição contou com a curadoria de Lys Valentim.

Expressões da religiosidade na Mostra Flutuante de Artes Visuais. Foto: Andre Amorim

Peças com Inspiração nos bichos na Mostra Flutuante de Artes Visuais. Foto: Andre Amorim

Carranca é símbolo da cidade. Foto: Andre Amorim / Divulgação

Pequenas esculturas na Mostra Flutuante. Foto: Andre Amorim / Divulgação

A relação entre arte contemporânea e Natureza são pulsações comuns às obras participantes da exposição coletiva Rio adentro: influências do imaginário ribeirinho. Composta por trabalhos de artistas que moram no Sertão São Francisco, a mostra circulou em um barco por ilhas e comunidades ribeirinhas próximas à cidade de Petrolina, em Pernambuco, durante a realização da Aldeia do Velho Chico. Os posicionamentos decoloniais também marcam a criação das peças no que se refere às classificações entre artesanato e arte no sistema da arte.

O recorte destaca a produção de artistas/artesãos das cidades de Petrolina/PE e Juazeiro/BA. Experiências, religiosidades, atitudes diante da vida, utopias constituem os trabalhos. Da Paz revela histórias em colchas de retalhos coloridos.  Fredson Adjar participa com sua instalação eólica formada por peixes e carranca alada e Mestre Lisboa promove uma releitura da carranca; também estão presentes as esculturas em textura de papel machê Angelita.

O imaginário ribeirinho rende a cerâmica de Celinha Barros; a garça do mestre Joseilson Barbosa; a cobra da artesã Naide Liberato. A religiosidade é expressa nas criações do artesão Sandro na escultura de Nossa Senhora Aparecida ou no São Francisco do mestre Biu dos Anjos; ou ainda na Nossa Senhora da Rapadura e seus penitentes de Dona Alda e a cerâmica branca de outra versão de São Francisco de Dona Lucia Rego.

Com curadoria de Carina Lacerda e Victor Brandão, essa exposição embalada pelas suaves ondas do rio propõe experiências poéticas singulares. As escolhas dessas obras estão pautadas do diálogo entre a criação artística e o posicionamento político no mundo contra as discriminações de raça, gênero e classe numa perspectiva da construção de um mundo mais igualitário.

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Histórias que vêm do lixo
Chorume
#Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
# 7

Chorume Doc – Foto André Amorim / Diulgação

Chorume Doc – Foto André Amorim

Chorume Doc – Foto André Amorim

Chorume Doc – Foto André Amorim

 

Chorume Doc – Foto André Amorim

Chorume, da Companhia Ortaet, de Iguatu, é um espetáculo de teatro documentário que investiga as relações e repercussões na/da vida a partir do lixão a céu aberto daquela cidade no interior do Ceará. A força propulsora do trabalho está calcada nos relatos de experiência /depoimentos das catadoras do bairro Chapadinha.

Alguns documentos encontrados no local são disparadores dessa encenação de teatro documentário. O projeto de montagem foi composto por Cleilson Queiroz e José Filho, contemplado no laboratório de teatro do Porto Iracema das Artes 2020, com tutoria de Marcelo Soler. O trabalho também foi agraciado com o edital de criação artística Arte Livre – Secult Ceará, por meio da lei Aldir Blanc 2020.

É preciso pensar o local que inspirou a peça antes de analisar a cena. O lixão está situado às margens da CE 282, no bairro Chapadinha, um dos mais pobres de Iguatu e desprovido de políticas públicas eficazes.

Um lixão a céu aberto é uma prova irrefutável da incompetência e do descaso do Estado em qualquer cidade brasileira, poderia dizer do mundo, mas vamos ficar no território nacional. Iguatu do Ceará não tem aterro sanitário adequado. É desse terreno inóspito, o lixão, que alguns cidadãos iguatuenses garantem sua sobrevivência precária.

O Chorume do título é definido como um líquido que se constitui do acúmulo de lixo e se infiltra na terra. Esse fluido infectante de cor escura que escorre do lixão produz odor nauseabundo, é proveniente de uma série de processos químicos, biológicos e físicos de decomposição. Sua ação polui os mananciais, a terra e o ar.

O Lixão de Iguatu, seu odor e sua fumaça não estão nas pautas de debates públicos, apesar da gravidade da situação e ameaça para a saúde coletiva da cidade, principalmente dos catadores do lixo do local.

Chorume Doc – Foto André Amorim

Chorume Doc – Foto André Amorim

A Companhia Ortaet expõe cenicamente alguns aspectos do impacto da cultura consumista no Planeta Terra, nos agravamentos na economia, esfacelamento da vida social, os entraves da política e sem dúvidas, comprometimentos na cultura. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925 – 2017) escreveu muito sobre a “liquefação” da sociedade contemporânea. Em Vida para Consumo (2008), por exemplo, Bauman expõe o processo da conversão de pessoas em mercadorias.

Como elucida o sociólogo polonês, o que a sociedade consumista busca não é satisfazer necessidades, mas estabelecer relações de poder a partir do ato de consumir. Excesso, desperdício e a produção de lixo estão associadas a isso.

A peça traça metáforas dos riscos associados ao consumismo e ao descarte. E realça a alienação.

Na cena estão Aldenir Martins, Betânia Lopes, Carla Moraes, Cleilson Queiroz e Ronald Carvalho. As atrizes e os atores começam vestidos do que chamam de figurinos burgueses. Mas o material das roupas, dos ternos, dos vestidos, dos adereços e até das luvas não é da melhor qualidade. Isso cria uma boa dobra da imitação da burguesia, eles mesmos não sendo, já chega como uma crítica ao universo do consumo em alguma camada, pois mira uma certa elite local sem nenhuma empatia com o mundo além de si e que se alimenta de uma filosofia barata e que fabrica muito descarte.

Os burgueses da peça brindam, se comportam como se estivessem em uma festa. Uns falam ao microfone, enaltecendo seus papeis de exploradores. Uma delas apresenta a boneca Barbie. O jogo do elenco expõe as estruturas de dominação, os mecanismos de poder dentro do próprio grupo.

Os poderosos lavam as mãos na cena. O poder está normalmente nas mãos dos homens brancos. As mulheres pobres e oprimidas pelo sistema, no desenvolvimento do quadro, ficam com a tarefa de servir, em algum momento. Enquanto a madame de classe média assume uma compulsão consumista, o corpo da mulher das classes mais modestas sofre da objetificação e é tratado como descartável, como muitos objetos no sistema capitalista. A montagem reforça o caráter de humilhação nesse desequilíbrio na ocupação dos espaços. A mulher limpa o chão e isso é uma ação concreta.  

A peça avança e os atores entregam folhetos de publicidade ao público. Compre, exigem os folhetos lançados para convencer qualquer um cair nas malhas do consumo.

E a peça faz um giro com os dois rapazes da encenação se livrando de suas roupas burguesas. De sungas vermelhas, eles protagonizam um jogo libidinoso. Uma das mulheres, também já com as roupas de baixo, aciona uma máquina de fumaça ou de matar mosquito, remetendo ao vapor das queimadas do lixão.

Algumas cenas ou microcenas devem ter uma lógica interna própria para mover a peça, mas não projeta tanto para fora quadro, para além de seus criadores. Parece alguma senha de difícil acesso. Essas representações proporcionam pouco acesso ao núcleo duro da obra e parecem ilustrar alguma coisa, mas já como algo sobrando do circuito. 

Quando passam a narrar os relatos de vida dos moradores da região do lixão, os atores exibem retratos das catadoras e catadores de materiais recicláveis. Apresentam os documentos dessa realidade. Instala-se ou amplia-se o “pacto documental” com o espectador.

O lixão funciona, nesse caso, como arquivo a céu aberto, onde são descobertos materiais que guardam histórias, e dos seus resíduos são criadas narrativas. Com alguns desses objetos, a peça discute o descarte.

A boneca, com a cabeça arrancada, nas mãos do ator, cumpre a função de documento. Encontrada no lixão, ela carrega e projeta os processos de violência contra a mulher, que são debatidos no espetáculo Chorume.

O cruzamento das vivências das gentes que moram no bairro e trabalham no lixão com as experiências dos artistas do elenco amplia a humanização das narrativas e situa o corpo da cidade de Iguatu. Esses procedimentos envolvem a plateia com as conversas ao pé de ouvido, a exibição das fotos e a confidência de peculiaridades das personagens e materiais que simbolizam sonhos/realizações, como o vestido de noiva.

A Companhia Ortaet de teatro é um dos grupos mais antigos do interior do Estado do Ceará e desde 1999 vitaliza cenicamente a cidade de Iguatu. Em 2014, foi reconhecida como “Entidade de Utilidade Pública” pela Prefeitura Municipal e Câmara de Vereadores de Iguatu. Desde sua fundação já encenou mais de 15 espetáculos.

Enquanto teatro documental, a peça Chorume tem ambição de retribuir ao pessoal ligado ao lixão a gentileza de compartilhar as vivências. E interferir na transformação daquela realidade. Como o posicionamento crítico do espetáculo, o grupo lança sinalizações de saídas a partir do teatro.

Com direção, dramaturgia e tutoria de Marcelo Soler e assistência de direção de José Filho a montagem faz escolas estéticas do teatro documentário e do teatro épico. As armações apresentam os documentos e um pouco do processo criativo. As saliências políticas e o humor corrosivo funcionam bem para acionar o pensamento crítico.

Chorume se permite a compor vários fragmentos do documentário e da narrativa fabular do consumo. Uma série de cenas são encadeadas para tratar da exploração, da miséria, perpassadas pela desigualdade histórica, reforçadas no período neofascismo bolsonarista.

Alguns ajustes nas passagens, nas conexões de cena podem potencializar esse Chorume já tão perspicaz da crítica social, na afirmação de sua territorialidade, na conexão com seu entorno, no desejo de humanização das teias sociais, na chamada para a reflexão da realidade.  

Há pensamento crítico e inventiva composição estética na cena fora dos grandes centros. Talvez seja importante reforçar isso. Que compõe e recompõe imagens desumanizadoras na perspectiva de libertar o imaginário.  

 

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Ledores no breu
Crítica
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#5

Ledores no Breu foi apresentado no Teatro Dona Amélia. Foto André Amorim / Divulgação

Participação do público em Ledores no Breu. Foto André Amorim / Divulgação

Dinho Lima Flor é um ator intenso, visceral. Sua atuação é marcada pela entrega, pela emoção e pela sintonia fina com a plateia. Rebento do teatro Ventoforte, do saudoso Ilo Krugli, ele se doa apaixonante enquanto intérprete. Sua Cia. do Tijolo foi tramada na convivência com Krugli. Essa trupe faz teatro contemporâneo alimentado pela seiva da cultura popular. Da melhor mistura de ethos e pathos, que conjuga o epos e a lírica, a depender do contexto.

Já no início a trupe paulistana seguiu os passos de Patativa do Assaré nos repentes, na poesia, na vida do artista cearense para erguer o belo trabalho Concerto de Ispinho e Fulô.

Além do lirismo, Cantata para um Bastidor de Utopias está carregada da porção política de libertação. Para falar dos anônimos em busca por justiça, a peça junta três eixos históricos: o enforcamento – em 1831 – de Mariana Pineda, jovem heroína que desafiou o autoritarismo do Rei Fernando VII bordando uma bandeira para os liberais; o assassinato de Federico García Lorca em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola; e a ditadura militar brasileira (1964-1985) e suas repercussões.

Com O Avesso do Claustro o grupo leva ao palco a trajetória de Dom Helder Camara (1909-1999), o Bispo Vermelho, “emblemática personagem nas históricas lutas de resistência política durante o regime militar e na aproximação da igreja católica com as demandas dos movimentos sociais”, como dizem os artistas do Tijolo, numa montagem que junta simbioticamente poesia, música e teatro.

Dinho Lima Flor em Ledores no Breu. Foto: André Amorim

Ledores no Breu participou da Aldeia do Velho Chico 2022. Foto: André Amorim / Divulgação

Ledores no Breu. Foto André Amorim /  Divulgação

Em Ledores no Breu – solo do pernambucano de Tacaimbó Dinho Lima Flor, sob direção de Rodrigo Mercadante – é o corpo do ator que conduz a plateia pela escuridão dos que não leem, uma espécie de cegueira para interpretar o mundo letrado e os feixes de luz que podem chegar com a alfabetização.

Paulo Freire, Patativa do Assaré, Frei Betto, Lêdo Ivo (com Os pobres na estação), Guimarães Rosa, Luis Fernando Veríssimo, Zé da Luz e mais recentemente Maria Valéria Rezende são convocades para a rede. E mais, sons e músicas de Cartola, Jackson do Pandeiro, Chico César, Manu Chao, Palavras, de Gonzaguinha e Samba da utopia, de Jonathan Silva (criado especialmente para a peça).

Canções, relatos, causos, episódios compõem essa teia dramatúrgica de descobertas emocionadas das letras – caso de Joaquim que compõe a primeira palavra, o nome da sua amada Nina, contada por Paulo Freire de sua experiência em sala de aula. E o lance da menina proibida pelo pai de estudar por ser mulher, que enfrenta a implacável ordem paterna e decide aprender a ler com a ajuda de uma amiga, com graveto na areia em vez de lápis e papel.

Ou a narrativa de Patativa do Assaré que diz que largou de ser “matador de passarinho”, que fazia por diversão como outros meninos da sua idade, e seguiu a imitar os cantos desses animais voadores.  

Como uma atuação ardente, Dinho Lima Flor passeia por vários estilos interpretativos, transita pela comicidade popular, vai ao exagero, testa a sutileza, comenta temas atuais, se avizinha do trágico. Muito habilmente cria seu jogo na relação com a plateia, assume a performance, convoca personagens, finge que encarna e sai. Cobra pelos índices de analfabetismo no Brasil em pleno século 21.

É uma exuberância de muitos teatros. Cumplicidade íntima com o público magnetizado na troca de afetos, danças e abraços carinhosos, materiais e simbólicos. Com a prosa/verso e o corpo desse ator, a palavra encanta.

O figurino branco vai sendo enodoado de carvão no decorrer da cena, o mesmo carvão que serve para escrever e provocar reações sensoriais. Carteiras escolares fazem parte da composição.  Rolos grandes de papel pardo são desenrolados para formar estradas e suportes para a escrita. A direção de Rodrigo Mercadante estimula ritmos, andamentos, revolucionando emoções do ator e agitando as sensibilidades do público.

Mulheres portam faixam com expressões como “Mais escolas e menos cadeias”, em um vídeo de manifestações.  Sabemos que o analfabetismo, o não letramento, é uma estratégia de subjugação dos governos não democráticos. Isso é um problema, diria até um crime, um confisco de direitos dos mais pobres – causa e consequência da falta de oportunidades; uma política de opressão, manutenção de privilégios muitas vezes associada a desvios de recursos.

Na Aldeia do Velho Chico, realizado em Petrolina no mês de agosto, no palco do Teatro Dona Amélia, do Sesc, com os espectadores também no tablado, magnetizados, a sessão não utilizou os recursos dos vídeos, mas eles fazem parte da obra.  

A palavra escrita com carvão em Ledores do Breu. Foto: André Amorim

Ledores no Breu – Foto André Amorim

Marcas de tirania – O iletrado

Deixei para analisar por derradeiro o eixo da peça que tem por texto Confissão de Caboclo, do poeta Zé da Luz.

Já escrevi outra crítica Ledores no Breu e segui o caminho da grandeza de Paulo Freire e da interpretação de Dinho Lima Flor, como faço até aqui. Mas tinha algo que me incomodava no espetáculo, que dessa vez ficou evidente.

Por não saber ler, um homem comete um crime contra sua companheira. Desde que foi publicado, o poema Confissão de Caboclo, de Zé da Luz, é reiteradamente lido / interpretado dessa forma. A ignorância aparece como a causadora da morte.

Mais além do analfabetismo que é apontado com o grande mal a ser combatido, o poema de Zé da Luz – um dos pilares do espetáculo – precisa de uma atualização crítica dentro da encenação.

A ignorância de uma determinada regra não é suficiente para inocentar quem a viola. As mulheres historicamente sofreram / sofrem opressões e violências de várias naturezas, em várias gradações.

É absolutamente insustentável que a cruel, odiosa e desumana tese de legítima defesa da honra tenha sido usada durante tanto tempo para proteger os homens acusados/autores de feminicídio. Foi sim usada como argumento por advogados que desdenharam os princípios da dignidade humana, da proteção à vida, da igualdade de gênero (que infelizmente ainda não existe em sua plenitude).

Muitos homens foram absorvidos com esse escudo após matar uma mulher, sob alegação do término ou traição em uma vinculação afetiva.

O poeta Severino de Andrade Silva, mais conhecido como Zé da Luz (1904 – 1965) foi um poeta popular paraibano, que publicava em forma de cordel. Escreveu entre outros Brasi Cabôco, A Cacimba, As Flô de Puxinanã, A Terra Caiu no Chão, Ai! Se Sêsse!…, Sertão em carne e osso.

Confissão de Caboclo encerra com a expressão “que crime não saber ler”, depois que o narrador descobre que Rosa Maria não o traiu, motivo que ele explica ao delegado de ter tirado a vida da mulher que ele diz que amava.

Alguns estudiosos apontam que o poema trata do analfabetismo como um crime social. É preciso mudar essa lente de leitura. Existe um crime de feminicídio. E o não letramento da personagem que mata não pode ser atenuante para o assassinato. Mulher não é objeto que pode ser descartada / assassinada quando não corresponde às expectativas.

No espetáculo Ledores no Breu o narrador confessa que matou Rosa Maria por suspeita que ela o traía com Chico Faria, seu antigo noivo. Não existe prova da traição. Apenas uma carta que o personagem-narrador não sabe decifrar. Por trás dessa carta é urdida a defesa dessa figura.

A personagem de Zé da Luz é apresentada como um homem bom, trabalhador e apaixonado por sua esposa.  

A questão que se apresenta é que o ator defende sua personagem como um homem que, que guiado por fortes emoções (“Cego de raiva e paixão”), assassina a mulher do poema com um facão. E isso é feito em camadas de envolvimento emocional com a plateia. Sua personagem é defendida com garra, recebendo os componentes mais humanizados, o que faz com que o feminicídio da ficção se torne um ato naturalizado dentro do contexto exposto.

Um feminicídio é um feminicídio. Falta essa dobra dentro do espetáculo. Pois todo o abraçamento em favor do autor da ação é narrado pelo ponto de vista do assassino. O espetáculo é composto de fragmentos e esse episódio da Confissão de caboclo está está dividido em dois momentos, entrecortados por outras situações e músicas.

Ledores no Breu é uma peça que estreou em 2014. Muitos avanços na esteira dos direitos da mulher ocorreram. E fica difícil receber o caboclo narrador apenas com o sofrimento que ele passa, sem fazer um giro de perspectiva desse pathos para a Rosa Maria assassinada. Algo de epos para problematizar a cena ou algum outro procedimento.

A cumplicidade amorosa, o envolvimento na peça não pode suplantar o fato de que uma mulher foi assassinada. Não existem motivos para uma mulher ser morta. E isso não está lá. A personagem marido não pode receber a indulgência da plateia enquanto o olhar para a mulher é de que essas coisas acontecem.

Então, creio que Ledores no Breu precisa de uma pequena revisão para honrar o que o grupo representa no cenário teatral e saudar os valores que são defendidos em seus espetáculos. O patriarcado continua ainda hoje, século 21, a naturalizar assassinatos de mulheres (cis e trans) feitos por homens rejeitados e desequilibrados, que encontram pretextos reais ou imaginários para suas terríveis atitudes. Mas não dá para deixar que arte comprometida com o humanismo faça romantização de um assassinato.

Não sei como isso poderá ser executado em cena. É contigo Mercadante. É contigo Lima Flor. É contigo Cia. do Tijolo. Romper com o que Paulo Freire chamou de “cultura do silêncio” e transformar os analfabetos em protagonistas de suas histórias é também expor a responsabilidade do relacionamento com o mundo ao redor.

 

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