Intensidade ou permanência. Há gente para tudo neste mundo. Uns preferem o furor e desfrutam com a máxima magnitude tudo que a existência oferece. Outros optam pela duração, sem grandes riscos. Na ficção também acontecem lances assim. Com muitas possibilidades de gradação nas escolhas entre os dois pontos. Em Vento forte para água e sabão, oitavo espetáculo e o segundo infanto-juvenil (o primeiro foi Outra Vez, Era Uma Vez, de 2008) da Companhia Fiandeiros de Teatro, a bolha Bolonhesa tentou se preservar, ficar parada no seu cantinho, sem grandes emoções. Mas Arlindo, a rajada de vento, a seduziu com o anúncio dos encantos do mundo. E Bolonhesa aceitou viver uma aventura incrível, de tocar e ser tocada pela essência das coisas.
A partir da metáfora dessa excêntrica amizade entre uma bolha de sabão e uma rajada de vento, os dramaturgos Giordano Castro e Amanda Torres criaram um texto que descama o sentido errático da vida e inexorável da morte, com uma roupagem lúdica. O musical trata de assuntos considerados mais espinhosos para os pequenos, como rompimentos de relações, traições, dificuldades, decepções e luto.
O diretor da companhia e do espetáculo André Filho aposta que é possível dialogar sobre absolutamente tudo com os miúdos. A dramaturgia toma corpo com músicas originais, nutridas de jazz e referências populares. E lembra que é preciso nos reconciliarmos com nossas crianças interiores, mais puras e frágeis, mas também repletas de coragem.
A peça está em cartaz no Teatro Hermilo Borba Filho, aos sábados e domingos, às 16h, até o final de maio. Participam dessa empreitada os atores Tiago Gondim, Daniela Travassos, Geysa Barlavento, Kéllia Phayza, Victor Chitunda e Ricardo Angeiras.
Na entrevista que segue, André Filho fala sobre a montagem de Vento Forte para Água e Sabão, além de temas como criação teatral e política cultural no Recife.
Serviço
Peça Vento forte para água e sabão
Quando: Sábados de domingos de maio, às 16h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho – Rua do Apolo, 121, Bairro do Recife
Quanto: R$ 5 (meia-entrada para todos nos dois primeiros fins de semana); R$ 10 (restante da temporada)
Mais informações: (81) 4141.2431 e 3355.3320
ENTREVISTA // ANDRÉ FILHO
A passagem do texto à cena é um momento de escolhas. Quais as opções em Vento Forte para Água e Sabão?
Vento Forte para Água e Sabão é um texto que traz várias discussões interessantes. Uma delas, se não a mais importante, é a temática da morte. Este tema é sempre repleto de muito tabu quando se escreve ou quando se encena para esse público específico. Mas a maneira inteligente e lúdica que os autores encontraram me cativou. Resolvi seguir então o caminho dessa discussão justamente pela contramão, ou seja falar sobre morte a partir da vida, o sopro da criação, a relação com o divino que vem de nosso pulmão. Procurei contrastar o macrocosmo e o microcosmo, aqui simbolizado pelo clássico e pelo popular respectivamente, mas sem mensurar valores de importância. Vida e morte, luz e sombra, ausência e conteúdo, tudo se complementa, assim como tudo que existe no universo. Gosto muito da musicalidade que a peça me propõe, neste sentido também procuramos dialogar com partituras populares e clássicas, fazendo referências que vão desde as antigas bandas de Jazz, até musicais mais contemporâneos.
Quais os caminhos que o texto indica?
O texto indica várias possibilidades de discussão além da vida e morte. Conceitos como tempo e espaço, novas descobertas, eternidade e efemeridade. Estas são apenas algumas possibilidades. É uma dramaturgia que não se prende apenas a cores, à magia, ao encantamento.
Giordano Castro já disse que quando escreve não se preocupa com a cena, como as coisas vão ser materializadas na cena. Como foi o processo de construção da peça?
Começamos pela desconstrução de que teatro para criança tem que ser bobo. Um texto como Vento Forte para Água e Sabão requer um olhar desprovido de preconceitos sobre o que deve ser dialogado com o universo da criança. Nosso processo iniciou-se a partir da ideia do sopro da criação, o sopro da palavra, do canto. Construir pontes entre coisas simples, como bolhas de sabão, planetas, estrelas. Brincar com o clássico e o popular esse foi o inicio do processo de construção, que ainda está em processo.
Que valores você destaca na peça?
Não gosto muito de destacar valores em uma obra de arte, prefiro falar em sintomas, valores soa para mim como algo pré-definido e majorado como sendo o politicamente correto. É uma história muito simples, de uma bolha de sabão e sua amizade com uma rajada de vento, duas entidades com essências tão diferentes uma da outra, mas que ao mesmo tempo se complementam. A bolha necessita do vento para existir e por sua vez o ar necessita da bolha para justificar a sua função de sopro, de flutuação. Talvez esse seja o grande sintoma, a tolerância às diferenças. Esse fator que é cada vez mais raro em nosso mundo de hoje.
Como a peça dialoga com o Brasil de hoje?
O Brasil de hoje é um país sem rumo político, com pessoas se agredindo mutuamente por diferenças raciais, religiosas, sexuais, políticas. Falta-nos a capacidade da tolerância, a compreensão de que por alguém ser, ou pensar, diferente de nós ele não precisa ser reprimido por isso. Nesse sentido acho a peça bem antenada com nosso momento atual. Falta-nos a capacidade de “poetizar”, de olhar o outro não como um estrangeiro mas como um parceiro na construção de uma sociedade mais justa. Que os ventos de um novo tempo nos levem, como bolhas de sabão, a conhecer outros ares melhores que este em que estamos vivendo.
É mais difícil encenar para crianças do que para adultos?
Sim, muito mais. Não apenas pela questão do critério da observação que a criança tem sobre a peça. O olhar da criança é sempre mais vertical que o olhar do adulto, justamente por estar livre de conceitos pré-concebidos. Mas é difícil principalmente porque precisamos primeiro agradar a nossa criança interior, e esta muitas vezes está adormecida há bastante tempo. Trilhar este caminho até a criança que está dentro de nós é um labirinto escondido entre tantos preconceitos de adultos que às vezes, durante esse caminho de descoberta, dá vontade de desistir e queremos ir pelo caminho mais fácil da caricatura. Esse foi, é e sempre será o maior desafio para quem trabalha com teatro para crianças. É um processo que leva tempo, mas bastante enriquecedor.
“A capacidade criativa dos nossos artistas de teatro é inversamente proporcional às ações de nossos gestores públicos para a cultura”
O que percebe do teatro pernambucano atual?
A pergunta é bastante ampla. Seria preciso um recorte mais objetivo para uma resposta mais precisa. Há vários caminhos para responder. Do ponto de vista da criação, vejo que vivemos um momento bastante interessante se olhamos pela ótica dos grupos. São eles que vêm oxigenando o debate mais intenso sobre o fazer teatral em Pernambuco. Não vai aqui nenhuma crítica a produtoras convencionais, absolutamente, mas a resistência dos grupos em discutir questões espinhosas vem sendo o grande diferencial do nosso teatro. O trabalho continuado é nosso grande trunfo. É ele que nos dá identidade, que nos alimenta de novas possibilidades e nos junta em torno de algo comum. No entanto ainda persiste o déficit de políticas públicas voltadas especificamente para este segmento, houve avanços é verdade, mas ainda tímidos. Lamento profundamente que tenhamos perdido o bonde da história com a morte do Plano Municipal de Cultura. Ali tínhamos várias possibilidades de ver o Recife dar um salto qualitativo no nosso fazer teatral. O fechamento de casas de espetáculos, a precariedade dos equipamentos das que ainda funcionam, a não abertura de Edital de Ocupação para o Teatro de Santa Isabel e mais recentemente a diminuição das linhas de crédito do SIC estadual, valores que já estavam defasados há mais de dez anos, são reflexos de que a capacidade criativa dos nossos artistas de teatro é inversamente proporcional às ações de nossos gestores públicos para a cultura. Mas o grande problema do nosso teatro não está na cena e sim na nossa falta de organização política. Isso tem sido o grande entrave para uma melhoria nas nossas condições de trabalho que se refletiria sem dúvida alguma num debate mais aprofundado de nossa estética local.
E o que é feito para o público infantil no Recife?
Recife sempre teve uma tradição de teatro para criança muito interessante. Há pessoas que trabalham sério neste segmento e fazem um trabalho com muita dignidade. A Companhia Fiandeiros, penso eu, deu uma contribuição importante para o teatro para infância em Pernambuco com a montagem do Outra Vez, Era Uma Vez… e agora estamos novamente buscando este público e estamos ávidos por encontrá-lo novamente. Mas claro que existem tentativas que buscam dialogar mais com a televisão e com o cinema do que com o teatro propriamente dito. A linguagem do teatro é densa de significados não apenas de expressão, de luzes ou de cores. Nesse sentido vejo bons trabalhos sendo feitos, apesar de toda limitação de espaço para apresentações e para ensaiar. Vi tão bons trabalhos para a criança nos últimos anos, mas eles não conseguem se manter por um tempo mais longo. Cumprem temporada e se encerram rapidamente. Falta espaços para apresentações, espaço para discussões, organização política. O Funcultura precisa sistematizar linhas de ações que valorizem mais o teatro para infância e juventude, mas a questão não é apenas financeira, creio se tratar também, como sempre, de formação.
“Quando falo em organização política me refiro especificamente ao nosso quintal, aqui no Recife”
E como você enxerga o teatro brasileiro?
Não sei se conseguiria traçar um pensamento sobre o teatro brasileiro. O que eu acho bacana de observar é que é possível identificar o fenômeno do teatro de grupo se fortalecendo em todo país. Recentemente estivemos em contato com alguns grupos do Brasil, mais especificamente do Paraná, São Paulo, Goiás e Rio de Janeiro. As dificuldades são as mesmas que qualquer outro coletivo em qualquer lugar do Brasil. O que nos diferencia é a organização e mobilização política. Em lugares como São Paulo e Rio de Janeiro há avanços significativos na política pública, onde podemos ver grupos fazendo residências e participando ativamente da gestão dos equipamentos administrados pelo Estado. Só consigo ver um caminho para nosso teatro dentro do contexto nacional, é o da organização política. E quando falo em organização política me refiro especificamente ao nosso quintal, aqui no Recife. Não adianta fortalecer mobilizações nacionais e esquecer de que é aqui, a nossa casa que precisamos arrumar primeiro. É impossível não perceber que onde há um processo de formação continuado em teatro o resultado estético é nitidamente modificado.
Qual é a peça de teatro que você mais gostou de fazer? Como diretor e intérprete?
Não dá para especificar uma peça apenas, todas as peças que dirigi para a Companhia Fiandeiros têm em si momentos que foram marcantes no processo de criação, O Capataz de Salema foi um momento bacana, Vozes do Recife, o Outra Vez, Era Uma Vez…, foi um momento bem bacana porque além de dirigir também escrevi o texto e fiz as músicas, enfim. Também gostei muito do processo de Noturnos. Mas particularmente eu gostei muito da experiência de ter montado Vento Forte para Água e Sabão, foi mais uma oportunidade de mergulhar na minha criança e de olhar o mundo através de seus olhos. Fiz recentemente um trabalho como intérprete, sob a direção da professora Marianne Consentino que foi muito enriquecedor. Fizemos um solo a partir da obra A Tempestade, de William Shakespeare. Foi um momento muito especial pra mim e que eu destacaria.
O que é preciso para ser um “bom” encenador?
Um “bom” encenador? Poxa, como responder isso se não sou nem nunca pretendi ser um. Apenas procuro fazer um teatro que busca dialogar com a plateia, ser compreendido e me sintonizar com o mundo à minha volta. Uma vez vi uma entrevista com Abujamra que ele dizia que “ser encenador é a arte de ser dispensável”. Acho que é por aí. O que é mais bacana é que nosso trabalho é completamente invisível, quem brilha no palco é o ator. O trabalho do diretor é escrever no palco uma dramaturgia, escrita ou não, de maneira poética. Eu acho que para ser um bom encenador a primeira coisa que se tem a fazer é compreender que seu trabalho é invisível e que a cada novo processo se volta à estaca zero, do aprendizado. Quando isso não acontece corremos o risco de ficarmos repetitivos e presos ao passado. O tempo do teatro passa e não volta. Não adianta. Quanto mais tentarmos voltar ao que nos deu brilho um dia, mais nossa luz se apagará. Toda vez que penso nisso sinto quanto estou distante de ser um bom encenador.