Algumas coisas podem aquecer nossos corações. Em meio a tantas notícias tristes de violência e abandono, há pulsações que vem das Artes Cênicas, e chegam para inundar de energia e resistência alguns palcos do Recife. Vozes que aumentam o tom para falar de assuntos urgentes são apresentadas na programação do Festival de Teatro do Agreste – FETEAG e no projeto Luz Negra: O Negro em Estado de Representação. O FETEAG, dos curadores Fábio Pascoal e Marianne Consentino, chega à 27ª edição com atrações no Recife e em Caruaru e tem a Africanidade como tema em peças e debates que tratam de preconceito e identidade. Já o Luz Negra, articulado pelo O Poste – Soluções Luminosas, que começa nesta quinta-feira (19) e segue até o dia 29, tem como principal foco o protagonismo do negro no teatro. Esses dois eventos, que ocorrem em paralelo na cena teatral no Recife (o Feteag também em Caruaru) impulsionam estados de experimentação e reflexão sobre questões urgentes.
Black off, da companhia de teatro Manaka Empowerment, abriu ontem no Teatro Hermilo Borba Filho lotado (pouco mais de 100 pessoas) a programação do Feteag. A atriz e diretora sul-africana Ntando Cele, que mora na Suíça, não poupa ninguém. Com ironia, sarcasmo, o espelhamento atravessado, a artista mira os clichês que envolvem preconceito racial e a naturalização do racismo. Ela mistura performance, vídeo, música punk e comédia num espetáculo porrada, cheio de camadas, inteligente e com gradações do riso, ao reflexivo até a explosão do rock politizado.
A encenação é dividida em dois atos e três movimentos. No primeiro ato, a atriz apresenta a personagem Bianca White, que reproduz discurso e postura racistas de forma bem ácida. Ntando Cele aparece em versão “whiteface”, com rosto pintado de tinta branca e peruca loira, lentes azuis, luvas e um quimono. Mas, como ela já afirmou, sua intenção em Black Off não é o reverso do racismo, mas a expressão da sua subjetividade como mulher negra e a experiência que ocorre na sua pele.
Ntando Cele satiriza e debocha do olhar e hábitos da classe privilegiada na banalização do preconceito. Em algum momento ela pergunta: “como chamam os negros no Brasil? Ou não os chamam? Há negros aqui?”. E em outro faz uma “dança tribal”, vestida com uma sacola estampada, para situar a visão que o mundo ocidental tem da África.
Com humor ferino, ela desliza por expressão grotesca da personagem que reflete o pensamento que diminui o outro a partir da cor da pele. A artista achincalha o comportamento de gente branca. Bianca White exalta os valores do capitalismo com seu incentivo ao egocentrismo e à futilidade.
Com suas frases de efeitos, pausas, dancinhas ela leva o racismo ao ridículo. “Pense em todas as coisas brancas que há em você, seus ossos, seus dentes… Sente-se melhor?”, disse ao convidar uma pessoa da plateia para refletir no palco. A proximidade com a cena também aditiva a cumplicidade com o público.
Sua pontaria é certeira e ela mira na arte e no seu consumo. “Os negros fazem muito sexo e estão sempre cansados. Por isso não vão ao cinema, ao teatro e não entendem arte complicada”, comenta a personagem. E faz duas revelações dessa arte. Na primeira, enche a boca com pequenos objetos e sacode os cabelos louros; na segunda, põe pregadores de roupa na face e solta uma música sobre prevenção do Ebola. Ela faz chacota até da ideia dos espetáculos contemporâneos e da sua ótima “banda de jazzistas brancos”.
No segundo movimento do primeiro ato, Ntando retira a maquiagem e a peruca e. diante da câmera, expõe seu rosto ampliado no telão. São muito potentes as fusões dos rostos branco de Branca White e negro da artista. Imagem aumentada dos olhos, as manchas da pele, os poros, da boca, bochechas. Essas dimensões provocam estranhamento.
No segundo ato, totalmente sem maquiagem, ela protagoniza um show de rock em alta voltagem crítica. A artista começa dizendo “Para as pessoas brancas que adoram ajudar a resolver os problemas dos outros. Por favor, parem”. Ntando – que está grávida – comenta que as pessoas vão achar o filho dela fofo nos primeiros anos de vida, mas, quando crescer, será só “mais um negro”.
Em atitude de enfrentamento, no vocal de uma banda de brancos, sua postura é punk. Letras diretas, som forte, em busca de empoderamento. É luta. “Fuck yourself. Não precisamos de vocês”, grita.
A articulação dos pensamentos racistas de sua personagem debochada, divertida e crítica é desconcertante. Um espetáculo que provoca do riso solto de stand up comedy à reflexão densa de questões complexas.
SERVIÇO
Black Off, com a artista sul-africana Ntando Cele,
Quando: Nesta sexta-feira, às 20h
Onde: Teatro Rui Limeira Rosal, do SESC Caruaru
Quanto: Gratuito
Agenda dos espetáculos no post 27º Feteag e Mostra Luz Negra estão entre as atrações da agenda