Arquivo do Autor: Pollyanna Diniz

Para que pode servir uma poética identitária? Ou sobre o beco-sem-saída de uma contracultura atual*
Crítica do espetáculo Res Publica 2023

Res Publica 2023 está em cartaz no CCSP até 10 de novembro. Foto: Priscila Prade

*Crítica escrita por Stephan Baumgartel, professor da Universidade do Estado de Santa Catarina/Programa de Pós-Graduação em Teatro. Colaboração especial para o Satisfeita, Yolanda?

Há uma vertente de mestres espirituais conhecida no mundo oriental como os malamati, os mestres do caminho da culpa e da humilhação. São mestres que assumem quase que teatralmente a culpa de outras pessoas, com a intenção de criar situações que servem como oportunidade de ensinamento do caminho do amadurecimento da consciência humana.

Talvez seja esse caminho uma ideia que atravessa mais ou menos, (in)conscientemente, a construção do espetáculo RES PVBLICA 2023, da companhia A Motosserra Perfumada, que assisti no Centro Cultural São Paulo (CCSP), no sábado do dia 26 de outubro de 2019. Seis personagens instalados num apartamento que mais parece um bunker do que um lugar de convivências. Personagens apresentados numa espécie de prólogo como figuras dotadas de clichês e contradições fixas. Estão juntos, mas não sabemos ou entendemos se eles de fato convivem. Cada um em seu mundo e juntos no mesmo espaço. Vivem seus dramas e conflitos afetivos, sexuais, musicais, morais ou amorais – todos declarados pelas figuras ficcionais como problemas existenciais, num contexto em que, lá fora, patrulham os neofascistas de plantão. Ou seja, nesse momento, o paroxismo do mundo privado deve ser visto como força política.

Na tentativa de descrever a poética da cena, quem viveu uma São Paulo dos anos 80 talvez pense no clube Madame Satã, no início da new wave e do pós-punk brasileiro. A comparação não me parece errada, se não fosse a insistência forte do texto na ameaça de uma caça aos amorais, às minorias desviantes da moralidade normatizada. Uma ameaça que paira implacavelmente sobre o mundo ficcional da montagem e até motiva, de certa maneira, o tom ora desesperador, ora niilista, ora quase paranoico presente nas ações e interações das figuras. Uma ameaça, entretanto, que existe concretamente em muitos lugares do país, com consequências nefastas e destruidoras para as pessoas que pertencem a esses grupos. Contra esse fundo, a montagem afirma sua vitalidade, sobretudo pela música pulsante, mas também por meio de atuações vibrantes, que buscam uma teatralidade claramente maior que a vida empírica ou ostensivamente menor, quase minimalista.

Um tom de deboche perante a moralidade normatizada não falta, como também não falta, para que possa desenvolver sua eficácia, a provocação simbólica de colocar o público ora como cúmplice da cena ficcional, ora como representante da maioria silenciosa que apoia, com sua inércia, o espetáculo neofascista. Os tempos, contudo, são mais difíceis do que aqueles anos 80, pois são mais abertamente brutais e intolerantes hoje. Nessa situação, todos nós estamos tentados a nos blindarmos em discursos identitários.

Nisso reside o maior desafio da montagem e, talvez, o beco-sem-saída da abordagem denominada por mim de “malamati”: como mostrar ao público que sua cumplicidade não é só com os gestos revoltados de uma contracultura (que, aliás, há tempo perdeu seu horizonte utópico), mas também com os desdobramentos monológicos de suas vertentes identitárias? Como apresentar a sintomática desse mal-estar a partir de uma posição implicada no sintoma, e ao mesmo tempo provocar uma reflexão crítica? Mas, crítica a partir de que horizonte? Apenas a partir da insustentabilidade dessa contracultura como alternativa à moralidade normatizada? Como lidar com o problema de que (quase) todos no público sabemos dessa ameaça e concordamos sobre o nome do inimigo? Como tornar esse (quase) submundo identitário interessante para além do primeiro reconhecimento de seus impasses? Nesse sentido, a montagem precisa lutar constantemente contra a absoluta ausência de desdobramentos e conflitos produtivos que esse cenário identitário, de moralistas e amoralistas, pode gerar. A atuação cênica, às vezes um tanto histérica, ganha sua justificativa aqui: de ser não apenas sintoma de um desespero temático, mas também da falta de um embate dinâmico e dialético que acredite na possibilidade de sua transformação qualitativa. Não há horizonte de superação, mas a exposição do beco-sem-saída atual, criado também por certa contracultura ensimesmada.

Espetáculo tem texto e encenação assinados por Biagio Pecorelli. Foto: Priscila Prade

Se a montagem investe durante boa parte de sua apresentação na cumplicidade do público com essa contracultura, tentando sutilmente fazer-nos aceitar o monologismo dos personagens por meio de uma vitalidade visceral da apresentação, ela muda de tom no final. Primeiro, por nos lembrar em forma de projeções gravadas de alguns incidentes de perseguição brutal às minorias presentes na ficção da cena, sobretudo a transexuais. Se essa tentativa de certa maneira introduz quase uma moral da história que talvez duvide do gesto crítico anterior e busque forçadamente acusar o público de manter-se inerte perante o tamanho do problema, o mesmo não posso dizer da última cena do espetáculo, quando a atriz Camila Rios chama ao palco o cachorrinho que foi comentado no mundo ficcional como pertencente aos moradores. O cachorro aparece vestido de uma capa de couro sobre a qual foi costurada uma suástica. Nesse gesto, o espetáculo me parece tentar estabelecer um horizonte autocrítico também: esse mundo ficcional da cena não é um contra-mundo, mas compartilha a lógica monológica dos neofascistas?

Dessa maneira, o beco-sem-saída se completa e o caminho de assumir a culpa de todos se abre para que encontremos uma solução fora das condições colocadas pelas estratégias que motivam o mundo ficcional e empírico apresentados na peça. Para tal, talvez deva-se perguntar quais são os grupos ausentes nesse mundo do bunker? Os trabalhadores formais e informais, o “precariado” novo, a pequena burguesia instavelmente ocupada em suas atividades econômicas – em outras palavras, aquela parcela de um possível público que não ganha nada concretamente ao adotar posições moralistas e identitárias, pois essas posições não resolvem nem atenuam a pressão econômica que a leva para o campo dos “perdedores” da sociedade. Em outras palavras, a saída que a peça não sugere diretamente, apenas por meio da criação do beco-sem-saída de uma política moralista, teria que ser uma ponte crítica para o imaginário desses grupos. Uma ponte para a qual uma abordagem crítica focada na política identitária não pode ser outra coisa que uma armadilha bem-intencionada.

Serviço: 
Res Publica 2023, d’A Motoserra Perfumada
Quando: De quinta a sábado, às 21h, e aos domingos, às 20h. Até 10 de novembro
Onde: Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1000, Paraíso)
Quanto: R$40 e R$20 (meia-entrada). Os ingressos são vendidos pela internet no site Ingresso Rápido e na bilheteria do teatro duas horas antes do início da peça
Duração: 100 minutos
Classificação indicativa: 16 anos
Capacidade: 100 pessoas

Ficha técnica:  
Texto e direção artística: Biagio Pecorelli
Elenco: Biagio Pecorelli, Bruno Caetano, Camila Rios, Edson Van Gogh, Jonnata
Doll e Leonarda Glück
Diretora de produção: Danielle Cabral
Desenho de luz: Cesar Pivetti
Assistente de iluminação e operador de luz: Rodrigo Pivetti.
Preparação Viewpoints: Guilherme Yazbek
Assistente de direção: Dugg Monteiro
Cenário e figurinos: Rafael Bicudo e Coko
Design de som/sonoplastia/trilha sonora: Dugg Monteiro
Produtoras de operações: Victória Martinez e Jessica Rodrigues
Arte de divulgação: Bruno Caetano
Fotos de divulgação: Priscila Prade
Assessoria de imprensa: Pombo Correio
Realização: A MOTOSSERRA PERFUMADA
Produção geral: DCARTE E CONTORNO

 

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Artistas realizam ato contra censura

Abrazo terá apresentação gratuita, contra a censura. Foto: Rafael Telles

A temporada do espetáculo Abrazo, da companhia potiguar Clowns de Shakespeare, na Caixa Cultural Recife, ainda foi divulgada por um anúncio no Jornal do Commercio desta sexta-feira (13). O grupo deveria cumprir a última semana de apresentações da peça, com mais quatro sessões, mas a temporada foi cancelada no sábado passado, sem explicações, já com o público aguardando na fila para ver a segunda apresentação do dia. (Confira nossa matéria anterior)

Como resposta à atitude da Caixa Cultural Recife, os artistas do Clowns de Shakespeare e do Recife se mobilizaram. O resultado é uma apresentação única no Teatro Apolo, no bairro do Recife, que vai acontecer neste sábado (14). Todos vão se encontrar na Praça do Arsenal, às 15h, mesmo horário em que deveria começar a primeira sessão na Caixa. De lá, haverá uma caminhada até a instituição, onde será lido um manifesto, e depois o grupo segue para o Apolo. A entrada no teatro municipal será gratuita.

O ato em protesto contra a censura foi uma iniciativa dos movimentos Batendo o Texto na Coxia e Virada Cultural do Teatro do Parque, mas artistas de diversos grupos da cidade, movimentos sociais, e a sociedade em geral devem participar da manifestação. O festival Reside, inclusive, mudou o horário e o local da palestra Festivais e a Economia Criativa, com Márcia Dias, “Para que todos possam estar presentes na manifestação contra a censura e em solidariedade ao grupo Clowns de Shakespeare”, diz a chamada do facebook da Remo Produções. A palestra que seria às 14h, no Sesc Casa Amarela, será às 18h, no Apolo mesmo.

Ontem (13), o Clowns de Shakespeare divulgou uma nota oficial, informando que “foi aberto um processo judicial apresentando um pedido de tutela antecipada em caráter antecedente, junto à 2a Vara Federal da Justiça Federal/PE”.

Confira a nota oficial do grupo:

Este sábado marcará uma semana desde o cancelamento da segunda sessão da obra Abrazo, na Caixa Cultural Recife.

Desde então, as tentativas de comunicação com a Caixa tiveram retornos inconsistentes, resumindo-se a alegar que havíamos infringido o inciso VII da Cláusula Quarta, que prevê que a contratada seja obrigada a “zelar pela boa imagem dos patrocinadores, não fazendo referências públicas de caráter negativo ou pejorativo”, e que isso teria ocorrido no bate-papo realizado após a primeira sessão.

Ainda sem ideia do que poderia ser alegado, uma vez que não reconhecemos nada que pudesse gerar esse tipo de reação, e diante da ausência de informações adicionais, não conseguimos imaginar outra razão para essa recisão que não seja censura ao nosso trabalho e pensamento.

Dessa forma, nesta quinta, 12/09, foi aberto um processo judicial apresentando um pedido de tutela antecipada em caráter antecedente, junto à 2a Vara Federal da Justiça Federal/PE.

Paralelamente, com muita alegria e comoção tomamos conhecimento da criação de uma ação em protesto contra a censura numa iniciativa dos movimentos “Batendo o Texto na Coxia” e “Virada Cultural do Teatro Parque”, que rapidamente ganhou adesão de inúmeros grupos, movimentos sociais, artistas e da população em geral.

Agregando força a esse ato, e graças ao apoio de muitos parceiros, conseguimos uma pauta no Teatro Apolo, e lá faremos uma apresentação do espetáculo ao final do ato, que terá como concentração a Praça do Arsenal, às 15h (horário que iniciaria a primeira sessão), de lá seguiremos para a frente da Caixa Cultural, e então partiremos ao Teatro Apolo, onde faremos a apresentação, com acesso gratuito, mediante a limitação de lugares da casa.

Assim, acreditamos que fecharemos a primeira etapa dessa jornada tão intensa, difícil, mas ao mesmo tempo repleta de suporte e carinho de tanta gente, novos e antigos parceiros, instituições e pessoas que acreditam nos mesmos princípios que nós, e que lutam por um país livre e democrático.

Convocamos todos a juntarem-se a esse movimento neste sábado, 14 de setembro, às 15h, na Praça do Arsenal, Recife, com todos de camisas e bexigas brancas!

Abrazos a todas e todos!

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Críticas da colonização na América Latina

Há Mais Futuro que Passado, do Complexo Duplo. Foto: Nityama Macrini

As Veias Abertas da América Latina: Cinco Séculos de Pilhagem de um Continente, de Eduardo Galeano (mesmo autor de O livro dos abraços, que inspirou a peça Abrazos, do Clowns de Shakesperare, cancelada na Caixa Cultural Recife), norteou a programação da terceira edição do Crítica em Movimento, realizado pelo Itaú Cultural. O evento, que tem curadoria assinada pelo jornalista e crítico Valmir Santos em parceria com o instituto desde o primeiro ano, começa nesta terça-feira (10) e segue até 15 de setembro.

Comentando a escolha pela obra de Galeano, Valmir Santos chama a atenção para a sua atualidade negativa. “Em 2010, quando a obra de 1971 ganhou uma nova tradução e edição brasileiras, o autor uruguaio declarou: ‘A história não quer se repetir – o amanhã não quer ser outro nome do hoje –, mas a obrigamos a se converter em destino fatal quando nos negamos a aprender as lições que ela, senhora de muita paciência, nos ensina dia após dia’.

A programação inclui cinco debates, cinco espetáculos e uma oficina. A abertura será com a discussão “O Brasil pertence à América Latina?”, com a participação de Julián Fuks, escritor, Denise Mota, jornalista, e Mateo Piracés-Ugarte, produtor e multi-instrumentista, integrante da banda Francisco, el Hombre. A mediação é do gestor cultural, dramaturgo e diretor Pedro Granato.

Os espetáculos, por diferentes perspectivas, repercutem a colonização na América Latina. A programação abre com Pundonor, da companhia argentina El Patrón Vázquez, que tem como personagem central uma professora de sociologia. O diretor e dramaturgo do grupo, Rafael Sprégelburd, participa de um debate na sexta-feira (13).  “Ele atua há 25 anos em Buenos Aires e é fundador do grupo El Patrón Vázquez. Também transita muito pelo cinema, como no filme O Crítico (2013), de Hernán Guerschuny, no qual interpreta resenhista que se vê preso ao enredo de um tipo de filme que despreza, a comédia romântica”, pontua Valmir Santos.

Na sexta-feira (13), é a vez de Há Mais Futuro que Passado – Um Documentário de Ficção, do Complexo Duplo, com direção de Daniele Avila Small, espetáculo cuja equipe é toda formada por mulheres, discutindo o lugar da mulher na história da arte na América Latina.

Cartas de Niños. Foto: Divulgação

Cartas de Niños, com direção de María Sepúlveda, é inspirada em cartas e desenhos escritos por filhos de presos políticos, que viveram a infância na época da ditadura no Chile. A apresentação é no sábado (14), às 18h. “Num sincronismo involuntário da agenda dos artistas, mas de relevância poética e inclusive civilizatória, já que nesta semana é lembrado o golpe que instaurou a ditadura militar no Chile, em 11 de setembro de 1973, vamos receber na cidade um espetáculo para crianças narrado a partir da ótica de um garoto que teve o pai sequestrado naquele período”, destaca Santos.

Já às 22h, também no sábado, o grupo argentino La Mucca Teatro encena Nadie Murió de Amor Excepto Alguien Alguna Vez, com direção de Guilherme Baldo, que leva ao palco mecanismos violentos de sobrevivência.

A programação termina no domingo com a participação da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, que traz Violeta Parra – Uma atuadora!, performance cênico-musical que tem como foco central a cantora e violonista chilena.

O Crítica em Movimento terá ainda uma oficina intitulada Dramaturgia em Movim(i)ento, com a atriz, diretora e professora Malu Bazán, entre os dias 11 e 14 de setembro.
Serviço:

Crítica em Movimento

10/09 (terça-feira)
20h: Debate – O Brasil pertence à América Latina?
Com Julián Fuks, Denise Mota e Mateo Piracés-Ugarte. Mediação: Pedro Granato

11/09 (quarta-feira)
19h: Debate – Adiós Paraguay, uma pesquisa de campo por ideias e rituais
Com Teresa González Meyer, Cleiton Pereira e Daniele Santana. Mediação: Valmir Santos

12/09 (quinta-feira)
20h: Pundonor

13/09 (sexta-feira)
16h: Debate – Dramaturgias e fricções de recepção crítica
Com Rafael Spregelburd e Guillermo Baldo. Mediação: Marcia Nemer Jentzsch
20h: Há Mais Futuro que Passado – Um Documentário de Ficção

14/09 (sábado)
16h: Debate – A expansão de formas e ideias no teatro para crianças e adolescentes
Com María Sepúlveda, Amauri Falsetti e Luvel García Leyva. Mediação: Brenda Campos
18h: Cartas de Niños
22h: Nunca Nadie Murió de Amor Excepto Alguien Alguna Vez

Violeta Parra – Uma Atuadora!. Foto: Divulgação

15/09 (domingo)
16h: Debate – A relevância das trocas artísticas e culturais entre países latinos
Com Luis Alonso-Aude, Felipe Vidal e Cris Diniz. Mediação: Alexandre Roit
19h: Violeta Parra – Uma Atuadora!

Quanto: Gratuito
Onde: Itaú Cultural (Avenida Paulista, 149, São Paulo)

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Correspondência de artista, Brasil de hoje, teatro documental e urgente

Espetáculo Cartas foi montado com o apoio do Aprendiz em Cena. Foto: Coletivo Caverna

Intensos 11 anos, entre 1965 e 1976. O Brasil enfrentava os primeiros tempos de uma ditadura militar, enquanto os escritores, dramaturgos, homens de artes, Hermilo Borba Filho e Osman Lins se relacionaram por meio de cartas. Uma troca que não acontecia de maneira esporádica: às vezes, era só o tempo de chegar uma, que a devida resposta já era prontamente escrita e enviada. Desde que tomou conhecimento da existência dessas cartas, Luiz Manuel, que estreou como diretor justamente com A Rã, espetáculo baseado no conto homônimo de Hermilo Borba Filho, idealizou levá-las ao palco. Cartas estreia neste sábado (27), encerrando a 17ª edição da Semana Hermilo Borba Filho, que este ano também homenageou Osman.

O projeto foi montado com o suporte de “O Aprendiz em Cena”, projeto que oportuniza o trabalho de um diretor iniciante com um elenco já mais experiente. Fabiana Pirro, Paulo de Pontes e Claudio Lira conduzem o espectador por uma dramaturgia construída como se fosse realmente uma carta. Além das conversas entre Hermilo e Osman, a obra Guerra sem Testemunhas, de Osman, também serve como base para o texto; “Lendo a correspondência, eu me fascinei sobre o quanto eles trocavam com relação à vida profissional. Editamos as cartas, escolhemos alguns trechos, mas são as palavras dos dois, além dessa adaptação de Guerra sem Testemunhas, que fala sobre a guerra que é escrever, o quanto ele escreve em guerra com si mesmo, com a sociedade, com o editor”, explica Luiz Manuel.

Osman foi aluno de Hermilo no Recife, mas pela correspondência profícua os dois realmente se tornariam amigos, testemunhas íntimas das trajetórias literárias um do outro. De acordo com Nelson Luís Barbosa, que estudou esses escritos, “(…) as cartas foram exclusivamente um espaço de discussão de questões relacionadas essencialmente aos projetos literários de cada um, seus embates com o mercado editorial e a dificuldade de conseguir editores conscienciosos que efetivamente respeitassem as obras e pagassem justamente por elas”, explica em artigo.

Apesar da centralidade das discussões sobre as próprias obras, há também menções à situação política do país e às vidas pessoais dos dois. Eles falam, por exemplo, sobre suas separações, os  novos casamentos, a relação com os filhos. “Cada carta que lia, eu me emocionava. Quanta intimidade. Eu tinha a sensação de estar invadindo a vida deles. Por mais que nas cartas eles falem muito do trabalho, das angústias, dos editores, o pouco que eles falam da intimidade é muito pesado, muito significativo”, conta Fabiana Pirro.

No elenco, Claudio Lira, Fabiana Pirro e Paulo de Pontes. A direção é de Luiz Manuel

Além disso, mesmo que as correspondências tenham se dado nas décadas de 1960 e 1970, as similaridades com o país de hoje são incontestáveis. “É o Brasil de agora, do fascismo, da censura, a falta de dinheiro, a falta de espaço para os artistas. Caminhamos ou estamos andando para trás? E por serem pessoas políticas no caráter, na forma de vida, de encarar o ofício, eles nos encantam. Eu sou muito apaixonada por Hermilo, já era. Ele diz que enquanto tiver máquina e papel, vai continuar protestando. E Cartas é nosso manifesto político para esse tempo”, complementa a atriz.

A encenação utiliza dispositivos do audiovisual e dialoga com montagens de grupos como Agrupación Señor Serrano (coletivo espanhol que apresentou Uma casa na Ásia no Janeiro de Grandes Espetáculos em 2016), o colombiano Mapa Teatro e o potiguar Carmin. “Na realidade, fui buscar referências do teatro ibero-americano desde os anos 2000. Chegamos a trocar e-mails com os integrantes do Agrupación”, revela Luiz. No espetáculo, os atores se filmam em cena, há projeção de imagens e vídeos pré-gravados. O grupo também enviou uma carta, escrita pelo próprio coletivo para algumas pessoas, e vai ler respostas escolhidas.

Cartas, que tem a assinatura do Coletivo Caverna, faz duas sessões encerrando a Semana Hermilo; e uma curtíssima temporada com mais duas sessões em dois domingos de agosto, 11 e 18.

Ficha técnica
Dramaturgia: Dramaturgia coletiva, a partir das correspondências entre Hermilo Borba Filho e Osman Lins e do livro Guerra sem Testemunhas, de Osman Lins
Direção: Luiz Manuel
Elenco: Fabiana Pirro, Claudio Lira e Paulo de Pontes
Assistente de direção: Gabriel de Godoy
Iluminação: João Guilherme e Alexandre Salomão
Trilha Sonora/Desenho de som: Lara Bione
Figurinos: Giselle Cribari
Assistente de figurino: Fabiana Pirro
Identidade visual: Aurora Jamelo
Assessoria de imprensa: Tatiana Diniz
Direção de Produção: Naruna Freitas

Serviço
Cartas
Quando: 27 e 28 de julho, sábado e domingo, às 20h (encerrando a 17ª edição da Semana Hermilo), e nos dias 11 e 18 de agosto, às 19h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho (Cais do Apolo, 142, Recife)
Quanto: As sessões dos dias 27 e 28 têm ingressos gratuitos; as senhas serão distribuídas com uma hora de antecedência. Para as sessões dos dias 11 e 18 de agosto, os ingressos custam R$ 30 e R$ 15
Informações: (81) 3355-3321

 

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Mostra de Mulheres Pretas discute visibilidade

Aline Gomes performa Mãe Maria. Foto: Shilton Araújo

Nesta quinta-feira, 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela, líder quilombola do século 18, O Poste Soluções Luminosas abre a programação de uma iniciativa fundamental: a PretAção – I Mostra de Mulheres Pretas.

A invisibilidade da mulher negra é um dos muitos reflexos do racismo institucional. Quando pensamos no contexto da arte, essa realidade não é diferente. Talvez por isso, os trabalhos que compõem a PretAção tratem sobre representatividade, o enfrentamento cotidiano do preconceito e de todas as formas de violência sofridas pelas mulheres negras.

“Queremos visibilizar todas essas artistas que estão participando da primeira edição da PretAção, visibilizar as que vieram antes de nós e, inclusive, quem vem depois, como Eloísa, minha filha, que tem só dois anos. A gente quer deixar esse espaço de representatividade, esse lugar de fala, para que outas pretas, as que estão vindo, as que vão chegar, possam assumir esse lugar. E que o discurso não seja de resistência, mas de existência”, afirma Agrinez Melo, uma das idealizadoras da ação, que não conta com nenhum apoio governamental.

Muitos dos espetáculos e performances transitam pelo documental, pelo autobiográfico, como é o caso de Mi Madre, de Jhanaína Gomes, que traça relações entre a sua história e as histórias de mulheres da sua família, explicitando uma relação de tensão entre a presença masculina e feminina. Ou do solo da própria Agrinez Melo, Histórias Bordadas em Mim, um convite para um chá e para ouvir sobre a trajetória da atriz.

Na PretAção, essas mulheres pretas, artistas, são protagonistas das próprias narrativas. “Os quatro espetáculos falam de nós mesmas, das nossas experiências, das novas vivências ressignificadas. Ressignificar é uma palavra forte neste momento. A partir das nossas vivências, falamos de várias questões, como empoderamento, a reafirmação da mulher negra na sociedade e da artista negra nesse espaço, questionar o porquê dessa invisibilidade”, comenta Agrinez. Para a atriz, a mostra é também um espaço de irmandade. “É uma mostra de comemoração, que festeja o nosso encontro, a nossa união. E nada melhor do que essa data, que nos representa”.

A programação montada por Agrinez e Naná Sodré, ambas do grupo O Poste Soluções Luminosas – um espaço de referência e resistência do teatro negro em Pernambuco e no Brasil –, em parceria com várias artistas, inclui espetáculos, performances e rodas de diálogos.

A programação vai até o próximo domingo (28), no O Poste Soluções Luminosas (Rua da Aurora, 529, Boa Vista). Os ingressos custam R$ 15 + 1 quilo de alimento não perecível ou R$ 20. Os alimentos arrecadados serão doados a instituições que trabalham com o empoderamento da mulher negra e contra a violência.  

Agrinez Melo no solo Histórias Bordadas em Mim. Foto: Fernando Azevedo

Programação:

25 de julho (quinta-feira), às 18h
Abertura PretAção – I Mostra de Mulheres Pretas
Onde:  Ao ar livre, no entorno do Espaço O Poste
Performance de abertura com Camila Mendes (Nós), Jhanaína Gomes (Mi Madre), Yasmmyn Nejaim (poesia) e Odailta Alves (poesia).

26 de julho (sexta-feira)
Onde: Espaço O Poste Soluções Luminosas
19h: A Receita
Sinopse: Morte, violência, loucura e a intolerância de uma maneira peculiar são narradas nesse solo, que traz uma personagem no seu processo limite. A dramaturgia é de Samuel Santos. Atuação: Naná Sodré
20h: Performances Mãe Maria, De Corpo e Dandara
Sinopses:
Mãe Maria: A personagem Mãe Maria nasceu dentro do espetáculo O Mensageiro, a partir da necessidade da atriz, dançarina e pesquisadora Aline Gomes de trazer à cena a condição feminina no início do século XX na Região Metropolitana do Recife. Atuação: Aline Gomes
De Corpo: Resgata a exposição das maranhas ancestrais que percorrem o corpo feminino. Dos fios que cercam de chagas nativas e genéticas a vivência da pele negra. Narra em movimentos o grito do pulso, da pausa, da prosa, da carne, da víscera, da dor e da beleza da mulher preta. Atuação: Brunna Martins
Dandara: Inspirada na heroína Dandara, que lutou ao lado de homens e mulheres nas muitas batalhas e ataques a Palmares, a atriz Érika Nery nos mostra sua força, fé e ancestralidade traduzida em arte. Atuação: Érika Nery
20h30: Roda de Diálogo com as performers

Dandara. Foto: Fernando Azevedo

27 de julho (sábado)
Onde: Espaço O Poste Soluções Luminosas
17h: Mi Madre
Sinopse: Inspirada por imagens e histórias contadas durante seu período de infância, Jhanaína Gomes remonta memórias de suas antepassadas alinhavando pontos de convergência entre sua própria história e a de suas matriarcas, tecendo uma correlação de tensão entre a presença masculina e o feminino ferido no percurso da vida dessas mulheres. Atuação: Jhanaína Gomes
18h15: Performances Kami** e Nada Mais me Deixará Calada
Sinopses:
Kami**: Traz à tona o corpo presente e potente da mulher. Construída a partir de técnicas utilizadas no Teatro Antropológico, das referências dos orixás Oxum e Iansã, e de elementos da natureza, mostra de forma muito simples, coesa e poética, que as mulheres querem liberdade. Atuação: Camila Mendes
Nada Mais me Deixará Calada: Durante sua jornada, enfrentando o processo de aceitação, a mulher negra se depara sempre com a solidão. Entretanto, em um momento crucial, ela acaba descobrindo que toda sua essência foi posta em segundo plano, e depois de ser enganada, maquiada e sexualizada, ela se rebela, mostrando que não irá aguentar mais nada e nem ficará mais calada. Atuação: Yasmmyn Nejaim
19h: Histórias Bordadas em Mim
Sinopse: Uma atriz, um baú, uma borboleta e uma conversa…é assim que se inicia Histórias Bordadas em Mim. Um convite para um chá, acompanhado de tareco e pão doce, e assim vão se alinhavando as histórias reais, vividas pela atriz em diversos momentos de sua vida. Atuação: Agrinez Melo
20h: Roda de Diálogo com as performers

28 de julho (domingo)
18h: Ombela
Sinopse: Ombela é uma palavra africana na língua Umbundo angolana, que em português significa “chuva”. É através da sacralidade da água que o espetáculo se desvela ao público; do elemento físico, Ombela se transforma em duas entidades que ganham corpo e voz. Atuação: Agrinez Melo e Naná Sodré.
19h10: Roda de Diálogo com as performers e encerramento da mostra

Ingressos: R$15,00 + 1kg de alimento não perecível ou R$20,00, sem o alimento.

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