Arquivo do Autor: Pollyanna Diniz

Mãe, eu sou você
Crítica de Azira’i

“O tempo indígena é o tempo circular. O tempo da natureza. E ela não anda pra frente. Ela anda sobre si mesma, “pra trás” nesse sentido”.

Daniel Munduruku, escritor e professor

Zahy Tentehar em Azira’i. Foto: Annelize Tozetto

O escritor e professor Daniel Munduruku escreveu que “o tempo indígena é o tempo circular. O tempo da natureza”. E que o passado “é o tempo da memória”. Zahy Tentehar, atriz e dramaturga indígena, nos dá a ver essa percepção de tempo a partir da relação com a mãe, Azira’i, título do espetáculo que lhe rendeu o prêmio Shell de melhor atriz, sendo essa a primeira vez que uma indígena recebe esse reconhecimento. A montagem estreou no Rio de Janeiro no ano passado, passou pelo Festival Recife do Teatro Nacional, fez temporada em São Paulo e participou do Festival de Curitiba.

Tendo como subtítulo “Um musical de memórias”, o espetáculo parece só ter sido possível graças a esse tempo circular a que se refere Munduruku, que é o da natureza, dos ciclos, do amadurecimento, da sabedoria de revisitar o passado entendendo que ele se faz memória. Tendo, senão curado, apaziguado as emoções, não se deixando cair nas armadilhas dos julgamentos.

Azira’i confunde os estereótipos, conflui possibilidades de existências, expande os imaginários e não se dispõe a fazer concessões, respeitando quem se é. O espetáculo se põe de pé a partir da dignidade que é assumir a autoria da própria narrativa e compartilhá-la em sua inteireza, explicitando dores e contradições, mas esmiuçando a beleza nos detalhes, seja na possibilidade de imaginar um céu estrelado, na contação de uma história sobre o macaco e o tatu no terreiro, na voz doce e límpida de uma mulher que canta um lamento, no riso que vem de uma suposta bobagem do cotidiano.

Para uma artista indígena, colocar-se em primeiro plano, neste caso como dramaturga e atriz, é assumir a dianteira da própria representação, em vez de aceitar aquelas formuladas por terceiros, muitas vezes preconceituosas, fantasiosas, românticas, construídas ao longo dos séculos de colonização. Estar no palco se constitui como uma atitude política, que reivindica visibilidade e pertencimento ao teatro, ao tomar as decisões sobre quais histórias se deseja contar e a partir de quais perspectivas.

A arte – e o teatro, em sentido expandido – estão imbricados na existência indígena: nos rituais, nos cantos, nas danças, nas pinturas, na contação de histórias. Mas é importante reconhecer, para que nunca se repita, que o teatro, como o conhecemos a partir do contato com o colonizador, foi instrumento de subjugação dos indígenas no Brasil. Para o escritor, ambientalista e tradutor indígena Kaká Werá, o teatro foi tão maléfico aos povos originários quanto a guerra e as doenças trazidas pelos que aqui chegaram. No livro Teatralidade do Humano, publicado em 2011, Werá afirmou: “O teatro desestruturou cosmovisões ancestrais, valores ancestrais, valores sagrados. Ele desestruturou o modo de pensar e o modo dos índios (sic) se relacionarem com a realidade, em nome de uma suposta verdade maior. Isso foi chamado de catequização. Então, a guerra não foi pior que o teatro”.

O trabalho de Zahy Tentehar e de outros artistas indígenas pelo país afora, ao se apropriarem do espaço do teatro, principalmente assumindo a construção dos discursos, nos mostra que essa arte pode se inserir nos esforços decoloniais, na visibilização de cosmovisões estruturadas noutras bases, que não a da exploração. O teatro precisa ser cada vez mais indígena, para que seja de todos.

Zahy, como atriz e dramaturga, assume a dianteira da própria narrativa. Foto: Annelize Tozetto

Em Azira’i, especificamente, a presença de Zahy traz uma camada além: a artista é nordestina, nascida na Aldeia Colônia, na reserva indígena Cana Brava, no Maranhão. O historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, autor do livro A invenção do Nordeste e outras artes, escreveu sobre a invisibilidade dos povos indígenas na região em artigo para o Diário do Nordeste, publicado em 23 de maio de 2023. O autor explicita o quanto, na região, temos vivenciado os processos nomeados de emergência ou ressurgência étnica, “ou seja, grupos que negavam ou não tinham consciência de sua descendência étnica, de sua origem étnica, e que passam a se reconhecer e se identificar com essa descendência e com essa origem”.

De acordo com dados do IBGE divulgados em 2023, a região Nordeste concentra a segunda maior população indígena do país, 31,22%, ficando atrás apenas do Norte, com 44,48%. Ao mesmo tempo, como aponta Alburquerque Júnior, o Nordeste, local onde começou o genocídio dos povos originários – antes mesmo que o Nordeste fosse “inventado” – é considerado esse lugar berço da miscigenação entre brancos, indígenas e negros, o que já sabemos que aconteceu tendo como contexto a violência em todos os âmbitos, dificultando a sobrevivência e a manutenção das tradições dos povos originários.

Zahy Tentehar carrega esses dois marcadores, indígena e nordestina, mas consegue friccionar os estereótipos relacionados a ambos, não se deixando enquadrar em caixinhas. Faz isso com inteligência e destreza, numa encenação que nos envolve pela sensibilidade. No espetáculo, a atriz mostra como, em seu cotidiano, as tradições e a cultura indígenas estão organicamente imbricadas com as vivências de alguém que mora em Copacabana, toma suco detox e come bofe frito, fala por chamada de vídeo com o filho que mora na Inglaterra com o pai, um inglês que ela conheceu no Tinder, e se espanta mais com a música preferida tocando na rádio, um forró da banda Magníficos, do que com o motorista de aplicativo que pergunta se ela é indiana.

Ao invés de ressaltar sua ida para o Sudeste, decide enfatizar as migrações que precisou fazer dentro do seu próprio território para que pudesse, de acordo com o pensamento do pai, aprender a ser do jeito que ele tinha idealizado. De modo bem-humorado, resolve assinalar o machismo desse pai na sociedade patriarcal nordestina, ao não se conformar com uma “traição”. A cada cena, Zahy compartilha conosco sua visão de mundo, não deixa passarem suas críticas impunemente, mas faz isso com generosidade e leveza. Em nada nos remete ao discurso aguerrido, militante, embora instaure seu modo particular de ver as coisas. O espetáculo se expande assim em amplitude temática: além da relação com a mãe, fala das influências culturais a que os indígenas são submetidos, de educação, de relação com a natureza, com o sagrado, de suas vivências na cidade.

No terreno das não concessões do espetáculo, talvez a mais significativa diga respeito ao ze’eng eté, língua do tronco tupi-guarani. Em alguns momentos, Zahy Tentehar fala em ze’eng eté, sem traduções, assumindo a possibilidade de que a comunicação não se limite ao campo do entendimento formal dos significados, mas da importância de ouvir essa oralidade, de respeitar a língua do outro e de compreender parte das violências linguísticas a que os povos originários foram submetidos. Zahy é delicadeza quando ensina os espectadores, a partir da repetição, a língua ze’eng eté. Rimos diante da dificuldade da pronúncia das palavras ditas pela atriz e da sua expressão de “ih, não tá lá essas coisas, mas vamos tentar de novo”. Depois de alguma insistência no exercício da repetição, a plateia engajada, um coro em ze’eng eté, ficamos surpresos com a nossa própria capacidade, ao que recebemos o elogio da professora.

Algumas cenas do espetáculo são faladas em ze’eng eté e a atriz tenta ensinar um pouquinho da língua ao público. Foto: Annelize Tozetto

A partir dessa aula, uma pedagogia que se ergue no campo do afeto, a dramaturgia impulsiona no espectador o confronto com a violência do processo de educação dos indígenas na língua portuguesa. Zahy conta que, da primeira vez em que entrou numa sala de aula, não sabia o porquê de as crianças estarem sentadas em cadeiras e não entendia o que a mulher lá na frente dizia. Como não conseguia corresponder às expectativas daquele ensino, recebeu orelhas de jumento e foi obrigada a ficar em pé, virada para a parede. Por que ninguém gosta do jumento? Ela gostava.

Minutos antes, já tinha nos deixado aturdidos quando, depois de revelar que ze’eng eté significa “fala verdadeira”, perguntou o que significa “essa outra língua que eu tive que aprender para me comunicar com vocês”. Silêncio na plateia.

A dramaturgia de Azira’i, assinada por Zahy em parceria com Duda Rios, é tramada como um tecido cru num tear manual. Em determinado momento, percebemos o quanto o texto é hábil ao incentivar a partir das palavras a imaginação do espectador, ao lidar com a matéria do cotidiano e tecer relações que se complementam. É uma operação laboriosa de uma dramaturgia que vai se construindo como uma trama, cada linha apoiada na seguinte, até que o tapete encanta os olhos pela sofisticação alcançada na simplicidade. A direção do espetáculo é assinada por Duda Rios e Denise Stutz.

A mãe, a primeira pajé de Cana Brava

A professora, poeta, ensaísta e dramaturga, Leda Maria Martins, diz que “a concepção ancestral africana inclui, no mesmo circuito fenomenológico, as divindades, a natureza cósmica, a fauna, a flora, os elementos físicos, os mortos, os vivos e os que ainda vão nascer, concebidos como anelos de uma complementariedade necessária, em contínuo processo de transformação e de devir”. Tomo emprestada essa concepção de ancestralidade africana ao me deparar com Azira’i, primeira pajé da reserva de Cana Brava, no Maranhão, através de sua filha mais nova, Zahy. A montagem promove essa compreensão de que todos esses elementos nos constituem em suas singelezas e complexidades.

Zahy conta como era a mãe, Azira’i. Foto: Annelize Tozetto

Azira’i tinha seis filhos quando perdeu o marido. O sogro, cacique, deu a nora para que um homem que vinha do Piauí se casasse com ela. O pai, como chama Zahy, tinha uma mágoa no coração e os dois combinavam em muitas coisas, inclusive no silêncio e na cegueira, que os acometeria na velhice. Azira’i, cantadora e contadora de histórias, pajé com o poder da cura, tinha uma perturbação com a qual não sabia lidar e isso se refletia em episódios de violência com a filha, Zahy. O primeiro deles é narrado de forma mítica: a mãe tira a criança de casa e a deixa do lado de fora; a criança chora, enquanto a mãe canta seus lamentos. Mais tarde, a criança não está mais lá. No meio da mata, ela acorda banhada pela luz da lua cheia. Daí vem o seu nome, o nome da lua, Zahy.

Os episódios seguintes são atravessados pela violência física, nos quais a mãe bate na criança até chegar à exaustão física e emocional. Aos 15 anos, Zahy enfrenta a mãe, perguntando se ela queria mesmo bater na filha. Apesar da tensão que se instala na plateia nos momentos em que Zahy está narrando esses episódios, a dramaturgia passa ao largo da culpabilização, do julgamento, da vingança, e isso interfere na relação que nós, espectadores, estabelecemos com aquela personagem. Assim como Zahy, não julgamos o comportamento de Azira’i, e isso é muito bonito, inclusive pela desmistificação da mãe, por sua humanização.

Nessa trama, o passado é visto como memória, ajudou a nos fazer quem somos, mas não necessariamente nos determina. Há um distanciamento nessa autoficção que se evidencia como respeito à história do outro, que foi do jeito que foi, do modo como poderia acontecer diante das circunstâncias da vida. Nesse movimento de ancestralidade que é circular, Zahy reencontra a mãe, mas também a si mesma, como filha e como mãe de um menino. Ao longo do espetáculo, a atriz é narradora de sua própria história e da história da mãe, em primeira ou terceira pessoa. E se, desde o início, a voz de Azira’i ecoa no teatro, acompanhamos em algumas cenas a sua presentificação por meio da representação da filha, que se veste como ela se vestiria, se senta no chão com as pernas esticadas como ela, lida com as limitações trazidas pela cegueira, dança e, principalmente, canta.

Da mãe, Zahy herdou o dom do canto. Foto: Annelize Tozetto

A música, aliás, foi o dom que a pajé suprema transmitiu para a filha mais nova, um elo entre as duas e entre elas e nós. Zahy canta lindamente em muitos momentos do espetáculo, sejam lamentos que aprendeu com a mãe, músicas compostas especialmente para a peça, o forró da banda Magníficos ou uma versão em ze’eng eté de Assum preto, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, numa das cenas que considero uma das mais bonitas do teatro brasileiro recente.

A direção musical do espetáculo é de Elísio Freitas, que assina algumas músicas em parceria com Zahy e Duda Rios. Freitas reforça conexões que o espetáculo pode suscitar: ele é o produtor responsável pelo álbum Nordeste Ficção, de Juliana Linhares, provocado pela peça A invenção do Nordeste, do grupo Carmin, do Rio Grande do Norte, e pela pesquisa de Durval Muniz de Albuquerque Júnior sobre a construção, inclusive a partir das artes, do Nordeste e de uma identidade nordestina.

Nesse alinhamento de referências, a encenação se estrutura sem que os elementos disputem espaço narrativo. Nada está sobrando ou é excessivo, uma coisa colabora com a outra. A música está lá ajudando a contar o que se quer dizer. O cenário, que me lembrou as cortinas coloridas de palha da costa africana que dançavam na instalação Sumidouro n.2 – Diáspora fantasma, que Laís Machado e Diego Araúja apresentaram na 35ª Bienal de São Paulo, é composto por uma cortina de corda crua, que abriga as projeções do multiartista Batman Zavareze. São instalações sonoras e visuais que conseguem instaurar outras dimensões sensoriais no espetáculo.

Afinal, Azira’i é sobre isso mesmo, sobre sentir. E viver. Do jeito mais digno e honesto conosco mesmos, com quem somos ou desejamos ser, independentemente das cobranças dos outros. É sobre lembrar que nós já sabemos ser. De modo perverso, assim como Assum Preto, o pássaro da caatinga, tivemos nossos olhos furados pela colonização, pelo genocídio indígena, pela escravização, pela exploração, pelo capitalismo. Os nossos olhos continuam sendo furados cotidianamente, mas o canto em ze’eng eté nos resgata e reanima. A arte persiste. O teatro que Zahy articula sofisticadamente une mundos e temporalidades distintas, possibilita que ela e a mãe contem histórias e cantem juntas, e ao mesmo tempo nos faz perceber o quanto podemos ser mais livres, ao permitir que, por meio da arte, nossos corpos sejam afetados, nossas sensibilidades revolucionadas, nossos imaginários expandidos.

O espetáculo Azira’i foi apresentado nos dias 6 e 7 de abril de 2024 no Festival de Curitiba.

* Pollyanna Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.

O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Guilherme Diniz (Horizonte da Cena) e Kil Abreu (Cena Aberta).

Ficha técnica:
Um solo de Zahy Tentehar
Dramaturgia: Zahy Tentehar e Duda Rios
Direção: Denise Stutz e Duda Rios
Direção de arte e design gráfico: Batman Zavareze
Trilha sonora original: Elísio Freitas
Iluminação: Ana Luzia Molinari de Simoni
Figurinos: Carol Lobato
Direção de produção e produção artística: Andréa Alves e Leila Maria Moreno

Mãe de Zahy era pajé em aldeia no Maranhão. Foto: Annelize Tozetto

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Hello, stranger
Crítica de Apenas o fim do mundo

Depois de anos de ausência, Luiz volta à casa da Mãe e de Suzana. Foto: Humberto Araújo

– Boa noite! Entre, seja bem-vindo. Mas não espere ficar muito à vontade. Você pode ser surpreendido com a exposição de uma intimidade que não esperava, desconcertante. Os cumprimentos iniciais aparentam uma suposta formalidade, um distanciamento comedido: “Estou bem. E você, como é que vai você?”. Há, no entanto, palavras que aguardam por serem ditas. Faz anos que estão sendo maturadas. Talvez sejam faladas, num “domingo, evidentemente, ou ainda, ao longo de quase um ano inteiro”, naquele reencontro familiar na casa da Mãe e de Suzana.

O espetáculo Apenas o fim do mundo, do grupo pernambucano Magiluth, é um convite para que sejamos testemunhas. Sabe aquela vontade de, às vezes, se transformar numa mosquinha para presenciar como foi aquela conversa, o que teria sido dito, como a pessoa reagiu, o clima que se instaurou? Na montagem do Magiluth, o compartilhamento da intimidade é consentido e, assim como a mosquinha, neste jogo somos voyeurs, observadores do que acontece à nossa revelia, como se não estivéssemos ali, não fôssemos notados, algo incomum na trajetória do grupo em relação aos espectadores.

Suzana (Bruno Parmera) e Luiz (Pedro Wagner). Foto: Annelize Tozetto

Estamos à porta e somos chamados a entrar e a acompanhar a volta de Luiz, um escritor, filho mais velho da família, que saiu de casa há bastante tempo. A Mãe e os irmãos, Antonio e Suzana, permaneceram. Há também Catarina, esposa de Antonio, que o cunhado só viria a conhecer nessa visita. Luiz nunca tinha voltado, mas agora havia um motivo concreto para o retorno. O escritor queria anunciar que, “mais tarde, no ano seguinte – era a minha vez de morrer”.

Ao longo dos anos, o primogênito, que “nunca esquecia as datas importantes das nossas vidas, os aniversários, fossem quais fossem”, mandava “pequenos bilhetes”, lacônicos, que vinham “sempre escritos em cartões postais”: “Eu estou bem e espero que vocês também estejam bem”. Uma frase que não gera nem ao menos uma expectativa por ser respondida.

Há, portanto, um hiato complexo que abarca dimensões múltiplas que se entrecruzam –tempo, relações, desejos, frustrações, ausências, acusações – para ser descortinado neste reencontro. O texto do francês Jean-Luc Lagarce, dramaturgo e diretor, escrito em Berlim em 1990, e montado pela primeira vez em 1999, quatro anos depois de sua morte, escolhe conceder o foco a cada personagem por vez, promovendo mergulhos verticais em suas subjetividades. Quando decidem falar, em poucos minutos, vislumbramos o que dói, como dói, por que dói. São conversas que se estabelecem geralmente como solilóquios, já que uma das pessoas, Luiz, se coloca como alguém que escuta o que a outra tem a dizer. São discursos longos, com diminutas pausas, quase que para confirmar que o interlocutor ainda está ali, disponível à escuta. Cada fala é um jorro, um fluxo de pensamentos que nos enovela.

Em Curitiba, as sessões de Apenas o fim do mundo foram no Palácio Garibaldi. Foto: Humberto Araújo

Quanto a nós, espectadores, somos desafiados a estar presentes na escuta para não perdermos uma palavra, uma digressão, um instante de hesitação, enquanto esses personagens se esvaziam ao menos do discurso que carregaram por tanto tempo. Terão como resposta um “sorriso” ou “duas ou três palavras”. “E eles se lembrarão, mais tarde, a seguir, na sequência, à noite adormecendo, eles se lembrarão apenas desse sorriso, é a única coisa que vão querer guardar de você, e é esse sorriso que eles vão discutir e discutir de novo”.

Nessa torrente, há um passado idealizado que, diante do correr dos anos, nem sabemos se aconteceu exatamente daquele modo, se era mesmo feliz. É assim, por exemplo, na cena da mãe contando o passeio que a família fazia aos domingos. Quem não tem uma avó, um pai, uma tia, que reconta a mesma história seguidas vezes, como se de alguma forma a lembrança fosse capaz de se materializar? Até que essa lembrança vira melancolia pelo que foi e já não é mais, “como é que podemos saber como tudo desaparece”.

Em consonância com a idealização do passado, a ausência desemboca no desconhecimento e na imaginação. Depois de tantos anos, aquelas pessoas não se conhecem mais, não sabem mais quem são e quais serão suas reações diante do inesperado da realidade do outro. “Ele não muda, eu imaginava ele exatamente assim, você não muda, ele não muda, é assim que eu o imagino, ele não muda, o Luiz”.

São família, são estranhos entre si. Assim como na balada Hello stranger (coloque aí para ouvir no seu tocador de música!) de 1961, da norte-americana Barbara Lewis, que faz parte da trilha sonora, sempre especial nas peças do Magiluth, mas aqui em particular, pelos achados que são dramaturgia. “Hello, stranger. It seems so good to see you back again. How long has it been? Oh, seems like a mighty long time” ou, em português: “Olá, estranho. É tão bom vê-lo novamente. Quanto tempo se passou? Oh, parece ter passado um longo tempo”.

A relação familiar se organiza em torno da matriarca, a única personagem que não tem nome, descrita apenas como a Mãe, como se a sua subjetividade estivesse restrita ao papel materno, encarado de modo coletivo. A quem serve a máxima ‘mãe é tudo igual’? Aqui a Mãe medeia os conflitos, prevê o que vai acontecer, mas não se coloca como autoridade, deixando entrever a sua fragilidade diante do que se desenrola ao redor. “Eles vão querer te explicar e é provável que o façam, e sem jeito, o que eu quero dizer, porque eles vão ter medo do pouco tempo que você dá para eles, do pouco tempo que vocês vão passar juntos”. Uma das cenas mais tocantes do espetáculo é justamente a conversa entre a Mãe e Luiz, quando ela tece uma radiografia precisa da realidade íntima daqueles personagens, dos seus anseios e frustrações. “O que eles querem, o que eles queriam, talvez, é que você os encorajasse – não foi sempre isso que faltou para eles, que a gente os encoraje?”.

A conversa entre a Mãe (Erivaldo Oliveira) e Luiz (Pedro Wagner). Foto Humberto Araújo

Talvez uma das principais qualidades do texto de Lagarce, que é brilhante e aqui o adjetivo cabe sem receios, é que o dramaturgo consegue experimentar a oralidade ao limite, encadeando longos textos de cunho pessoal, íntimo, psicológico. As frases são entrecortadas por tempos verbais distintos, pensamentos que vão se justapondo, que podem ser interrompidos e retomados instantes adiante, logo que eu terminar de falar uma coisinha que lembrei e quero dizer e talvez faça sentido ser dita aqui, assim como se dá numa situação cotidiana. Mas quando isso é levado ao teatro, à efemeridade da experiência única, esse texto se mantém e ganha proporção pela consistência e qualidade para ser compreendido em sua integralidade, proposta desta dramaturgia especificamente.

E esse foi o principal desafio com o qual o Magiluth se deparou: o rigor na enunciação que o texto demanda. O cuidado com as palavras, com os seus significados, sua ordem de encadeamento, com o modo e o tempo no qual elas precisam ser ditas. Foram poucas as montagens nas quais o Magiluth se dedicou a um texto dramático previamente escrito, levando-o tal e qual como escrito ao palco: O canto de Gregório, de 2011, texto de Paulo Santoro, e Viúva, porém honesta, de 2012, em comemoração ao centenário de Nelson Rodrigues. Mas, em ambas, especialmente em Viúva, porém honesta, o registro da encenação, que era o do humor, o do sarcasmo, da ironia, não demandava exatamente rigor na enunciação da dramaturgia.

Nas outras montagens do repertório, textos dramáticos foram utilizados como disparadores para o processo artístico, como em Dinamarca, de 2018, releitura de Hamlet, e Estudo nº1: morte e vida, a partir de Morte e vida severina, ou os atores criaram as dramaturgias a partir de outras referências, mas o trabalho coletivo na sala de ensaio, contemplando inclusive propostas e desejos individuais, sempre foi mais determinante na elaboração dos textos, escritos em processo e, talvez por isso, mais livres de amarras.

Apenas o fim do mundo estreou em abril de 2019, depois de quase um ano de momentos imersivos, entrecortados por meses de distância, de residências artísticas com Giovana Soar, tradutora do texto do francês para o português, atriz à época da companhia brasileira de teatro, primeiro grupo a montar a dramaturgia no país, no ano de 2006; e com Luiz Fernando Marques Lubi, diretor parceiro do grupo desde Aquilo que o meu olhar guardou para você, em 2012, um dos artistas que mais conhece e se alinha com a dinâmica do grupo. Depois de Apenas o fim do mundo, Lubi assinou ainda a direção de Estudo nº1: morte e vida, que estreou em 2022.

Esses momentos com os dois amigos e artistas colaboradores, que assinam conjuntamente a direção da peça, geralmente eram marcados por oficinas e resultavam na apresentação de ensaios ao público, um processo recorrente no Magiluth: a abertura dos trabalhos aos espectadores antes que eles possam ser tidos como “prontos”. No Sesc Avenida Paulista, por exemplo, dias antes da estreia, os oficineiros puderam acompanhar o trabalho de mesa dos atores, de leitura do texto, de entendimento do modo de enunciação que a dramaturgia solicitava.

Esse encontro entre o grupo, Giovana Soar e Lubi era o que o Magiluth precisava para erguer a lindeza que é Apenas o fim do mundo, em toda sua humanidade, delicadeza e proximidade com o espectador. Veio de Giovana Soar o rigor no entendimento e na enunciação do texto de Lagarce e o convite ao espaço íntimo proposto por essas palavras. E de Lubi, com quem o grupo tem a intimidade dos anos de trabalho conjunto, vieram a experiência e a sagacidade com montagens site-specific, amealhada desde a criação do XIX, grupo do qual Lubi é um dos fundadores.

Neste tipo de espetáculo, as montagens são criadas ou se adaptam a lugares que não necessariamente são locais tradicionais de exibição de peças, como teatros. Essas obras dependem da interação com os espaços para que possam alcançar suas potências. No caso do Magiluth, a ideia é que o espectador experiencie esse reencontro entre Luiz e sua família no espaço proposto pela dramaturgia, uma casa. Parte da intimidade que a encenação propõe com o espectador vem do espaço cênico: vamos andando pelos cômodos da casa, acompanhando como se dá cada conversa. No entanto, mesmo assistindo a tudo de muito perto, estando nas bordas da cena, somos voyeurs (a mosquinha, lembra?), não participamos da cena, e por isso o distanciamento, como se não estivéssemos ali.

Em 2019, a peça estreou no 13º e no 14º andares do Sesc Avenida Paulista, em São Paulo. Apesar de toda a engenhosidade da divisão de cômodos e da cenografia, da beleza da vista da Paulista, mesmo que a encenação fluísse, havia uma compressão. Eram espaços às vezes apertados demais para muitas pessoas assistirem a cenas longas. E era preciso imaginação para visualizar uma casa. No Recife, ainda em 2019, o espetáculo foi apresentado no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam) e o próprio grupo diz que aquele espaço era o ideal para a peça e que a cena da chegada de Luiz ganhava outra dimensão tendo como vista a Rua da Aurora, o Rio Capibaribe e, ao fundo, a Rua do Sol.

Em Curitiba, a peça ocupou o Palácio Garibaldi, um lindo casarão cuja construção começou em 1887, hoje conhecido como “a casa da cultura italiana em Curitiba”. Ali, o espaço abraçou a encenação, mesmo com todos os deslocamentos necessários, estávamos numa casa, que se não tinha uma geladeira amarela como nas versões anteriores, ostentava um fusca azul na garagem que serviu para uma discussão icônica que terminou com Catarina, a cunhada, sozinha dentro do carro, com uma impagável cara de paisagem. Fato é que o espaço nos fez viver com mais verticalidade a encenação.

Outra questão que pode ser levada em conta quando pensamos nas diferenças entre a estreia, em 2019, e a participação no Festival de Curitiba, em 2024, com seis sessões esgotadas, é o próprio tempo de maturação da peça. Ainda em 2019, o grupo precisou lidar com as especificidades do espetáculo, que dificultam sua circulação, e depois com a parada obrigatória imposta pela covid-19 a partir de março de 2020. Inclusive, naquele ano, eles estariam no Festival de Curitiba com o espetáculo.

Vivemos o fim do mundo, em escala global. Se, de algum modo, a epidemia de Aids que vitimou Lagarce e que mataria Luiz, “alguns meses mais tarde, um ano no máximo”, era o fim do mundo, a covid-19 levou o fim a níveis que não conhecíamos. E os garotos que estavam na faculdade e que criaram um grupo em 2004, depois de uma atividade para uma disciplina no curso de Licenciatura em Artes Cênicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), se tornaram homens, alguns são pais, viveram a pandemia e o medo do fim em múltiplas escalas. As dores sobre as quais o texto fala encontraram outros corpos em 2024.

É fundamental dizer que o Magiluth é um grupo formado por homens e que essa é sempre uma questão no momento de escolher um projeto. Em Apenas o fim do mundo, estão em cena Pedro Wagner (que não fazia a peça desde 2019; na temporada que o grupo cumpriu no ano passado no Mamam, ele foi substituído por Edjalma Freitas), Mário Sérgio Cabral, Giordano Castro, Erivaldo Oliveira e Bruno Parmera. Lucas Torres, o único integrante que não possui personagem na peça, assina a assistência de direção, faz todo o apoio técnico da montagem e ainda faz uma participação, entrando em cena para tocar bateria.

Três dos atores interpretam personagens femininas: Giordano Castro é a cunhada, Catarina; Erivaldo Oliveira é a Mãe; Bruno Parmera é a irmã, Suzana. Mário Sérgio Cabral é o irmão, Antonio; e Pedro Wagner interpreta Luiz. A meu ver, a opção sempre perigosa de ter homens interpretando mulheres deu certo porque eles não fazem caricaturas das figuras femininas ou exageram nos gestos e nos trejeitos das personagens.

Giordano Castro é a cunhada, Catarina. Foto Humberto Araújo

Mário Sérgio Cabral é Antonio, o irmão. Foto: Annelize Tozetto

Nesta montagem, o elenco do Magiluth, como grupo, alcança maturidade na atuação. Pedro Wagner tem o domínio do ofício, faz um Luiz cheio de hesitações, que lida com a sua inabilidade para se contrapor às acusações de abandono, mostrando isso ao espectador a partir da expressão silenciosa do seu corpo. Antonio, de Mário Sérgio Cabral, “há muito tempo, é o que eu acho, eu me tornei um homem cansado”, foi se deixando endurecer pelas responsabilidades, e nos traz nuances entre a raiva e o medo de se permitir amar este irmão. O seu último monólogo é um descarrego, cheio de força e humanidade.

Giordano Castro faz uma Catarina comedida em gestos, de língua afiada e intervenções certeiras que se expressam no corpo. Erivaldo Oliveira é o que talvez mais se apoie no gestual na construção dessa Mãe que lê a todos, que lida com as imperfeições de cada um, inclusive com as suas próprias, e que mesmo assim é afeto. “Ela, ela me acaricia uma única vez o rosto, lentamente, como para me explicar que ela me perdoa não sei bem quais crimes”. E Bruno Parmera é uma Suzana eufórica com o reencontro com Luiz, que nos deixa tontos, mas que tem respiro para se auto traduzir ao irmão.

A maturidade, que é da própria trajetória como artistas, traz o autoconhecimento do que eles gostam e se permitem experimentar em cena. E, por isso, está lá, no meio da peça, uma banda de rock em decibéis altíssimos, como que para mostrar que o espírito, em si, permanece o mesmo de Viúva, porém honesta. Naquela tensão discursiva, é uma catarse que nos surpreende e captura.

De repente, uma banda de rock. Foto: Annelize Tozetto

Ao comemorar 20 anos em 2024, o Magiluth envereda na vivência dessa família com muito mais propriedade. Eles próprios são família, possuem laços, estão criando os filhos nessa comunidade que é um grupo de teatro. E isso é poderoso, na arte e na vida. Quando se tratam, na vida corrente, por “minhas queridas irmãs”, uma herança tchekhoviana que restou de O ano em que sonhamos perigosamente, o espetáculo que talvez seja o mais emblemático para a continuidade do grupo, revelam o afeto construído ao longo de duas décadas que permite projeção de futuro.

O espetáculo Apenas o fim do mundo foi apresentado nos dias 3, 4 e 5 de abril de 2024 no Festival de Curitiba.

* Pollyanna Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.

O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Guilherme Diniz (Horizonte da Cena) e Kil Abreu (Cena Aberta).

Ficha técnica:
Direção: Giovana Soar e Luiz Fernando Marques Lubi
Assistente de direção: Lucas Torres
Dramaturgia: Jean-Luc Lagarce
Tradução: Giovana Soar
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner
Técnico: Lucas Torres
Desenho de luz: Grupo Magiluth
Direção de arte: Guilherme Luigi e Luiz Fernando Marques Lubi
Design gráfico: Guilherme Luigi
Realização: Grupo Magiluth

Apenas o fim do mundo em Curitiba. Foto: Humberto Araújo

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Querido público pagante, sobrevivente de guerra
Crítica de Cabaré Coragem

Cabaré Coragem é o primeiro espetáculo do Galpão pós pandemia de covid-19. Foto: Humberto Araújo

Neste cabaré, “cantaremos, beberemos, dançaremos!”. Essa é a promessa feita por Singapura, personagem de Inês Peixoto em Cabaré Coragem, espetáculo do grupo Galpão, de Minas Gerais, que estreou no ano passado, já passou por alguns lugares do país, participa agora do Festival de Curitiba e começa temporada neste mês de abril em São Paulo, no Sesc Belenzinho. Mesmo que proponha diversão, Singapura nos lembra instantes adiante que é importante estarmos alertas: nem tudo é o que parece, as aparências enganam. No foyer do Guairinha, na noite do último dia 30, a garrafa de cachaça está à mão, mais disponível do que disputada, dos frequentadores do local.

Quando entramos, a música alta da picape do DJ embala as conversas enquanto as pessoas procuram seus lugares e aguardam que o espetáculo comece, digamos, oficialmente. Lembro de ouvir Marília Mendonça e João Gomes, só para ficar entre os meus preferidos. Algumas pessoas se balançam nas cadeiras e há quem aceite o convite para dançar no palco ou no corredor. Os artistas que logo mais se apresentam neste cabaré circulam pela plateia, conversam com as pessoas. Oferecem doses de cachaça ou de conhaque. No canto do palco, sentada numa poltrona, a atriz Teuda Bara, 81 anos, ostenta peruca loura, sombra azul, blush rosado e batom vermelho.

Teuda Bara é madame, a dona do cabaré do Galpão. Foto: Humberto Araújo

A noite é de festa, mas as contradições são estabelecidas desde o início. Estamos aqui para nos divertir e viver esse momento. Quem sabe, dependendo do empenho e da entrega daquele conjunto formado por quem está no palco e na plateia, gozar. Mas gozar é difícil rotineiramente; o que podemos dizer então sobre gozar de barriga vazia, estando faminto? Nesses instantes iniciais da encenação, o Galpão pavimenta o caminho para os espectadores, anuncia a que veio.

Há uma expectativa de celebração que paira na plateia: além da possibilidade da instauração no teatro desse inferninho do Galpão, o reencontro com o grupo criado em 1982, com 26 espetáculos ao longo de sua trajetória, era aguardado. A última peça, Outros, segunda direção de Marcio Abreu para o grupo depois da disruptiva Nós (2016), estreou no distante ano de 2018, antes da pandemia. Eles sobreviveram. Nós também. Esse já seria motivo suficiente para cantar, beber e dançar, mas essa primeira cena deixa evidente que o Galpão traz ao centro desse cabaré o alemão Bertolt Brecht (1898-1956), dramaturgo, poeta, encenador, para tomar uma cachacinha junto e explicitar a luta de classes. É um cabaré cujas referências foram forjadas nos cabarés franceses e alemães do começo do século XX, espaços para discussão política, experimentalismo e transgressões.

Nos últimos anos, de modo mais recorrente na última década, estamos num contexto em que o teatro de grupo no Brasil, de modo geral, está refletindo muito mais a partir das identidades e das dissidências, das questões de raça e de gênero: o teatro negro, o teatro feminista, o teatro queer. Alguns grupos continuam suas pesquisas insistindo na luta de classes, como a Companhia do Latão, de São Paulo, e o Coletivo de Teatro Alfenim, da Paraíba, mas essa não é mais a tônica dominante, como já foi por exemplo na década de 1960.

O Galpão resgata a temática da luta de classes utilizando a irreverência para desestabilizar o que de algum modo naturalizamos: as consequências do capitalismo, desigualdades, exclusões e injustiças. Roberto Schwarz, em seu texto Altos e baixos da atualidade de Brecht, no livro Sequências brasileiras: ensaios, diz que “Trata-se de entender, em suma, que na realidade como no teatro os funcionamentos são sociais e, portanto, mudáveis”, o que nos explica noutras palavras Singapura.

Singura (Inês Peixoto) nos dá as boas-vindas neste cabaré brechtiano. Foto: Humberto Araújo

As menções a Brecht estão espalhadas ao longo da peça, desde o título, Cabaré Coragem, referência a Mãe Coragem e Seus Filhos, texto de 1941. Mas nesse caso há também uma memória afetiva que vem do mineiro Guimarães Rosa (1908-1967), como afirmou Inês Peixoto na coletiva de imprensa sobre o espetáculo no Festival de Curitiba. De Grande Sertão: Veredas talvez seja esse justamente o trecho mais citado e bonito: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Teuda Bara é a Madame, dona do cabaré, mas em seu número encarna a Mãe Coragem. A veterana fala sobre as consequências da guerra, o quanto teve coragem e, ao mesmo tempo, medo de perder os filhos, e depois engata os versos de Mamãe coragem, de Torquato Neto e Caetano Veloso, conhecida na voz de Gal Costa. Na música, que compõe o álbum coletivo Tropicália ou Panis Et Circencis (1968), considerado manifesto musical do Tropicalismo, um filho tenta consolar a mãe.

Espetáculo atualiza debate sobre luta de classes. Foto: Humberto Araújo

O espetáculo, aliás, quero colocar em letreiro neón, é do elenco feminino do Galpão: Inês Peixoto, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara. Gente, essas atrizes! No palco, principalmente Inês Peixoto e Lydia Del Picchia reforçam o estereótipo da figura da mulher no cabaré-inferninho brasileiro, performando em seus figurinos e caracterizações a mulher desejada por seu corpo, cujas formas são destacadas pelo brilho das roupas curtas e apertadas, pretas, de preferência, ao mesmo tempo em que trazem outras camadas ao feminino.

Lydia Del Picchia começa o espetáculo vestida com macacão de mecânico, bigode pintado, e se transforma no palco. “Vocês devem ter reparado na minha roupinha, um brilhozinho básico, vulgar sem ser sexy. Cansei de ser sexy, agora eu sou só vulgar!”, destacando o empoderamento e a liberdade no que se deseja ser, em se fazer desejante do modo que nos satisfaça a nós mulheres e não necessariamente aos outros.

Noutro momento mais adiante, Simone Ordones será transformada na mulher monstro defensora da moral e dos bons costumes, replicadora de memes e notícias falsas, que se acalma com as joias das Arábias. Em seu número musical que se segue à performance como mulher monstro, a música escolhida é Mulher limpa, de Juliana Perdigão, criada a partir do poema de mesmo nome de Angélica Freitas, que está no livro Um útero é do tamanho de um punho. Com toda ironia, Simone entoa e faz o público repetir os versos: “Uma mulher boa / é uma mulher limpa / se ela é uma mulher limpa / ela é uma mulher boa. Uma mulher brava / não é uma mulher boa / e se ela é uma mulher boa / ela é uma mulher limpa”.

Uma das camadas mais significativas quando pensamos no feminino retratado na peça é a idade dessas mulheres. São quase todos corpos de mulheres mais velhas, se bem que… o que é velho? Mas são corpos que não são enxergados comumente pela sociedade como desejáveis, como se a mulher tivesse um prazo de validade.

O espetáculo é atravessado pela questão da idade para além do feminino. Esse cabaré é um cabaré de idosos, maravilhoso! Em determinado momento, quando os artistas questionam as condições de trabalho, a falta de comida, a precariedade, Madame responde com deboche: “Quero ver quem é que vai dar emprego para um bando de artista velho que nem vocês…”.

O etarismo nosso de cada dia relega os mais velhos a posições escamoteadas. A imagem comumente associada ao cabaré é a da juventude. Mesmo que a arte seja mais gentil com quem envelhece do que outros campos, como pontuou Antonio Edson durante a coletiva de imprensa, os preconceitos permeiam a vivência da velhice, ignorando o fato de que a sociedade brasileira caminha rumo ao envelhecimento de sua população.

Nesse lugar que fica mais visível na velhice, mas existe em todas as fases da vida, de levar em consideração o que conseguimos ou não fazer, de respeitar os próprios limites, mas não deixar de tentar transgredi-los, o Galpão recria uma cena de acrobacia de Antonio Edson e Eduardo Moreira. Eles são atores e não acrobatas; e homens mais velhos. Mesmo assim, disponíveis ao jogo, levando os seus corpos a lugares possíveis e, nem por isso, menos dignos de celebração. A trajetória do Galpão é admirável por muitos motivos, inclusive por este: a capacidade que o grupo possui de se colocar disponível, de experimentar, de não deixar que os anos de trabalho engendrem uma marca pesada demais para carregar.

Discussão sobre etarismo permeia a encenação. Foto: Humberto Araújo

Voltando ao capítulo Brecht, sem nunca ter saído dele, o Galpão consegue espraiá-lo na montagem, de modo que algo vai te alcançar, você vai sair dali entendendo que a peça também é sobre luta de classes, sobre questionar a realidade “imutável” na qual estamos inseridos. Na cena do ventríloquo e da sua bonequinha, foi incorporada a fábula Se os tubarões fossem homens, de autoria do dramaturgo alemão. Explicando à bonequinha, num dos trechos, o ventríloquo diz: “Se os tubarões fossem homens, eles fundariam escolas onde os peixinhos aprenderiam a nadar para dentro da boca dos tubarões e a sempre acreditar nos tubarões, especialmente quando eles dizem que vão cuidar para que os peixinhos tenham um belo futuro”.

No número seguinte, Lydia Del Picchia faz referência ao nome do bar da peça, repetido algumas vezes, Gangorra´s Bar: “Eu conheço este sistema, é meu velho conhecido. Alguns poucos por cima, outros muitos em baixo”. Os versos da música soam baratos e vagabundos, mas é isso mesmo: “Analisando essa cadeia hereditária, quero me livrar dessa situação precária / Onde o rico cada vez fica mais rico e o pobre cada vez fica mais pobre / E o motivo todo mundo já conhece, é que o de cima sobe e o de baixo desce”.

Há ainda Antonio Edson cantando em alemão Die Moritat von Mackie MesserA balada de Mac Navalha, de A ópera de três vinténs, de Brecht e Kurt Weill. Há a versão Tango dos açougueiros felizes, da música Les Joueux, do francês Boris Vian (1920-1959). A música gravada por Cida Moreira, que trabalhou com o Galpão durante o processo de montagem, uma das artistas especialistas no cabaré brechtiano no país, resultou numa cena catártica. Há a música Singapura – Um copo de veneno, também de Cida Moreira, que dá nome à personagem de Inês Peixoto. E há a explicitação das contradições do sistema capitalista engendradas na própria arte: “Aqui, quanto mais você paga, mais a gente brilha”, “querido público pagante”.

Galpão, grupo mineiro, é um dos principais representantes do teatro de grupo brasileiro, em atuação há 42 anos. Foto: Humberto Araújo

A peça do Galpão nos lembra que somos sobreviventes de guerra. Há vários tipos de guerras. Mesmo que não traga o contexto político brasileiro ipsis litteris, também é sobre isso. Acompanhamos um golpe de Estado que tirou a primeira mulher presidenta do Brasil do poder, nunca esqueceremos. Vimos um político se tornar presidente da república rendendo louros a um torturador. Vivemos a pandemia, vivemos a pandemia com Bolsonaro na presidência. Tivemos uma tentativa de romper com a democracia. O fantasma da extrema direita vive a nos assombrar. Mas a garantia do direito à memória – e o Galpão é memória em cena e memória encenada – continua a ser um desafio para nosso país. Assistimos no mês passado ao cancelamento dos atos em repúdio aos 60 anos do Golpe civil militar e das barbáries praticadas pelos militares após decisão do presidente Lula.

O Galpão traz ao palco uma luta que não se restringe ao individual, um grupo de teatro que se mantém no Brasil há 42 anos apesar de todas as circunstâncias, sejam políticas, econômicas, de descaso com a política de Cultura no país. Eles são caminho percorrido e vislumbre de possibilidade com sua atuação pública e artística. Ver o Galpão em seu 26º espetáculo, no palco, é pensar “um pouco na realidade e muito na imaginação”, como diria Roberto Schwarz, que o futuro pode ser bonito.

O espetáculo Cabaré Coragem foi apresentado nos dias 30 e 31 de março de 2024 no Festival de Curitiba.

* Pollyanna Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.

O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Guilherme Diniz (Horizonte da Cena) e Kil Abreu (Cena Aberta).

Cabaré Coragem no Festival de Curitiba 2024. Foto: Humberto Araújo

Ficha técnica:
Elenco: Antonio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara
Direção: Júlio Maciel
Direção musical, arranjos e trilha sonora: Luiz Rocha
Diretor assistente: David Maurity
Cenografia e figurino: Márcio Medina
Dramaturgia: Coletiva
Supervisão de dramaturgia: Vinícius de Souza
Direção de cena e coreografia: Rafael Bacelar
Iluminação: Rodrigo Marçal
Adereços e pintura de arte: Marney Heitmann
Preparação corporal e do gesto: Fernanda Vianna
Preparação vocal: Babaya
Assistência de figurino: Paulo André e Gilma Oliveira
Assistência de cenografia: Vinícius de Andrade
Assessoria de iluminação: Marina Arthuzzi
Direção de experimentos cênicos: Ernani Maletta, Luiz Rocha e Cida Moreira
Colaboração artística: Paulo André e João Santos
Maquiagem e perucaria: Gabriela Dominguez
Assistente de maquiagem e perucaria: Ana Rosa Oliveira
Construção cenário: Artes Cênica Produções
Confecção de figurinos: Taires Scatolin
Técnico de palco: William Bililiu
Instalação de luminárias cênicas: Wellington Santos
Assessoria de imprensa: Polliane Eliziário (Personal Press)
Comunicação on-line: Rizoma Comunicação & Arte
Fotos: Mateus Lustosa
Registro e cobertura audiovisual: Alicate
Projeto gráfico: Filipe Lampejo e Rita Davis
Operação de luz: Rodrigo Marçal
Sonorização e operação de som: Fábio Santos
Assistente técnico: William Teles
Assistente de produção: Márcia Bueno e Idylla Silmarovi
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção: Grupo Galpão
Músicas Alabama Song, Moritat, Singapura e Tango dos Açougueiros Felizes a partir dos arranjos musicais de Ernani Maletta
Fragmento do Texto: “Discurso sobre Nada” de Marcio Abreu

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Atrizes orquestras e teatralidade exposta*
Crítica de Ana Lívia

Ana Lívia, espetáculo da Cia. BR116, tem texto de Caetano W.Galindo

Até Ana Lívia, peça da Cia. BR116 com texto de Caetano W. Galindo, que estreou no ano passado em São Paulo e agora participou do Festival de Curitiba, Bete Coelho e Georgette Fadel nunca haviam trabalhado juntas. Vê-las em cena, interagindo afiadíssimas, como se só elas duas – e cenário, música, iluminação – fossem uma orquestra inteira com arranjos estranhos e belos, é um dos primeiros impactos do espetáculo.

Quando a peça vai acontecendo, quem se permite embarcar na encenação pode ter o corpo impactado pela vibração e experimentação das linguagens literária e teatral e descobre, por fim, que é o próprio teatro, desnudo, que se dá a ver ali, de modo febril e pulsante, desejoso de interação, solicitando que estejamos juntos a cada nova partitura dessa música.

Nessa encenação, na qual respiramos no mesmo ritmo das atuações, pode-se considerar irônico que a incomunicabilidade seja uma das questões latentes no diálogo entre as atrizes. Como em muitas relações que se desdobram no tempo, essas duas estão naquele espaço não se sabe desde quando, talvez desde crianças, talvez sejam duas personagens, ou uma só. Mas o que se estabelece entre elas vai além da apreensão formal de sentidos e, apesar disso, a escuta e, consequentemente, o diálogo, não se torna efetivamente viável. Uma delas quer muito contar algo à outra, ler o texto que acabou de receber, a outra sente que não tem oportunidade de falar, que mesmo quando fala não é ouvida.

Ainda assim, é como se respondendo não necessariamente, ou pelo menos não unicamente, ao que uma diz à outra, os corpos reagissem aos estímulos numa sincronia cronometrada. As duas se sucedem, até se interrompem, falam a mesma frase ao mesmo tempo numa intimidade desconcertante, disputam como se estivessem numa batalha, mas não se borram.

Bete Coelho está em cena e também assina codireção. Foto: Annelize Toledo

Georgette Fadel. Foto: Annelize Toledo

Ao mesmo tempo em que cada uma possui características bastante específicas na encenação, ao ponto de um dos melhores momentos do espetáculo ser justamente a cena em que uma imita a outra, elas também estão imbricadas como se pudessem ser uma só. Há um espelhamento potencializado pela experimentação da linguagem cênica e da linguagem literária, além do apuro técnico, do domínio de cada palavra, de cada suspiro e silêncio, de cada gesto colocado no momento exato pelas atrizes.

Se cenário, iluminação, figurino e muitas vezes até o texto sugerem uma sisudez, há cenas de humor escancarado, nas quais os ensaios das atrizes se estabelecem como espetáculo pronto à interação com a plateia, aos aplausos do público. As mudanças de registro, saindo muitas vezes radicalmente, sem escalas, do gesto contido ao exagero, ajudam na composição do humor nessa tragicomédia. É um corpo disposto ao risco do jogo e do caricatural em suas possibilidades de expressão, um risco teatral sabidamente calculado em suas filigranas.

Nesse sentido, a cenografia de Daniela Thomas, parceira de trabalho de Bete Coelho há mais de três décadas, deixa a caixa do teatro exposta ao público, nessa reiteração de que o que estamos acompanhando é teatro, uma configuração completamente diversa das últimas montagens da companhia, que tiveram cenografias assinadas por Thomas e Felipe Tassara. Em Mãe Coragem (2019), um espetáculo grandioso, o ginásio do Sesc Pompeia foi transformado para receber a encenação que era também uma instalação cenográfica, um campo de batalha, uma arena, planos distintos, público dividido em vários locais no espaço. Em Molly Bloom (2022), o cenário era uma cama, disposta num plano mais alto, mas que incorporava possibilidades de difusão das imagens dos atores: o reflexo no espelho, as projeções ao vivo em várias telas.

Em Ana Lívia, o principal elemento cenográfico é uma longa mesa formada por praticáveis de teatro e três cadeiras e, nesse reforço do local em que estamos todos juntos, as atrizes no palco, nós na plateia, vemos os refletores da iluminação de Beto Bruel expostos, além de todo o ambiente do palco, as laterais, o fundo.

Quais as nossas expectativas quando vamos ao teatro? A todo tempo, Ana Lívia faz questão de lembrar que o que estamos acompanhando ali é teatro, apontando para um caminho que reconhece e explora a própria natureza da linguagem.

O espetáculo é estruturado a partir de uma teatralidade acentuada pela reiteração da linguagem teatral. Mesmo que não que precisasse, a teatralidade está posta, mas o que essa operação propicia aos espectadores?

Ao insistir na exposição da teatralidade, o espetáculo fricciona as expectativas convencionais em relação ao que um espetáculo de teatro pode ser. Esse constante lembrete da artificialidade da representação talvez funcione como um mecanismo de distanciamento, convidando os espectadores a uma postura mais analítica e menos absorvida emocionalmente pelo drama.

Caetano W. Galindo, professor curitibano, tradutor especialista em James Joyce, em sua primeira incursão como dramaturgo (mas em seu segundo trabalho com Bete Coelho, já que assinou a tradução e a consultoria dramatúrgica de Molly Bloom), oferece ao público a possibilidade de enveredar por múltiplas interpretações, além de propor um exercício formal de linguagem. A estrutura não linear supera a tradição do teatro dramático, questionando a expectativa de uma narrativa coesa e fechada. Essa estrutura aberta estimula os espectadores a participarem ativamente na construção desses significados, o que pode tanto desafiar quanto expandir o horizonte.

É um texto que envereda por polos duais: ao tratar de teatro e de ficção, faz pulsar a realidade; ao falar de morte, questiona o que fazemos e como encaramos a vida. Qual a versão real da história do quase afogamento de um cachorro? Existe verdade? A imagem da água está sempre presente, seja pelo barulho de mar que se faz ouvir insistente na mente das atrizes, seja o cenário de um lago ou o rio.

O texto e aquelas atrizes nos fazem questionar como lidar com a inquietude, o desassossego, a iminência de que tudo pode mudar a qualquer momento. O que podemos controlar? No texto de Caetano W. Galindo, quase nada. E essa é uma característica que o potencializa, porque é como se escapasse das nossas mãos, mas permanecesse ecoando no ouvido e no corpo inteiro pelo modo como foram concatenadas as palavras.

A construção do texto privilegia a sonoridade, o encontro entre as palavras, a habilidade na construção do diálogo que não necessariamente tem como intenção possibilitar a comunicação. A experimentação do que um som promove no corpo das atrizes e na plateia. Há, por exemplo, um jogo de troca de palavras com sonoridades parecidas, mas sentidos completamente diferentes, que enriquece e deixa os diálogos ainda mais interessantes e curiosos.

Espetáculo faz exercício de linguagem. Foto: Annelize Toledo

Na primeira sessão do espetáculo no Festival de Curitiba, no último dia 26, o Teatro da Reitoria estava lotado e, dependendo do lugar em que você estivesse sentado, o áudio das atrizes parecia baixo, de modo que não foi fácil acompanhar o que elas diziam em todos os momentos da peça. Mas o texto, mesmo que não ouvido em sua integralidade, proporciona saltos às cenas quando reverbera no corpo das atrizes numa expansão deliberada da oralidade ao corpo.

As atrizes estão sempre se referindo ao autor do texto que elas estão ensaiando, um “ele” indeterminado. A terceira cadeira na mesa permanece desocupada, discreta, quase imperceptível. As palavras desse autor, escritas a pedido delas, estão grafadas no caderno azul ou chegam pelo celular. E talvez nessa operação que, mais uma vez, reforça a teatralidade, a autoria desse texto para aquelas atrizes não está circunscrita apenas ao que elas querem dizer, mas em como elas podem dizer. Voltamos então nesse circuito, que é cíclico e parece não ter fim, um ensaio que é vida representada, que pode se suceder indeterminadamente, à qualidade de presença e ao jogo entre essas atrizes. Atrizes-orquestras-inteiras ocupando o palco.

O espetáculo Ana Lívia foi apresentado nos dias 26 e 27 de março de 2024 no Festival de Curitiba.

* Pollyanna Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.

O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Guilherme Diniz (Horizonte da Cena) e Kil Abreu (Cena Aberta).

A sonoridade é um dos elementos importantes na peça. Foto: Annelize Toledo

Ficha técnica:

Texto: Caetano W. Galindo
Direção: Daniela Thomas
Codireção: Bete Coelho e Gabriel Fernandes
Elenco 1: Bete Coelho e Georgette Fadel | Elenco 2: Bete Coelho e Iara Jamra
Cenário: Daniela Thomas e Felipe Tassara
Assistente de direção: Theo Moraes
Direção musical: Felipe Antunes
Assistente de direção musical: Fábio Sá
Figurino: Bete Coelho e Daniela Thomas
Diretor técnico: Rodrigo Gava
Desenho de luz: Beto Bruel
Assistente de luz: Sarah Salgado e Pamola Cidrack
Operadora de luz: Patricia Savoy
Operador de som: Rodrigo Gava
Contrarregra: Theo Moraes
Designer gráfico: Celso Longo + Daniel Trench
Diretor de comunicação: Maurício Magalhães
Assessoria de imprensa: Fernando Sant’Ana
Design de mídia social: Letícia Genesini
Assessoria jurídica: Olivieri e Associados
Dramaturgista da Cia.BR116: Marcos Renaux
Local de ensaio: CASAVACA
Produtora executiva: Mariana Mantovani
Direção de produção: Lindsay Castro Lima

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Shakespeare esteja conosco!
O relato de uma substituição plena de afeto
e amor ao teatro*

José Roberto Jardim e Paulo de Pontes no Teatro de Santa Isabel, em 18 de novembro. Foto: Marcos Pastich

Tay Lopez substituindo Paulo de Pontes no dia 19 de novembro. Foto: Arquivo pessoal

Terminou neste domingo, 26 de novembro, a 22ª edição do Festival Recife do Teatro Nacional (FRTN). Infelizmente, o Satisfeita, Yolanda? não conseguiu acompanhar de perto a programação, pois não havia recursos para arcar com o trabalho da crítica. É uma pena. Pode ser tema de conversas e reflexões vindouras.

Mas, desde o dia 16, histórias aconteceram: nos palcos e fora deles. Muitas, nem ficamos sabendo, são quase restritas, tiveram como cenário coxias, plateias, bares pós-espetáculo. Mas uma delas, em especial, nós soubemos e achamos que merecia ser registrada.

Sueño é um espetáculo livremente inspirado em Sonho de uma noite de verão, de William Shakespeare, com direção e dramaturgia do pernambucano Newton Moreno, um dos homenageados do FRTN ao lado de André Filho.

A peça de 2h30 de duração, dois atos, estreou em São Paulo em novembro de 2021, na retomada do teatro presencial, nos jardins do Teatro João Caetano. Em agosto deste ano, fez uma temporada no Itaú Cultural.

Um dos destaques do elenco é o pernambucano Paulo de Pontes, que voltou ao Recife há alguns anos, depois de duas décadas morando em São Paulo. Paulinho, como é conhecido, brilha em cena. E havia uma grande expectativa por sua apresentação em casa, no Teatro de Santa Isabel.

Imaginamos que seria uma consagração, merecida. Mas as coisas nem sempre estão no nosso controle. E no dia 18 de novembro, logo depois da primeira cena de Paulo de Pontes, o espetáculo foi interrompido. O ator passou mal e não conseguiu continuar a peça.

Mesmo assim, no dia seguinte, o espetáculo aconteceu: Paulo de Pontes foi substituído por Tay Lopez, ator pernambucano que mora em São Paulo, mas tinha acabado de gravar um filme na Paraíba e estava de férias na cidade. Lopez fez uma leitura encenada do texto.

Diante dessa história cheia de inesperados e de ode ao teatro e a sua efemeridade, pedimos ao ator Tay Lopez que, no calor do momento, na segunda-feira, dia 20 de novembro, escrevesse um relato de experiência. Queríamos ouvir como foi viver tudo isso, deixar essa história registrada e compartilhá-la com outras pessoas.

É esse o texto que postamos aqui.

Obrigada, Tay Lopez, por atender ao convite de Newton Moreno e ao nosso.

Paulo de Pontes está bem.

Infelizmente, não conseguimos registros de imagem profissionais da sessão do dia 19 de novembro, então publicamos fotos amadoras, feitas de celulares por amigos que estavam na plateia.

“Shakespeare esteja conosco! O relato de uma substituição plena de afeto e amor ao teatro” *

Por Tay Lopez

Sábado, 18 de novembro, Festival Recife do Teatro Nacional, importantíssimo festival da cidade, que foi retomado bravamente este ano.

O cenário é o Teatro de Santa Isabel, lugar tão significativo para a cidade e para mim: me recordo quantas histórias vivi nesse teatro!

Peça: Sueño, do consagrado autor e amigo Newton Moreno, homenageado pelo festival juntamente com André Filho.

No foyer do teatro, um encontro festivo. Amigos de longa data, afetos, abraços. Feliz em estar na cidade de férias. Feliz em estar com minha mãe para vermos juntos uma peça que tanto gosto e que eu já tinha visto duas vezes em São Paulo. Há 2 anos, na estreia, retomada do teatro presencial, vi a montagem no Teatro João Caetano. E, há poucos meses, em agosto, revi na sua segunda temporada, no Itaú Cultural.

Espetáculo começa no Santa Isabel. Paulo de Pontes, irmão, amigo, confidente, entra em cena com seu Shakespeare maravilhoso. Plateia na mão.

Todos estavam na expectativa em ver Sueño na cidade, mas o espetáculo é interrompido, pois Paulinho não conseguiu voltar ao palco depois da primeira cena. Ela passou mal e precisou ser atendido por especialistas em um hospital próximo.

Vou ao camarim, procuro informações, me comunico com a família, com amigos e fico sabendo que, graças a Deus, não é nada grave. Volto para casa, durmo. Sonho com Paulinho. Estamos indo fazer um espetáculo juntos em algum lugar.

Acordo, procuro saber notícias sobre a saúde de meu amigo e recebo informações de que tudo está melhor, ele está bem, tinha sido só um susto. Fico aliviado.

Horas depois, o telefone toca. Newton Moreno me convida, sem rodeios, para uma tarefa. Na verdade, uma missão: substituir Paulo de Pontes. Não era um convite para encenar os mesmos personagens de Paulinho, o que seria impossível, mas para fazer uma leitura encenada.

Moreno me deixa muito à vontade para dizer não. Mas como dizer não para amigos tão queridos? Como não aceitar esse desafio? Como não homenagear Paulinho e tranquilizá-lo em saber que o espetáculo, de alguma forma, irá acontecer? Respondo que sim. E que essa decisão, na verdade, tinha que ser mais do grupo do que minha.

Newton fica feliz, agradece e já me manda o texto on-line. Domingo, 19 de novembro, 11h30, começo a ler a dramaturgia de Sueño.

Pouco tempo depois, decido parar. Vou à praia, mergulho no mar e volto. Tomo banho, almoço e sigo para o teatro.

Chegando lá, fui recebido com tanto amor, tanta atenção, que o mínimo que eu poderia fazer era tentar responder à altura. Tanta gente que admiro nesse elenco, nessa equipe.

Tay Lopez, José Roberto Jardim e Sandra Corveloni. Foto: arquivo pessoal

O espetáculo que seria às 16h foi transferido para às 20h.  Ensaiamos as cenas. Alguma ideia de marcação, de intenção, mas de liberdade e improviso.

Newton, como maestro, conduzindo tudo. Sandra Corveloni e José Roberto Jardim me ajudando nas cenas em que estaríamos juntos. Leopoldo Pacheco assessorando com os figurinos. Erica Rodrigues nos movimentos, Gregory Slivar nas intervenções musicais, Simone Evaristo na força puckiana. Almir Martines no olhar amoroso. Michele Boesche com palavras de encorajamento. Todos me passando confiança e acreditando que tudo daria certo.

Fui com serenidade, amor e espírito aberto para que a magia do teatro acontecesse naquela noite. “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia”, frase de Shakespeare, primeiro personagem de Paulo de Pontes.

Findado o ensaio, vou ao camarim. Léo Pacheco faz a minha maquiagem. Separamos os figurinos.

Paulinho me manda mensagem. Já está em casa e se recuperando bem. Eu tenho que dizer que ainda nutria esperanças de que ele poderia fazer a peça, mas não.

Fazemos a famosa roda de teatro. Dedicamos a apresentação a Paulinho e jogamos ao etéreo a força que nos guiaria naquela sessão.

Eis que a sala é aberta, o público se acomoda. Terceiro sinal e lá vamos nós. O público é avisado da minha entrada em substituição e do fato de eu estar com o texto na mão.

Primeira entrada. O público, muito generoso, embarca na experiência de ver uma sessão única. Teatro já é único, mas nesse dia, mais do que nunca, seria único para os outros atores que estavam em cena também. Um elemento novo estava ali. Um novo corpo, uma nova voz, um novo ritmo. Sobretudo, a memória da contracena com um jogador tão pleno que é Paulo de Pontes.

Paulinho é gênio! E sei de perto a importância que essas apresentações em Recife tinham para ele. Puxei meu amigo em meus pensamentos e tentei trazê-lo para perto. Sim, estávamos juntos. E assim aconteceu. Primeiro ato, segundo ato, público disponível.

Foi emoção à flor da pele. Que texto belo o de Newton! Tantas camadas.

Foi divertido, na medida do possível. Foi de verdade, com olhos e ouvidos presentes. Foi o que pude fazer. Foi teatro, jogo, “to play or not to play?”. Entre o “ser ou não ser”, escolhemos o ser e fomos. Um só corpo. Como o teatro tem que ser.

Sinto que só agora estou acordando desse grande Sueño. Torço muito para que o espetáculo volte ao Recife, com Paulo de Pontes no lugar que lhe cabe, mas preciso dizer o quanto foi uma experiência inesperada, louca e incrível. Teatro! Evoé!

Registro no palco do Teatro de Santa Isabel. Foto: arquivo pessoal

 

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