Arquivo do Autor: Ivana Moura

Jornada de resistência e busca por liberdade
Crítica da peça Alguém pra fugir comigo

Espetáculo recifense Alguém para fugir comigo. Foto: Ivana Moura

Alguém pra fugir comigo é um espetáculo de estrutura fragmentada e não linear, do Resta 1 Coletivo de Teatro, do Recife, que expõe diversas formas de opressão e de resistência em diferentes tempos – desde o “período escravocrata” até os dias atuais. A peça tem apelos de humanidades perdidas; ou clamor desesperado de que seja possível encontrar algum fio que leve ao coração das trevas.

Como se configuram os dispositivos da montagem, a peça parece abraçar as ideias de Chimamanda Ngozi Adichie sobre a importância de contar histórias e de evitar o perigo da história única.

Seus personagens, figuras ou flashes humanos são pobres e oprimidos, e a opção da montagem é a partir do olhar de luta delas e deles. Com isso, oferece ao público uma tapeçaria complexa de experiências de pessoas subalternizadas pelo sistema de ontem e de hoje. Pois como diz Adichie, “histórias importam”.

Montado em 2016, o que resultou na formação do Resta 1 Coletivo de Teatro, Alguém pra fugir comigo atravessou o pós-golpe de Dilma Rousseff, sobreviveu à pandemia, e respirou aliviado depois de quase sumir com ações diretas e indiretas do pior presente do Brasil. Isso está encarnado no corpo dos atores, nos fluxos de tensões e distensões da encenação. Nos quadros que se articulam entre si há encaixes perfeitos e outros que não se acomodam, gritam isoladamente.

A encenação de Analice Croccia e Quiercles Santana, corajosa e pulsante, desafia ao seu jeito, as convenções teatrais, mesclando diferentes estilos e abordagens narrativas. É uma trama que perpassa diferentes tempos e tipos, rasgando temas como desigualdade, resistência, injustiças e afetos. A origem conceitual e os disparadores vêm de textos políticos, líricos, filosóficos; relatos de fatos verídicos e imaginários.

Nessa estrutura estilhaçada se enroscam diferentes épocas e perspectivas. Desde a fuga de Liberdade, uma escravizada que busca escapar dos abusos da casa-grande, até reflexões sobre nossa cidadania vez por outra ameaçada, a peça mexe um caldo de experiências.

Há imagens extremamente potentes, poéticas, comoventes. Existe uma entrega na atuação do elenco, composto por Analice Croccia, Ane Lima, Caíque Ferraz, Clau Barros, Pollyanna Cabral, Raphael Bernardo e Wilamys Rosendo. Eles “abraçam” tipos cotidianos em situações extremas e performance mais autoral. Mas há quebras, uns hiatos, umas ruínas expostas que se apresentam febris, mas podem cair em fragilidades.

A direção musical e o desenho de som de Kleber Santana, combinados com a iluminação de Luciana Raposo e o figurino simples em tons pastéis, criam uma atmosfera envolvente. Os trechos musicados e coreografados são carregados de poética onírica.

Personagens questionam como conquistar a liberdade. Foto: Ivana Moura

A peça provoca uma gama de emoções no público, desde risos frouxos com o vocabulário escatológico de algum personagem até momentos de profunda reflexão e comoção. Minha amiga Inocência Galvão foi às lágrimas na sessão de 15 de agosto, no Teatro Apolo.

O grupo vai abrindo caminho em busca de uma linguagem própria. Mas soa como uma provocação/cilada o aviso do elenco de que “não há nada de novo ali” e que o público não deve esperar “isso” e “aquilo”. Pareceu-me um jogo de palavras para trazer o niilismo do quadro difícil que o teatro pernambucano enfrenta há anos e que só piorou. Cria um sentido dúbio sobre a obra. E não sei se devolve o efeito esperado pelos criadores/criadoras da cena.

Até porque, o espetáculo propõe uma escuta cúmplice, empática, de quem está à beira do abismo, de quem não suporta mais tanta pressão, dos momentos em que o mundo espreme tanto que quase não sobra fôlego para viver. E como alimentar a coragem, eles vão perguntando e vendo a resposta adiada.

Alguém pra fugir comigo evita oferecer respostas simplistas ou conforto imediato. Mas mesmo assim, relembra que é fundamental o exercício do afeto, da empatia e da solidariedade, especialmente em tempos de turbulência e incerteza. Talvez por a cena ser dura, com episódios cruéis, sinalize para esse caminho de humanidade.

A direção Analice Croccia e Quiercles Santana. Foto: Ivana Moura

O conceito de fuga é central na encenação, servindo como metáfora para a busca por liberdade e autodescoberta. A peça questiona: “Quando fuga virou sinônimo de liberdade? Justiça é sinônimo de liberdade? Estar livre é o mesmo que estar liberto?” Estas perguntas provocativas convidam o público a refletir sobre o verdadeiro significado de liberdade em diferentes contextos históricos e pessoais.

Através de personagens como Liberdade, a peça explora questões de identidade e pertencimento. A pergunta “Essas são nossas terras e origens?” ressoa profundamente, especialmente no contexto da história brasileira e sua herança colonial.

A direção de Analice Croccia e Quiercles Santana cria um jogo teatral dinâmico, mas com andamentos diferentes, da agilidade à lentidão. O uso de elementos simbólicos, como as malas carregadas pelos atores, funciona como metáfora para as bagagens emocionais e históricas que todos carregamos.

Como a própria peça sugere, qualquer dia desses você pode estar mais frágil e precisar de uma mão, de um braço, de um colo, de um abraço, de um empurrão. Talvez seja bom não esquecer disso.

FICHA TÉCNICA
Atuantes:
@analicecroccia
@ane_clima
@claubarros__
@pedrocaiqueferraz
@pollycabral
@rapha_berna
@wilamysrosendo

Operação de luz de @lucianaraposoluz
Pesquisa musical e execução de @klebersantana_bill
Direção de movimento de @patricia.costabailarina
Preparação de canto de @katarinamenezescanto
Texto de Ana Paula Sá e Quiercles Santana
Encenação de Analice Croccia e @quiercles

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Epifania coletiva
Algumas reflexões sobre o espetáculo
Fernanda Montenegro lê Simone de Beauvoir

Fernanda Montenegro do Ibirapuera. Foto: Reprodução

Sim, foi uma noite memorável. Este domingo, 18 de agosto de [ano], entrou para a história do teatro brasileiro com a performance de Fernanda Montenegro lendo Simone de Beauvoir no Auditório Ibirapuera – Oscar Niemeyer. A apresentação foi simultaneamente transmitida na parede traseira do prédio para 15 mil espectadores no parque. O contraste entre a intimidade da leitura e a grandiosidade do espaço aberto criou uma atmosfera única e inesquecível. Quase um show de rock, sem rock in roll, mas com filosofia, literatura, teatro, afetos e outras coisinhas, um espetáculo eletrizante, liberdade na veia.

Confesso que o que me inquietava com Fernanda Montenegro lê Simone de Beauvoir para uma multidão no Parque Ibirapuera era que a ação do marketing do banco Itaú  dissipasse a essência teatral, a artesania, o impacto emocional nos espectadores. Enfim, pasteurizasse o ritual.

Por 75 minutos a arte vibrou plena em primeiro plano, que até ingenuamente esqueci da natureza do capital. Com o patrocínio do Itaú, (que sabe que a cultura é um bom negócio), a arte imperou lindamente. Por ser Fernandona imensa, por tudo que ela representa para este país e para a cultura, a política, a cidadania. Por sua postura coerente, por ela estar no imaginário do povo brasileiro como Zulmira (A Falecida, 1965), Romana (Eles Não Usam Black-Tie, 1981), Madame Carlota (A Hora da Estrela, 1985), Dona Margarida (O Que É Isso, Companheiro?, 1997), Dora (Central do Brasil, 1998, papel pelo qual foi indicada ao Oscar), Nossa Senhora (O Auto da Compadecida, 2000), Leocádia Prestes (Olga, 2004), Tránsito Arriza (O Amor nos Tempos do Cólera, 2007), Bibiana Terra Cambará (O Tempo e o Vento, 2013), Dona Matilde (O Beijo no Asfalto, 2018), Eurídice Gusmão (A Vida Invisível, 2019),  Carminha (Piedade, 2021), Eunice Paiva (Ainda Estou Aqui, 2024), para citar alguns filmes.          

Ou das novelas / séries Júlia Albuquerque Soares Camargo (Sangue do Meu Sangue, 1969), Sílvia Toledo (Baila Comigo, 1981), Francisca Newman (Brilhante, 1981), | Charlotte de Alcântara Pereira Barreto- Charlo (Guerra dos Sexos, 1983), Leonarda Furtado Machado-Naná (Cambalacho, 1986), Salomé Szimanski (Rainha da Sucata, 1990), Olga Portela (O Dono do Mundo, 1991),  Jacutinga (Renascer, 1993), Maria Izabel de Souza- Dona Picucha (Doce de Mãe, 2012), Drª. Teresa Petrucceli (Babilônia, 2015), Gilda (Gilda, Lucia e o Bode, 2020) entre muitas outras atuações na telinha.

Ou no palco: Fedra, Dona Doida, The Flash and Crash Days, Dias Felizes, Viver Sem Tempos Mortos, Nelson Rodrigues por Ele Mesmo. Esses são os espetáculos que assisti, da trajetória intensa do teatro da Fernandona. Cada um revestido de seu tempo encarnado de humanidades.

A atriz assina a dramaturgia, baseada no livro A Cerimônia do Adeus de Simone de Beauvoir. Foto: Reprodução

Quando Dona Fernanda começou a ler sua versão de A Cerimônia do Adeus de Simone de Beauvoir tudo se iluminou numa mágica complexa para traduzir. A velha dama do teatro, de cabelos brancos, senhora absoluta da técnica de interpretar magnetizava as plateias do auditório e do parque. A multidão entrou em sintonia profunda com aquelas ideias relevantes da filósofa francesa. O silêncio era atravessado por muitas emoções densas, genuínas, choros, risos, lembranças individuais e coletivas.

Eu fiquei entre as 800 pessoas do auditório; minha amiga Gracinha Melo estava junto às 15 mil pessoas do gramado. A experiência dela foi mais ritual, pelo que ela (e outras pessoas contam) e absolutamente deslumbrante. O domingo foi ensolarado, com um final de tarde com temperaturas amenas e uma lua imensa parecia abençoar a atriz e seu público naquele encontro.

Marcado para começar às 19h, o evento iniciou por volta das 19h30, com a participação de Fernanda Torres, filha de Montenegro, que se dirigiu à multidão no parque (com transmissão para a plateia do auditório) para discorrer sobre a relação da mãe com a literatura de Beauvoir. “Essa obra fala, acima de tudo, da liberdade e de sua importância em nossas vidas, não importa a idade ou a origem de cada um”. Fernandinha mencionou que, apesar das vidas diferentes, a liberdade também guiou o percurso de Fernandona. Em seguida, contou que sua mãe foi impactada por O Segundo Sexo quando tinha 20 anos e que, quando ela, a filha, completou 17 anos, a mãe fez questão de lhe dar uma edição de presente.

Ao se aproximar dos 80 anos, Fernanda Montenegro levou a obra de Beauvoir para o palco. Com base no livro A Cerimônia do Adeus e trechos de outras obras foi encenado Viver Sem Tempos Mortos. A atriz enfrentava o luto pela perda de seu marido, o ator Fernando Torres, e de vários companheiros de sua geração artística, e no palco fazia uma poderosa reflexão sobre o passar do tempo, e a finitude.

Fernanda Torres e Fernanda Montenegro. Foto: Ivana Moura

O espetáculo Fernanda Montenegro lê Simone de Beauvoir teve uma origem intimista, como relatou Fernanda Torres. Inicialmente concebido para ser apresentado no auditório da Academia Brasileira de Letras, onde Fernanda Montenegro ocupa uma cadeira como imortal, o projeto rapidamente ganhou vida própria.

Após as primeiras apresentações em um pequeno teatro no Rio de Janeiro, o espetáculo conquistou o público de forma surpreendente. O sucesso crescente demandou espaços cada vez maiores para acomodar a audiência entusiasmada. Esta trajetória ascendente culminou na grandiosa apresentação no Parque Ibirapuera, em São Paulo.

Esta evolução do espetáculo – de um ambiente íntimo da ABL para um dos maiores parques urbanos do Brasil – reflete a popularidade de Fernanda Montenegro e o interesse duradouro nas ideias de Simone de Beauvoir. Demonstra, ainda, como uma performance aparentemente simples – uma atriz lendo os escritos de uma filósofa – pode ressoar profundamente com um público diverso e numeroso.

Junto com Fernanda, o público atravessa a infância, adolescência e juventude de Simone de Beauvoir, suas descobertas, aventuras e vida sexual. A narrativa passa pelo horror da Segunda Guerra Mundial e pela juventude contestatória do Maio de 1968, que sacudiu a França e mudou o mundo. Com o filósofo Jean-Paul Sartre sempre presente, Simone vive uma vida intensa até se aproximar da finitude do companheiro intelectual e de seu próprio fim, repleto de novas redescobertas.

Com seu registro único, a atriz magnetizou as paleias. Foto: Reprodução de tela

A apresentação de Fernanda Montenegro extrapolou o espetáculo cultural para se configurar como um poderoso ato político e social. O historiador Eric Hobsbawm, em suas obras, argumentava que a cultura é tanto um reflexo quanto um agente das condições sociais e políticas de seu tempo. Escutar as palavras da filósofa feminista reflete as discussões contemporâneas sobre igualdade de gênero e direitos das mulheres, temas que estão no centro do debate político atual.

Ao refletirmos sobre os avanços e recuos no campo comportamental e as tensões do século 21, é fascinante revisitar o pensamento de Beauvoir sobre o amor. Fernanda Montenegro apresentou a visão ampla e complexa de Beauvoir sobre o amor, começando pelo amor próprio – uma jornada de autodescoberta como mulher e ser pensante. O amor carnal, ou amor sexual, tema recorrente na obra da filósofa, foi abordado com nuances surpreendentes. Com destaque para a relação de Beauvoir com Jean-Paul Sartre, descrita como um amor livre e intelectualmente estimulante. 

Fernanda Montenegro completa 95 anos em outubro; o público cantou parabéns para você. 

O evento no Ibirapuera, com sua produção de alto nível, criou uma atmosfera especial. A qualidade do som permitiu uma boa recepção, enquanto a iluminação gerou intimidade apesar da vastidão do espaço. Momentos de humor provocaram risos coletivos, criando uma sensação de comunhão, enquanto as passagens introspectivas foram recebidas com um silêncio reverente.

Foi inspirador observar a reação do público no gramado. Jovens, possivelmente sem contato prévio com Beauvoir, ouviam atentos. A menção ao livro O Segundo Sexo foi recebida com aplausos entusiasmados, por quem reconhece a importância da obra.

O clímax emocional veio no final, quando as cortinas se abriram revelando a multidão. Nos últimos dez minutos, Fernanda se dirigiu diretamente ao público. Suas palavras sobre o poder do teatro na era digital ressoaram profundamente: “O teatro é uma arte arcaica, primitiva, um ser humano diante de outro trazendo a presença de uma terceira dimensão. Isso está acontecendo em uma era eletrônica.”

As últimas frases do monólogo ganharam relevo, traçando um paralelo entre a trajetória da atriz e os motivos para revisitar Beauvoir: “Não sou escrava do meu passado. O que sempre quis foi comunicar da maneira mais direta o sabor da minha vida. Eu acredito que consegui fazê-lo. Não desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.”

“O acaso existe e tem sempre a última palavra”, frase dita nos primeiros minutos do espetáculo, apontam para outras possibilidades e torço que inspire os jovens presentes a fazerem a diferença no mundo, abraçando a liberdade tão celebrada no palco.

Um momento particularmente tocante ocorreu os agradecimentos, quando o público de praticamente 16 mil pessoas espontaneamente cantou “Parabéns para Você” para Fernanda. Emocionada, a atriz declarou que esse era um grande presente, sua grande festa de aniversário, demonstrando sua profunda conexão com o público e sua gratidão pela vida e carreira extraordinárias que tem vivido.

 

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

 

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Humor afiado mira gordofobia
Crítica de 116 Gramas: peça para emagrecer

Atriz Letícia Rodrigues desafia os padrões de beleza impostos ao compartilhar conflitos e indignações. Foto: Maria Luiza Graner / Divulgação

116 Gramas: peça para emagrecer é um monólogo inspirador que afronta e combate a gordofobia na sociedade. Com foco na vivência da atriz Letícia Rodrigues, o espetáculo traça uma delicada e complexa relação entre corpo, identidade e autoaceitação.. A personagem “A Gorda” propõe uma reflexão sobre como a pressão para se adequar a normas de beleza irreais podem afetar profundamente a vida das pessoas. A meta de emagrecer a cada sessão 116 gramas, aparentemente insignificante, estampa a constante preocupação com a balança. Essa fixação demonstra a coação social para que as mulheres controlem obsessivamente seus corpos e hábitos alimentares, muitas vezes em detrimento de sua saúde mental e bem-estar.

Para explorar os mecanismos de perpetuação da opressão contra as gordas, problematizando as normas restritivas impostas pela mídia e indústria da beleza, a protagonista compartilha sua história de tentativa e falha em se conformar às medidas impostas. Nessa jornada emocional e introspectiva, ela utiliza elementos de performance, projeção e interação.

A encenação estabelece um tom confessional e íntimo, utilizando a busca de se parecer com ícones como Britney Spears e Gisele Bündchen para criticar a obsessão com a magreza e a pressão para se encaixar em moldes inatingíveis. 

Logo no prólogo, a personagem revela de maneira incisiva sua compulsão por se adequar a um ideal de beleza: “Eu fiz de tudo pra emagrecer para ser como Britney, Gisele e tantas outras. Só que eu não consegui… até agora. A única coisa que eu não fiz para emagrecer foi uma peça e é por isso que eu tô aqui.” O teatro surge então como um último recurso nessa jornada.

Ao criar um espetáculo teatral como forma de “queimar calorias”, Letícia Rodrigues, atriz, diretora  e dramaturga, e o codiretor João Pedro Ribeiro lançam um olhar crítico sobre a supervalorização da aparência. A comparação irônica com uma “aula de academia, só que mais bonita” evidencia como a perseguição pela magreza pode eclipsar outras dimensões importantes da vida, como a criatividade e a autoexpressão.

A dramaturgia oferece uma perspectiva quase científica da perda de peso, com exercícios, números e teorias. A utilização da balança e a projeção dos cálculos de calorias contextualizam a preocupação com a perda de peso, além de questionar a medicalização e a quantificação do corpo humano. 116 Gramas mergulha na “ciência da obesidade”, usando o Índice de Massa Corporal (IMC) como um ponto de partida para uma análise mais ampla sobre os parâmetros de normalidade. As projeções de dados de celebridades e seus IMCs servem como um comentário ácido sobre a hipocrisia e a arbitrariedade dos paradigmas de beleza. A introdução das teorias da conspiração dos Illuminati adiciona uma camada de humor e absurdo, subvertendo as expectativas e destacando a obsessão da sociedade com a aparência e o controle.

Ao compartilhar memórias e buscar poesia no exercício físico e suor, a protagonista tenta ressignificar sua experiência corporal, carregando a montagem com intensa carga emocional. Ela expressa sua raiva e frustração de maneira física em determinados momentos, expondo a violência simbólica contra si mesma e os padrões que a oprimem, traduzindo sua luta interna e externa. A lista de coisas que ela odeia é um grito de desespero.

Com uma narrativa autoficcional, a dramaturgia investiga o desejo de aceitação e as imposições sociais relacionadas à aparência física. Foto: Maria Luiza Graner / Divulgação

Com domínio da cena, Rodrigues utiliza com maestria seus recursos vocais, expressões faciais e linguagem corporal para expor as dores e conflitos. Existe um humor cáustico e corrosivo que revela uma dor profunda, as marcas de anos de autorejeição e sabotagem social de todas as ordens. Ela transita com habilidade entre as diferentes vozes que a atormentam. Sua interpretação comprometida e envolvente contribui para desnaturalizar essa forma de intolerância.

Como aponta Malu Jimenez em Lute Como Uma Gorda (Editora Jandaíra, 2022), a gordofobia não é sobre saúde, mas sobre controle dos corpos, especialmente os femininos. As pessoas gordas têm seu caráter e valor questionados por conta do peso, sofrendo humilhações, rejeições e exclusões de oportunidades.

A saga autoficcional de Letícia transita entre a ironia sarcástica, o desespero sufocante e o grito de revolta. Seu corpo é a própria carne da política, o campo de batalha onde se inscrevem as marcas da gordofobia estrutural. Cada movimento, cada gota de suor que escorre é um manifesto da existência insurgente, um atestado vivo da humanidade que resiste sob a pele estigmatizada.

A performance expõe sem filtros a violência cotidiana que os corpos gordos sofrem numa sociedade que os rejeita e os desumaniza. Sua presença cênica é um ato de resistência e afirmação, reivindicando o direito de existir e ocupar espaços sem pedir desculpas por seu tamanho. Letícia denuncia como a gordofobia é um problema sistêmico que permeia todas as esferas da vida social, muito além de uma questão individual. A pressão constante para emagrecer, os olhares julgadores e a exclusão de oportunidades são manifestações concretas de uma estrutura opressiva.

Ao expor sua própria vulnerabilidade e transformá-la em potência criativa, a artista nos confronta com a necessidade de repensar nossa relação com os corpos. Sua performance é um manifesto político que usa a arte como ferramenta de denúncia e transformação.

Recheada de referências pop e fluxos de consciência febris, 116 Gramas: peça para emagrecer é um mosaico caleidoscópico dos discursos contraditórios que bombardeiam esses corpos. Das dietas da moda às teorias conspiratórias, passando pelos vigilantes do peso e a iconografia da Barbie, Letícia costura uma colcha alegórica que reflete a esquizofrenia de uma sociedade que lhes impõe o inatingível.

A atriz expõe a crueldade por trás desse ideal inatingível de magreza. Foto: Maria Luiza Graner / Divulgação

Letíícia Rodrigues dança A Morte do Cisne de Tchaikovsky. Foto: Maria Luiza Graner / Divulgação

O humor afiado é a arma com que Letícia desfere seus golpes mais incisivos. Ao rir do próprio incômodo, ela expõe a hipocrisia de uma cultura capitalista que lucra com a insegurança e o auto-ódio feminino. O riso na peça assume uma função subversiva, como propõe Mikhail Bakhtin em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, ao desestabilizar as estruturas de poder e expor suas contradições.

Após listar tudo que odeia em ser gorda, a personagem manifesta sua raiva, exemplificando o impacto da gordofobia. O espetáculo transita entre o lírico e o cru, utilizando releituras de mitos. A comparação do suplício de Prometeu à condição das pessoas gordas, “acorrentadas a corpos que a sociedade rejeita e pune”, enriquece a narrativa com uma pitada filosófica e mitológica.

A metáfora do corpo gordo que se sente permanentemente sujo, “como se precisasse ser constantemente limpo”, ressoa com a experiência de muitos. A ideia de estar preso em um corpo não desejado e a busca por libertação oferece uma visão sensível das dificuldades enfrentadas pelas pessoas gordas.

E é justamente esse corpo gordo enquanto ato de rebeldia que Letícia traz à cena, numa performance física e emocionalmente extenuante. Como quando executa até a exaustão A Morte do Cisne de Tchaikovsky. 

O espetáculo tensiona as noções estreitas e excludentes do que é um corpo capaz e desejável. Letícia desmascara na arte a crueldade por trás desse ideal inatingível de magreza. Num momento em que discursos de ódio e intolerância avançam, 116 Gramas se posiciona como uma voz potente e necessária de resistência. Numa sociedade neoliberal que nos adoece para depois lucrar com a cura, o espetáculo de Letícia Rodrigues é um chamado à insurreição.

Ficha Técnica
116 Gramas: Peça para Emagrecer
Idealização, dramaturgia e atuação: Letícia Rodrigues
Direção: João Pedro Ribeiro e Letícia Rodrigues
Direção de arte: Eliseu Weide
Direção de movimento e coreografia: Luaa Gabanini
Direção musical: Natália Nery
Composição e arranjo de trilha sonora: Lana Scott e Natália Nery
Gravação, mixagem, técnica e operação de som: Lana Scott
Direção, edição audiovisual, mapping e operação de vídeo: Lana Scott
Motion graphics: Pablo Vieira
Desenho de luz: Camille Laurent
Operação de luz: Felipe Stucchi
Coordenação de produção: Leo Birche
Produção: Jéssyca Rianho
Planejamento estratégico de comunicação: Thiago Dias
Comunicação visual e fotografia: Maria Luiza Graner

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Ser Tão Teatro combina Tchekhov com bolo na cara
Crítica a partir da peça Alegria de Náufragos

Os atores de Alegria de Náufragos: Rafael Guedes, Cely Farias e Thardelly Lima. Foto: Rafael Passos/ Divulgação

Digamos que você, espectador, chegue ao cais para embarcar no espetáculo Alegria de Náufragos, sem ter muita informação sobre a peça. No primeiro momento, você pode ficar um pouco perdido. Afinal, há uma profusão de citações e referências. Eu também fiquei atordoada no começo.

Alegria de Náufragos é uma montagem intrigante. De cara, vemos os atores vestidos de pijamas, às voltas com as aflições e delírios do professor Nicolai Stiepánovitch, que ostentou por décadas os símbolos de prestígio, de sucesso, enfim de felicidade, agora vivendo um pesadelo contínuo. O protagonista contracena com outras figuras e com os seus fantasmas. 

Adaptado livremente do conto Uma história enfadonha – das memórias de um homem idoso, de Anton Tchekhov (1860-1904), a encenação, produzida pelo grupo Ser Tão Teatro da Paraíba, é resultado de um processo colaborativo do grupo com outros artistas nordestinos. Com dramaturgia assinada por César Ferrario, Giordano Castro e o coletivo, e direção compartilhada entre Ferrario e Castro, a peça busca estabelecer conexões entre a obra de Tchekhov e situações contemporâneas.

A montagem combina um tratamento poético de Ferrario, conhecido por seu trabalho com os Clowns de Shakespeare, e a perspectiva de Castro, do grupo Magiluth, que enfatiza a presença cênica do ator, sua potência de performance. Essa junção de estilos resulta em um espetáculo crítico e cômico, marcado por uma atuação física intensa.

A direção explora a desconstrução das personagens e evidencia a interação entre atores e público, quebrando a quarta parede e criando um ambiente de cumplicidade. O humor ácido satiriza instituições sociais e convenções culturais, expondo sua superficialidade e hipocrisia, ao mesmo tempo em que provoca risos e reflexões, subvertendo o peso de determinados valores.

Com uma estrutura não linear e fragmentada, a peça opta por uma encenação mais experimental. A história do professor Nicolai Stiepánovitch é contada através de uma série de cenas que se entrelaçam, que vão do deboche à reflexão filosófica.

Os atores Cely Farias, Rafa Guedes e Thardelly Lima interpretam várias personagens. Para as mudanças, o elenco faz pequenas alterações nos figurinos, concebidos por Vilmara Georgina, como a adição de um acessório ou a troca de um elemento de vestuário. Essa dinâmica ágil e a constante alternância de papéis, esse embaralhamento de figuras e a vertigem verborrágica podem confundir. Mas não se preocupe. Siga firme.

Ter algum conhecimento prévio sobre a obra de Anton Tchekhov talvez ajude a compreender algumas das referências ou temas abordados. Mas, se não tiver, tudo bem. Estar aberto a formas não convencionais de narrativa e performance é fundamental para se divertir com as nuances da peça, que desafia as expectativas tradicionais do teatro, exigindo disposição e uma mente aberta e curiosa. Faça as associações que lhe pareçam significativas.

Na idade madura, o protagonista questiona o sentido de prestígio, fama, poder.

Nicolai Stiepánovitch é um professor emérito, reconhecido por seu currículo impecável e suas contribuições significativas no campo da Medicina. Aos olhos da sociedade, alcançou o ápice do sucesso profissional e pessoal, enfim, a felicidade. Ele é respeitado, condecorado e visto como um exemplo de vida bem-sucedida. No entanto, aos 62 anos, Nicolai enfrenta uma dolorosa crise existencial. Ele começa a questionar as escolhas que fez ao longo de sua vida, percebendo a superficialidade e a pateticidade das instituições que antes valorizava. Gradualmente, suas conquistas e honrarias perdem o sentido para ele, que se vê como um náufrago em sua própria existência.

Para enriquecer a discussão sobre Nicolai Stiepánovitch, podemos trazer as ideias do sociólogo Zygmunt Bauman sobre a modernidade líquida e a vida líquida. Bauman argumenta que, na modernidade líquida, as estruturas sociais e as instituições são instáveis e em constante mudança. Essa fluidez gera incertezas e inseguranças, afetando a identidade e a busca por significado dos indivíduos.

Stiepánovitch é um exemplo de um indivíduo que, apesar de suas conquistas, se sente perdido em um mundo líquido. Sua crise existencial reflete a dificuldade de encontrar estabilidade e propósito em uma sociedade onde tudo é efêmero e mutável. As reflexões de Nicolai sobre a futilidade das instituições e o vazio interior ecoam as ideias de Bauman sobre a fragilidade das relações humanas e a busca incessante por validação.

A representação do envelhecimento em Alegria de Náufragos merece uma reflexão crítica sob a ótica contemporânea. Retratar Nicolai, aos 62 anos, como um homem no ocaso de sua carreira e de sua vida, restrito por limitações físicas e mentais, pode reforçar estereótipos e preconceitos relacionados à idade. Essa abordagem não condiz com a realidade de muitas pessoas na faixa dos 60 anos no século 21, que, graças aos avanços da medicina, da qualidade de vida e da consciência sobre a saúde, mantêm uma vitalidade e uma energia notáveis.

Exemplos de artistas como Madonna e Sting, que aos 64 e 71 anos, respectivamente, seguem criando, se apresentando e cativando o público com sua arte e presença cênica vibrante, acentuam que a idade não é um fator determinante para a vitalidade e a paixão pela vida.

No que diz respeito à personagem Cátia, que ocupa um lugar especial na vida do protagonista, ela de fato representa um contraponto significativo ao desalento e ao vazio interior de Nicolai. Sendo uma jovem artista plena de sonhos e paixão pela vida e pela arte, Cátia personifica a esperança e a busca incessante por sentido. Sua luta para viver da arte, mesmo quando enfrenta fracassos e decepções, ressoa com a própria experiência dos atores do Ser Tão Teatro e os desafios de muitos grupos espalhados pelo Brasil.

Montagem paraibana participa do circuito do Palco Giratório nacional. Foto: Eunilo Rocha / Divulgação

Os elementos cênicos, retirados de uma caixa central no palco, ganham estatura na encenação. Objetos simples como flâmulas, troféus, cabos de vassoura e medalhas são utilizados para construir a imagem do professor Nicolai e sua trajetória.

É um mérito do grupo trabalhar com temas profundos como a ruína interior, os valores mundanos das instituições e a crise existencial na chave da comicidade e do deboche, agregando o interesse de plateias mais jovens. Afinal, a peça também fala disso: não se leve tão a sério, não leve a vida tão a sério.

Quem é do teatro ama a porção metateatral, com a incorporação de elementos autobiográficos dos atores e reflexões sobre a própria prática e seus perrengues, adicionando uma camada extra de complexidade.

Os atores utilizam gestos exagerados, expressões faciais e movimentos corporais para criar momentos cômicos. A peça expõe as dificuldades enfrentadas pelo povo do teatro, como a corrida por editais, a burocracia envolvida na obtenção de financiamento para projetos e a necessidade de complementar a renda com papéis de figurantes, animações de festas infantis, oferecendo uma visão da precariedade e incerteza da vida de artista.

O uso de ações cômicas como tapa na cara, bolo na cara, talco, água e açúcar na cara se mostrou uma estratégia eficaz para criar momentos de humor físico. Esses recursos intensificam a comicidade e criam um ambiente de caos controlado.

O Ser Tão Teatro, fundado em 2007 por alunos e profissionais das artes cênicas da UFPB, é um grupo de pesquisa teatral de João Pessoa, Paraíba, que tem se destacado no cenário nacional e regional. Com Alegria de Náufragos – que estreou em março de 2016, em João Pessoa, e foi financiado pelo Fundo Municipal de Cultura (FMC) – a trupe está em circulação pelo Brasil, através do projeto Palco Giratório do SESC Nacional. Estão previstas apresentações em Natal (RN) no dia 07/08; São Paulo (SP) nos dias 13/08, com a realização do Pensamento Giratório, e 14/08; Rio de Janeiro (RJ) no dia 15/08, com uma apresentação no Polo Educacional; Florianópolis (SC) no dia 22/08; São Luís (MA) no dia 18/09; e Porto Velho (RO) no dia 26/09.

A peça estreou na época do # fora Temer. Foto: Eunilo Rocha / Divulgação

Ficha técnica:
Direção: César Ferrario e Giordano Castro
Dramaturgia: César Ferrario, Giordano Castro e Ser Tão Teatro
Elenco: Cely Farias Rafa Guedes Thardelly Lima Polly Barros (stand in) Paulo Philipe (stand in)
Direção musical e música original: Marco França
Desenho de luz:: Ser Tão Teatro
Produção: Rafa Guedes, José Hilton
Iluminador: Fabiano Diniz
Operador de som: Polly Barros
Figurino: Vilmara Georgina
Cenografia e adereços: Maria Botelho
Direção de palco e contrarregragem: José Hilton e Daniel Torres

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Delírio perplexo no Km 23, Brasil
Crítica a partir do espetáculo
Neste mundo louco, nesta noite brilhante

Yara de Novaes e Débora Falabella em cena do espetáculo Neste mundo louco, nesta noite brilhante. Foto: Sérgio Silva / Divulgação  

Quando assisti ao espetáculo Neste mundo louco, nesta noite brilhante pela primeira vez em 2019, no Sesc Consolação em São Paulo, vivenciei um episódio de medo e insegurança nas ruas da cidade. Descendo, depois da sessão, pela Rua Dona Veridiana sem estrelas e sem luar, ao lado de uma amiga, fomos surpreendidas por um homem que caminhava na nossa direção e que despertou os piores sentimentos de pavor e vulnerabilidade. O que havia visto no palco com Débora Falabella e Yara de Novaes ainda reverberava intensamente em mim, e os dados alarmantes de violência contra as mulheres acionavam mecanismos estranhos. Minha amiga correu por uma rua lateral, enquanto eu, não sei exatamente porquê, fui em direção ao sujeito. Tudo parecia muito rápido. Minha amiga encontrou uma viatura da polícia que se prontificou a nos deixar perto de casa, depois de nos fichar. Eu me recusei, não querendo estar nas fichas da polícia. Minha amiga ficou possessa comigo e seguimos a pé, com a amizade quase se rompendo ali, ou perdendo um pouco do romantismo.

Esse incidente ocorreu antes da pandemia de Covid-19, que paralisou o planeta e alimentou a utopia de que a humanidade iria aprender com os milhões de mortes; mas qual o quê! Também foi antes da operação policial realizada em 2022 na Praça Princesa Isabel, onde estava concentrada a Cracolândia naquela época. Após a ação, os usuários de crack se dispersaram para outras ruas da região central de São Paulo, como a Rua Helvétia, a Alameda Dino Bueno e outras dos bairros de Santa Cecília, Campos Elísios, República e adjacências.

A montagem de Neste mundo louco, nesta noite brilhante, agora em cartaz no Teatro Firjan SESI Centro, no Rio de Janeiro, até 18 de agosto, foi muito bem recebida em todas as temporadas e por onde esteve em cartaz. Um casal de amigos da área de produção de orgânicos que passava a semana no Rio de Janeiro, a quem indiquei o espetáculo, retornou entusiasmado: “Gratidão amiga, a peça é estupenda”. Fui buscar aquelas imagens e sensações ainda acesas, que tanto me impactaram.

Muitas produções teatrais têm trabalhado com a temática da violência contra a mulher no palco, e há diversas formas de representar uma questão tão dura, tão real, tão abominável. O que pode fazer a diferença é a linguagem, esse treco que faz amarrações incríveis para mergulhar em assuntos complexos sem querer apresentar soluções mágicas. No caso desta peça, a estética não realista e poética vem associada a um humor ácido.

A violação de uma mulher é uma barbárie que continua sendo praticada, sem que os homens no poder, ou os que se autointitulam de bem, se sintam realmente atravessados como se fosse na própria carne. Nenhum homem sabe de verdade o que é sentir no corpo o irreparável do estupro. Os dados são alarmantes e as taxas crescem.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, houve 61.243 casos de estupro no Brasil em 2023, um aumento de 9,2% em relação a 2022. Isso significa que, em média, uma mulher é estuprada no país a cada 9 minutos. Nove minutos; repito! Além disso, o Brasil registrou 1.427 casos de feminicídio em 2023, um aumento de 8,2% em relação ao ano anterior. Esses números chocantes evidenciam a urgência de se discutir e enfrentar a violência contra a mulher em todas as suas formas.

As raízes dessa violência se entrelaçam com as estruturas patriarcais que permeiam nossa sociedade, perpetuando a dominação masculina. O patriarcado é um emaranhado complexo de relações de poder que se infiltra em todas as esferas da vida, desde as interações mais íntimas até as instituições que moldam nossa existência compartilhada.

Essa lógica perversa de dominação não se limita a aspectos isolados, mas se alastra, contaminando a política, a economia, a cultura e até mesmo nossa psique. É ela que sustenta a cultura do estupro, que normaliza a violência sexual e culpa a vítima por sua própria violação. É ela que mantém a violência de gênero como uma sombra constante, um fantasma que assombra a vida de milhões de mulheres.

O patriarcado se adapta e se reinventa, encontrando novas formas de se manifestar em um mundo em constante mudança. Seja através de microagressões cotidianas, da desigualdade salarial, da sub-representação feminina nos espaços de poder ou da violência física e sexual, o patriarcado se faz presente, limitando e oprimindo as mulheres.

A dramaturgia é de Silvia Gomez. Foto: Joao Caldas Fº / Divulgação

Um dos pontos de inspiração da dramaturgia da montagem foi um episódio real ocorrido no Piauí em 2015, quando quatro meninas foram estupradas e jogadas de um abismo. No entanto, a peça não se limita a esse evento trágico. Muitas linhas se cruzam e muitas histórias se acumulam, dialogando em camadas na trama tecida por Silvia Gomez.

A dramaturga – autora de peças como O Céu Cinco Minutos Antes da Tempestade, O Amor e Outros Estranhos Rumores, Marte, Você Está aí? e Mantenha Fora do Alcance do Bebê –, constrói uma narrativa com palavras afiadas que penetram nas camadas mais subterrâneas da sociedade, expondo as entranhas de um sistema que normaliza o inaceitável. 

Gomez encontra no delírio a chave para destrancar as portas da perplexidade e do horror. Sua escrita carrega uma qualidade cirúrgica, trabalhada com precisão para expor as estruturas mais profundas e as vísceras de uma sociedade que normalizou a violência a tal ponto que chegou à indiferença, corroendo nossa humanidade.

Na encenação de Gabriel Fontes Paiva, o tema delicado e difícil do estupro coletivo é tratado com sensibilidade. Débora Falabella interpreta a garota violentada que, em meio ao turbilhão do trauma, busca desesperadamente um fio de sentido para não sucumbir. Yara de Novaes, como a vigia testemunha do quilômetro 23, cenário do crime, encarna a impotência e o atordoamento diante da barbárie, oscilando entre a empatia e a descrença. Juntas, elas traçam uma cumplicidade cênica desconcertante, que anos de convívio artístico no teatro de grupo proporciona. 

Trago algumas reflexões sobre performance, trauma e representação. No livro The Body in Pain: The Making and Unmaking of the World (1985), Elaine Scarry explora como a dor física, especialmente a dor extrema como a da tortura, resiste à representação linguística. Scarry argumenta que a dor destrói a linguagem convencional, tornando-a fragmentária e incoerente.

Outro autor que aborda questões semelhantes é o teórico de performance e trauma Patrick Duggan. Na publicação Trauma-Tragedy: Symptoms of Contemporary Performance (2012), Duggan investiga como as performances contemporâneas lidam com o trauma. Ele sugere que a performance pode servir como um meio de “testemunhar” o trauma, não através da representação direta, mas através da evocação de seus efeitos e sintomas, muitas vezes através de meios não verbais como o corpo, o som e a imagem, criando “efeitos de presença” do trauma.

Já a teórica da performance Diana Taylor, em seu livro The Archive and the Repertoire: Performing Cultural Memory in the Americas (2003), investe na relação entre performance e memória traumática. Taylor sugere que a performance, como um “repertório” de memória corporificada, pode transmitir experiências traumáticas de maneiras que escapam ao discurso verbal e à documentação escrita.

A peça é uma montagem do Grupo 3 de Teatro com direção de Gabriel Fontes Paiva. Foto: João Caldas Fº

Neste mundo louco, nesta noite brilhante tem a capacidade de “testemunhar o “intestemunhável”, ou seja, tocar em experiências traumáticas que desafiam a representação.

O cenário de André Cortez funciona como uma metáfora visual para o não-lugar da violência, esse espaço de suspensão onde a realidade se desintegra. É um território onírico, onde os pesadelos ganham forma e a linha entre o real e o surreal se dissolve. As projeções de vídeo são como fragmentos de memória, ecos deformados de um trauma que se recusa a ser esquecido. Elas sugerem a natureza intrusiva e repetitiva das memórias traumáticas, que voltam incessantemente, muitas vezes de forma despedaçada. A iluminação cria uma atmosfera de claustrofobia, como se o palco fosse a própria mente aprisionada no labirinto do trauma.

A trilha sonora, composta por Lucas Santana e Fábio Pinczowisk, adiciona mais uma camada à narrativa. Durante as apresentações no Sesc Consolação, a banda boliviana Las Majas a executava ao vivo, criando uma atmosfera única. Nessa temporada no Teatro Firjan SESI Centro, a trilha é gravada,  mantendo sua força e impacto.

O Grupo 3 de Teatro – que já montou espetáculos como Contrações (2013), com direção de Grace Passô, e Love, Love, Love (2017), dirigido por Eric Lenate -, utiliza a poética do desconforto como estratégia estética. Essa poética visa desestabilizar o público, tirá-lo da zona de conforto das certezas e confrontá-lo com o incômodo, o mal-estar. É uma linguagem que se recusa a ser complacente, que escolhe a vertigem do estranhamento como forma de provocar reflexão.

Ao abraçar o desconforto, o Grupo 3 de Teatro nos convida a encarar as sombras dentro de nós mesmos, a questionar as estruturas que sustentam a violência e a reconhecer nossa própria cumplicidade silenciosa. 

É difícil transmitir a intensidade e a complexidade das experiências encarnadas pelas atrizes. Ao longo da peça, as atrizes Débora Falabella e Yara de Novaes utilizam uma linguagem corporal descontínua para evocar os estados internos da mulher violentada e da testemunha solidária. Os movimentos convulsivos, os gritos sufocados, os silêncios carregados – todos esses elementos evocam o impacto da violência. 

Ao mesmo tempo, a estrutura não linear e onírica da cena, com suas transições abruptas e justaposições insólitas, reflete a natureza descontínua e desorientadora da memória traumática. Não há uma narrativa clara de causa e efeito, nenhuma resolução fácil – em vez disso, somos imersos em um espaço psicológico onde o tempo é distorcido, as identidades são fluidas e as fronteiras entre o real e o imaginado são borradas.

Esse reconhecimento, esse ato de “testemunho secundário”, implica o público. Ao sermos confrontados com a realidade crua da violência e suas consequências devastadoras, não podemos mais manter uma distância segura. Somos chamados a sentir, a nos envolver em um nível profundamente político.

Assim, Neste mundo louco, nesta noite brilhante se mostra como um ato de resistência contra o silêncio e a invisibilidade que muitas vezes cercam a violência sexual, lembrando que essa ferida coletiva requer um engajamento coletivo.

Ficha técnica:
Elenco: Débora Falabella e Yara de Novaes
Texto: Silvia Gomez
Direção: Gabriel Fontes Paiva
Cenografia: André Cortez
Vídeo-cenário: Luiz Duva
Figurino: Fabio Namatame
Iluminação: Gabriel Fontes Paiva e André Prado
Trilha sonora original: Lucas Santtana e Fábio Pinczowisk

Serviço:
Neste mundo louco, nesta noite brilhante
Quando: Quinta e Sexta às 19h, Sábado e Domingo às 18h. De 28 de Julho a 18 de Agosto
Onde: Teatro Firjan SESI Centro. – Avenida Graça Aranha, 1, Rio de Janeiro – Rio de Janeiro
Quanto: Ingressos entre R$ 20,00 e R$ 40,00

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

 

 

 

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