Arquivo do Autor: Ivana Moura

Amor trágico no Sertão
Crítica de Uma mulher vestida de Sol

Miguel Marinho  e Bruna Alves em Uma Mulher Vestida de Sol. Foto: Eric Gomes

No Sertão imaginário projetado no palco, o Grupo Grial reescreve sua própria história. Com Uma Mulher Vestida de Sol, a trupe pernambucana inaugura uma nova fase em sua trajetória de 26 anos. Essa produção reafirma seu compromisso estético, mas abre canais para novas possibilidades, após cinco anos afastada da cena.

Desde sua fundação por Maria Paula Costa Rêgo e Ariano Suassuna em 1997, o Grial tem sido um farol da dança armorial, mesclando as chamadas raízes profundas da cultura nordestina com a linguagem contemporânea. Esta montagem se conecta às pulsações destes tempos, articulando reflexões sobre temas urgentes, como o feminicídio, através da junção de dança, poesia sertaneja, canto ao vivo e teatro.

Em espetáculos anteriores, o Grial chegou a contar com 18 artistas em cena, criando um apelo imediato e uma exuberância próxima às manifestações populares que conquistavam o público instantaneamente. Agora, com apenas quatro intérpretes, há um notável deslocamento na concepção coreográfica. Esta nova configuração traz uma sutileza e uma forma diferente de ocupar o palco.

Emerson Dias e Aldene Nascimento, veteranos do grupo, carregam em seus corpos a memória viva do frevo, do maracatu, do cavalo-marinho e de outras danças tradicionais nordestinas. Ao mesmo tempo, a interação com os novos integrantes propicia uma dinâmica mais íntima, abrindo espaço para experimentações. Esta sinergia conduz a produção a um quase minimalismo cênico, valorizando o processo como uma arte em permanente construção. 

A participação de Miguel Marinho incorpora camadas significativas à performance. Como poeta e músico, ele traz a poesia sertaneja improvisada, conhecida como glosa, que adiciona imprevisibilidade e frescor ao espetáculo. Suas palavras dançam no ar, criando um contraponto com os movimentos dos bailarinos. Além de sua contribuição poética, Marinho assume a direção musical da montagem, trazendo uma sonoridade única com seu pandeiro. 

Mas é Bruna Alves, cantora com deficiência visual, que traz uma dimensão única à encenação. Sua presença é simultaneamente um ato de inclusão e um convite para pensar sobre nossa percepção da dança e da vida. Com Bruna em cena, somos desafiados a experienciar o movimento de uma maneira incomum, questionando nossas noções convencionais sobre espaço e expressão corporal. Sua voz, elemento central de sua arte, enriquece a paisagem sonora da obra.

O espetáculo, em sua totalidade, investe em temas complexos e relevantes. A ideia da luta por terra, um assunto de grande importância social e política no Brasil, é explorada de maneira poética. 

Paralelamente, a força nefasta do patriarcado é outro elemento crucial da narrativa. O espetáculo examina criticamente as estruturas de poder baseadas no gênero, expondo como essas dinâmicas afetam profundamente a sociedade. A presença de Bruna, como uma mulher artista com deficiência visual, adiciona uma camada extra de significado a esta discussão, desafiando estereótipos e expectativas de gênero.

Emerson Dias e Alden Nascimento. Foto: Eric Gomes / Divulgação

A coreografia, fruto de um processo colaborativo inédito no Grial, é um testemunho da abertura artística do grupo. Ao compartilhar o processo criativo, Maria Paula Costa Rêgo incentiva que diversas vozes artísticas se entrelacem, resultando em um mosaico de movimentos rico e polifônico. Os gestos fluem entre a precisão técnica das danças tradicionais e a liberdade da dança contemporânea, criando um vocabulário corporal bem instigante. Esta composição coreográfica em camadas amplia os horizontes do Grial, subvertendo convenções e assumindo novos riscos criativos. 

Musicalmente, o espetáculo apresenta uma composição sonora diversificada. A criação de Miguel Marinho e do grupo Em Canto e Poesia se torna um elemento narrativo próprio, construindo uma estrutura acústica que abrange o canto do aboio, os ritmos do maracatu e momentos de silêncio significativo. A inclusão de sons típicos do Sertão – como o sino da cabra e o vento – cria uma atmosfera que evoca vividamente o ambiente sertanejo.

Para materializar essa atmosfera, o grupo optou por povoar a cena com couros de bode, elementos característicos das terras e estradas do sertão.

Tematicamente, esta nova versão de Uma Mulher Vestida de Sol apresenta uma perspectiva artística distinta em relação à montagem de 2002. Naquele ano, Maria Paula Costa Rêgo criou a peça Uma Mulher Vestida de Sol – Romeu e Julieta, engajando elementos shakespearianos tanto na encenação quanto na direção de arte. A produção anterior, embora enraizada no texto de Suassuna, estabelecia um diálogo com a tradição teatral clássica de maneira que sutilmente evocava as obras do bardo inglês.

Em contraste, esta nova interpretação opta por uma imersão mais profunda no universo “arianesco”. A versão atual ressalta elementos característicos da obra de Suassuna, como a conexão intrínseca com a terra e as complexidades da cultura sertaneja. A disputa pela terra, tema central na obra original, ganha novas dimensões nesta montagem. O espetáculo estabelece paralelos sutis com debates contemporâneos sobre o conflito entre agronegócio e agricultura familiar, atualizando a narrativa para o contexto atual brasileiro.

Além disso, questões como o machismo e o feminicídio, temas presentes na dramaturgia original, são aqui exploradas sob um prisma atual. O Grial opta por examinar essas problemáticas de forma mais direta, sem abrir mão da poesia e da força lírica da narrativa de Suassuna.

Esta nova montagem, quando comparada à versão de 2002, revela uma notável transformação na leitura artística do Grupo Grial sobre o material original. Tal mudança reflete escolhas estéticas distintas e demonstra uma resposta às dinâmicas sociais e culturais das últimas duas décadas.

A ideia da luta por terra e a força nefasta do patriarcado estão presentes no espetáculo. Foto: Eric Gomes

A recusa do Grupo Grial em oferecer respostas fáceis exige do público uma participação ativa, uma disponibilidade para cocriar significados. Cada elemento do espetáculo – seja um gesto, uma nota musical ou uma palavra falada – funciona como um estímulo à sensibilização, instigando o espectador a questionar suas concepções sobre arte, tradição e identidade nordestina.

É importante reconhecer que a proposta artística do Grial nesta produção pode apresentar desafios de recepção para parte do público. A complexidade e a natureza interpretativa da obra podem não ser imediatamente acessíveis a todos os espectadores, especialmente aqueles menos familiarizados com as nuances da dança contemporânea. No entanto, é crucial lembrar que a dança, como forma de expressão artística, frequentemente opera no campo do abstrato e do simbólico. A compreensão total ou imediata nem sempre é o objetivo principal, e sim a experiência estética e emocional proporcionada pelo espetáculo.

Um dos desafios para o Grial reside em encontrar um equilíbrio entre a expressão de sua proposta artística e a criação de pontos de conexão com um público diversificado. Isso não implica necessariamente em simplificar a obra, mas em criar dimensões de sentido que possam ressoar de maneiras variadas com espectadores distintos, enriquecendo assim a experiência estética e emocional proporcionada pelo espetáculo.

Ficha Técnica

Direção coreográfica: Maria Paula Costa Rêgo
Intérpretes criadores: Aldene Nascimento e Emerson Dias
Direção musical/Intérprete/Poeta: Miguel Marinho
Intérprete cantora: Bruna Alves
Iluminação: Luciana Raposo
Sonoplastia: Jordy
Figurino: Biam Diphá
Cenografia: Grupo Grial

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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Coletivo Legítima Defesa apresenta
Exílio: notas de um mal-estar que não passa

Peça faz uma “transcriação poética” do exílio vivido por Abdias Nascimento e sua relação com Augusto Boal. Foto: Camila Ríos / Divulgação

Exílio resgata vozes silenciadas pela história oficial e propõe futuros alternativos. Foto: Camila Ríos / Divulgação

Imagine um palco onde o tempo se dobra e a história se refaz. O que parece metáfora poética se encaminha para uma profunda reflexão político-filosófica sobre a natureza da existência negra através dos séculos. É nesse espaço liminar, onde passado e presente colidem, que o Coletivo Legítima Defesa nos convida a adentrar com Exílio: notas de um mal-estar que não passa. Esse espetáculo urgente vem com imperativo ético e estético de reescrever a narrativa da negritude, resgatando vozes silenciadas pela história oficial e propondo futuros alternativos. A peça faz temporada no Sesc 14 Bis, na capital paulista, de 18 de outubro a 10 de novembro.

Exílio: notas de um mal-estar que não passa se apresenta como “transcriação poética” do exílio vivido por Abdias Nascimento (1914-2011) e a sua relação com Augusto Boal (1931-2009). Trata-se de uma reinvenção criativa que junta palavras, experiências vividas, traumas históricos e aspirações coletivas para o palco. Na construção dramatúrgica, Eugênio Lima e Claudia Schapira incorporam elementos do acervo do Teatro Experimental do Negro (TEN).

A montagem parte da premissa de que o surgimento do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado por Nascimento, coincide com o início da carreira dramatúrgica de Boal. Assim, Exílio retrata esta relação histórica e salienta a influência mútua desses dois criadores no desenvolvimento do teatro nacional.

As pesquisas do Legítima Defesa apontam que Boal e Nascimento reinterpretaram a hybris trágica, conceito da dramaturgia grega, a partir de uma lente afro-diaspórica. Eles propunham que a hybris negra – o orgulho desmedido que leva à queda do herói – estava intrinsecamente ligada ao candomblé. Essa perspectiva motivou Boal a escrever uma série de peças ambientadas em terreiros: O Logro (1953), O Cavalo e o Santo (1954), Filha Moça (1956) e Laio se Matou (1958).

A dramaturgia de Exílio entrelaça obras de Boal, Nascimento e O’Neill. Foto: Camila Ríos / Divulgação

No cenário teatral brasileiro das primeiras décadas do século 20, predominava um pensamento discriminatório que limitava atrizes e atores negros a papéis cômicos, negando-lhes oportunidades em produções trágicas ou dramáticas sob o pretexto, infundado, de que careciam de profundidade interpretativa. Nesse contexto, Abdias Nascimento – que passou 13 anos exilado nos Estados Unidos e na Nigéria – voltou seu interesse para a obra do dramaturgo estadunidense Eugene O’Neill (1888-1953). Nascimento via nas peças de O’Neill veículos potentes para explorar o que considerava a grande tragédia do negro no Brasil: o processo de embranquecimento. Por esse prisma, o indivíduo negro enfrenta um dilema existencial – ou abandona sua negritude e “morre” culturalmente, ou a mantém e enfrenta a morte literal ou simbólica imposta pela sociedade racista.

A narrativa de Exílio se desdobra como uma metapeça audaciosa, onde um grupo de seis performers negros – Walter Balthazar, Luz Ribeiro, Jhonas Araújo, Gilberto Costa, Fernando Lufer e Thaís Peixoto – tenta montar trechos de obras históricas, confrontando-se com a impossibilidade emocional e ética de reviver tais tragédias. Este conflito interno do elenco se torna o cerne do espetáculo, transformando-o em um “sample de textos” onde tudo é documento. O palco, convertido em um “tapete da memória”, permite que os atores transitem entre diferentes temporalidades e narrativas, enquanto a equipe técnica, visível e iluminada, participa ativamente da construção cênica. O diretor Eugênio Lima atua como se estivesse conduzindo um ensaio, borrando as fronteiras entre realidade e representação.

A dramaturgia de Exílio entrelaça diversas obras, criando um exercício de metalinguagem. De O’Neill, são incorporados O Imperador Jones, explorando o protagonismo negro e as complexidades do poder, e Todos os Filhos de Deus Têm Asas, abordando o drama racial e a busca por identidade. De Boal, O Logro investiga a tragédia na experiência negra brasileira, enquanto Murro em Ponta de faca reflete sobre o exílio e o deslocamento. A obra de Abdias Nascimento, Sortilégio – Mistério Negro, examina o tema do sacrifício e conflito de identidade. Esses fios de diferentes épocas e autores cria uma narrativa que explora a complexidade da experiência negra através do tempo e do espaço.

A paisagem sonora junta elementos aparentemente díspares, que se entrelaçam e se sobrepõem de maneira fluida: os depoimentos históricos de figuras emblemáticas como Léa Garcia e Ruth de Souza, os beats do Hip Hop dos anos 1980 e 1990, e as composições minimalistas de Philip Glass. Os raps contundentes dos Racionais MC’s dialogam com o jazz melancólico de Billie Holiday, enquanto os tambores de candomblé ressoam em harmonia com o soul envolvente de Marvin Gaye.

O cenário é enriquecido por projeções de documentos históricos, cartas, filmes e fotos, pesquisados no IPEAFRO e no Instituto Boal, criando um diálogo visual entre passado e presente. O figurino, assinado por Claudia Schapira, opta por peças-chave que situam as personagens em diferentes décadas, sempre mantendo a aparência de “roupa de ensaio”. A paleta em preto e branco remete à primeira peça do grupo, reforçando a ideia dos atores como documentos vivos da história negra.

Com Exílio“, o Coletivo Legítima Defesa reafirma suas investigações sobre a condição negra no Brasil e no mundo. O espetáculo discute como a experiência do exílio molda a identidade negra, de que forma o teatro pode ser um instrumento de resistência e transformação social, e como podemos reimaginar o futuro a partir de um passado de opressão. 

Elenco do Coletivo Legítima Defesa. Foto: Camila Ríos / Divulgação

FICHA TÉCNICA

Direção, direção musical, música e desenho de som: Eugênio Lima
Dramaturgia: Eugênio Lima e Claudia Schapira
Intervenção dramatúrgica: Coletivo Legítima Defesa
Com samplers dramatúrgicos de: Frantz Fanon, Racionais MC’s, Augusto Boal, Abdias Nascimento, Maurinete Lima, Eugene O’Neill, Nelson Rodrigues, Agnaldo Camargo, Ruth de Souza, Léa Garcia, Túlio Custódio, Guilherme Diniz, Gianfrancesco Guarnieri, Molefi Kete Asante e Iná Camargo Costa
Elenco do Legítima Defesa: Walter Balthazar, Luz Ribeiro, Jhonas Araújo, Gilberto Costa, Fernando Lufer e  Eugênio Lima
Atrizes convidadas: Thaís Peixoto e Luaa Gabanini (em vídeo)
Produção: Iramaia Gongora Umbabarauma Produções Artísticas
Videografia: Bianca Turner 
Iluminação: Matheus Brant
Figurino: Claudia Schapira
Direção de gesto e coreografia: Luaa Gabanini 
Assistência de direção: Fernando Lufer
Fotografia: Cristina Maranhão 
Design: Sato do Brasil
Consultoria vocal: Roberta Estrela D´Alva
Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques, Carol Zeferino e  Daniele Valério
Cenotécnico: Wanderley Wagner
Vídeo: Matheus Brant
Engenharia de som: João Souza Neto e Clevinho Souza 
Costureira: Cleusa Amaro da Silva Barbosa 
Parceiros: Casa do Povo, Ipeafro, Instituto Boal, Editora 34 e Editora Perspectiva

SERVIÇO
Exílio: notas de um mal-estar que não passa
Data: 18 de outubro a 10 de novembro, de quinta a sábado, às 20h, e, aos domingos, às 18h
Atenção: no dia 27 de outubro não haverá espetáculo e, no dia 8 de novembro, haverá uma sessão às 15h e outra às 20h
Local: Sesc 14 Bis – Rua Dr. Plínio Barreto, 285, Bela Vista – São Paulo
Ingresso: R$60 (inteira), R$30 (meia-entrada) e 18 (credencial plena) | Ingressos disponíveis nas bilheterias das unidades do Sesc São Paulo, pelo aplicativo Credencial Sesc ou pelo site

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A máquina de fazer festas e… tiranos
Crítica do espetáculo Édipo REC

Jocasta (Nash Laila) coroa o DJ Édipo (Giordano Castro).Foto Camila Macedo / Divulgação

DESEJO DE SABER: Dançar até os pés ficarem inchados

Pompeia, SP, 28 de setembro de 2024. Dia seguinte à estreia do espetáculo Édipo REC, do Grupo Magiluth, do Recife

O desejo de poder é uma das forças motrizes das ações de Édipo, my love. Tem também o amor… um belo exercício de poder.

E a vida é decepcionante???

Mas será que somos gregas? A democracia foi forjada lá? E o teatro nasceu na Grécia? Gaguinho, personagem da atriz Odília Nunes em A Guará Vermelha, da Cia. do Tijolo, também contestou essa tese. O Corifeu de Édipo REC, na ressaca anos após a festa,  pondera que “já se fazia muito teatro em muitos lugares, nas mais variadas línguas, espalhados num território gigante e plural hoje singularizado na palavra África”.

Mas antes tem “a” festa e ela dura horas, muitas; anos, séculos. E como nos alimentamos desses estímulos de som, do banal ao mais potente, energia pura e outras pujanças de uma luz mágica de Jathyles Miranda que maneja as emoções, dessas que estão à flor da pele, mas busca o tutano.

Fazemos pose, se dói em algum ponto do corpo ninguém vai ver, até a queda final.

A música e o DJ, que será rei, as pequenas invejas e as grandes traições ocupam os espaços, se deslocam, traçam coreografias.

Na festa tão contagiante com suas drags provocadoras, adivinhadoras, somos levadas por tantas sensações e ambientes do poder macro ao micropoder. Do país Brasil, ao universo das nossas bolhas de tantas performances e multiplicações de imagens.

Mas afinal, do que você está falando?

De mim, bebê, pois cada uma fala de si e tenta valer sua narrativa, mesmo quando disfarça com os escudos da teoria.

Mário Sergio, no papel de Creonte, que ambiciosa ser o poderoso chefão. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Do fim da peça Édipo REC passando pelo  drink no templo da Pina Bo, das negociações da galera no Pompeu às tarefas prosaicas de limpar casa, preparar comida, e tentar elaborar algum pensamento sobre o 15º campeonato do Magiluth foram muitos tempos intercalados…. em apenas um dia.

Nem sabemos exatamente como chegamos naquele baile tão cheio de nuances, que o dono da sina só chega muitas poses depois.

Seguimos o Coro drag Erivaldo Oliveira e suas inflexões debochadas, seu modelito brilhante e botas de plataformas enormes.

Ainda na convivência, o clima se instala. Munido com sua máquina de captar imagens, Bruno Parmera de barba e boné (quase um disfarce) se projeta em Corifeu multiplicado por muitos clicks.

Creonte se apresenta ambíguo, quem é ele ?

Caímos na festa – o palco do Sesc Pompeia – com suas arquibancadas vazias e seu dancing lotado de espectadores/colaboradores que seguem o fluxo de Parmera, de Mário, de Erivaldo.

E são muitos climas de festa… a chegada de Pedro-Tirésias, num figurino deslumbrante, a dizer alguma verdade e celebrar outros teatros zecelsianos e muitos níveis de influências. A presença do Pedro Wagner traz uma liga, uma segurança, uma propriedade na cena; que o audiovisual permita que ele esteja muitas vezes no teatro. 

A atriz Nash Laila (Jocasta) na estreia, ao lado da diretora Cibele Forjaz. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Nash Laila como Jocasta. Foto: Camila Macedo/Divulgação

Eu danço, tu danças, ela dança, nós dançamos, el_s dançam. E chega o “dono” da festa, o DJ Édipo (Giordano Castro), que conquistou sua Jocasta (Nash Laila) e apaziguou um país. Pelo menos por um tempo…

E que coisa mais linda a presença da atriz Nash Laila. Que coisa boa o Magiluth acolher uma intérprete depois de tantos anos sem a presença feminina no palco. Pareceu-me que o jogo ficou mais… delicioso. O que pode a atuação de uma mulher num elenco masculino? Muchas cosas, cariño. Inventa outras humanidades.

Enquanto dançamos, a máquina de fabricar “estados de felicidade” (que remete à peça Dinamarca) faz seu papel de explorar e questionar as imagens na sociedade contemporânea. A festança esconde, mas não anula com sua tecnologia, esse “clube” em crise existencial, aprisionado em ciclos de consumo, excessos que levam à sensação de vazio.

O jogo cênico com imagens gravadas e em tempo real promovem uma realidade nuançada e desafios interpretativos para quem observa ou se posiciona no palco. Muitas chaves são lançadas para quem busca significados. As ferramentas estão no ar.

 E como já pode ser considerado pré-histórico o costume de fotografar e partilhar vivências íntimas em álbuns de família discretamente… A narrativa visual da era digital é uma guerra extenuante e incessante de exposições públicas, cada qual “palestrando” sua saga no vasto anfiteatro digital da contemporaneidade.

O primeiro jorro / A primeira golfada, poucas horas depois da festa-peste saiu assim… Mas sem conectividade e com as memórias cheias dos meus equipamentos, o texto ficou grudado nas barreiras de saída…

Pedro Wagner- Tirésias em primeiro plano. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Desejo de saber: Pestes, enigmas, sinas.

SP, alguns dias após a estreia de Édipo REC

Traduzida como Édipo Rei em algumas versões (Mário da Gama Kury, Lilian Amadei Sais, Trajano Vieira e outros), e intitulada Édipo Tirano na edição publicada pela Todavia em 2017 (com tradução e comentários de Leonardo Antunes), a peça entrelaça incesto e patricídio. Esta, que é uma das mais renomadas tragédias gregas, foi escrita por Sófocles por volta de 429 a.C. e tem sido revisitada e recriada por artistas de diferentes épocas.

A obra explora a jornada de Édipo, rei de Tebas, em sua busca pela verdadeira identidade e pela solução do assassinato do antigo rei, Laio. A trama desvela gradualmente o terrível destino do protagonista, que, sem saber, matou seu pai e se casou com a própria mãe, cumprindo uma antiga profecia.

No artigo Édipo: a encruzilhada fatal, a psicanalista Maria Homem aponta que o texto dramatúrgico de Sófocles pode ser considerado o primeiro grande thriller ocidental, com várias reviravoltas, girando em torno de um crime central. “Quem matou Laio? Fio condutor do suspense. A essa camada se superpõe uma história de investigação de si mesmo, um processo – trágico – de desvelamento de si. O detalhe é que desde o início somos advertidos pelo cego que mais vê, Tirésias, de que o saber pode ser perigoso… [1]”

Édipo e Jocasta em sua festa. Foto: Camila Macedo/Divulgação

Édipo REC, a 15ª montagem do grupo Magiluth reinterpreta a tragédia de Sófocles da perspectiva contemporânea e podemos pensar nos conceitos desenvolvidos por Jean Baudrillard, de que vivemos em um mundo de simulacros – cópias sem originais – onde a distinção entre realidade e representação se tornou borrada. Neste contexto, a “hiper-realidade” substitui a realidade “autêntica”, e os signos e símbolos se tornam mais reais do que aquilo que supostamente representam. Os indícios que nos guiam por esse caminho revelam-se na encenação, que enfatiza os processos de produção na tecnologia, mídia e cultura da imagem.

O espetáculo está dividido em dois atos: o primeiro é uma celebração exuberante que ecoa o excesso de estímulos visuais da nossa era; o segundo apresenta o desenrolar da tragédia inevitável.

O primeiro, com direito a esquenta-festa na temporada paulistana na área de convivência do Sesc Pompeia, começa enquanto o público aguarda para adentrar no teatro. Alguns personagens – Corifeu (Parmera), Coro (Erivaldo), Creonte (Mário Sérgio) e Mensageiro (Lucas) circulam. Os outros personagens só “aparecem” dentro do teatro.

O Coro-drag, equilibrado em suas plataformas e do alto da escada convoca: “Sejamos carnaval. Sejamos essa alegria devastadora embriagada…” para depois cravar “Vamos fazer dessa noite, a noite mais linda do mundo”, um refrão também da música A Noite Mais Linda Do Mundo (A Felicidade), cantada por Odair José, que já faz um diálogo com outra canção popular inserida em Dinamarca, Quando Chegar o Amanhã, gravada por Leonardo Sullivan.

Neste trabalho comemorativo dos 20 anos de trajetória do Grupo Magiluth, a companhia realiza uma retrospectiva artística, tecendo habilmente elementos e temas de seus espetáculos anteriores na trama de Édipo REC. Esse processo de autorreflexão cênica está carregado de  referências sutis e explícitas a produções passadas. A dramaturgia expande as citações, abrangendo desde a mitologia grega até a cultura brasileira.

Erivaldo, Coro-drag. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Erivaldo, Coro-drag. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Ainda no prólogo, o Coro-drag-Erivaldo, entre batidas de leque e toques de sarcasmo, afirma que ninguém poderá ser considerado feliz antes de ter vivido todos os dias até sua morte. Essa ideia constitui um dos pilares de qualquer versão de Édipo, sintetizando uma de suas reflexões mais profundas.

O Coro pergunta, responde, aconselha: “A vida é decepcionante? É decepcionante! Mas é isso que temos! Então finjam ter outra vida…”

O título Édipo REC reporta-se simultaneamente à cidade do Recife e ao ato de gravação (REC). Esta escolha expõe a combinação do mito clássico de Édipo com elementos contemporâneos da era digital, trazendo para a cena as pesquisas do diretor Luiz Fernando Marques – Lubi sobre as intersecções entre teatro e cinema. A obra esquadrinha o impacto da constante documentação e compartilhamento de nossas vidas nas redes sociais e outros meios digitais sobre nossa percepção da realidade e identidade.

Marques, em conjunto com o dramaturgo Giordano Castro e o elenco, desenvolve procedimentos cênicos que desafiam as convenções temporais e espaciais, criando um jogo complexo entre o passado mítico e o presente urbano. A não-linearidade cronológica da montagem aciona um dispositivo questionador da própria natureza do tempo no teatro e na vida.

A festa com o público no palco. Camila Macedo / Divulgação

O cenário transforma o palco em um ambiente frenético de celebração: luzes, fumaça, telões com projeção e música alta, envolvendo a plateia em uma experiência sensorial imersiva. Durante esse momento de “descontração”, muitas pequenas situações são expostas como o chamado para  dançar até os pés ficarem inchados, numa evocação ao nome Édipo ou quando o Coro faz menção a Édipo como elucidador de mistérios, homenageando a figura de Chico Science ao apontar que ele é aquele que fincou uma antena em meio às esculturas de lama e decifrou os enigmas.

A encenação de Édipo REC abraça e explora a noção de simulacro de maneira envolvente. A transformação do palco em uma boate com DJ e interação direta com o público cria uma hiper-realidade que engole tanto atores quanto espectadores. Esta reinterpretação encampa o poder avassalador da mídia e da cultura pop na formação das identidades. 

O uso de tecnologia audiovisual, com câmeras filmando e projetando cenas ao vivo, adiciona uma camada extra. Acompanhamos simultaneamente ao “real” e sua representação mediada. Esta dinâmica se estende à representação de Tebas como um “Recife-Pompéia fantasmagórico”, evocando uma ilusão de comunidade efêmera.

Em meio a esse fluxo, Édipo é coroado. Como diz um personagem: “Ele que é o próprio LSD – Luz, Som e Desejo!”

O jogo é intenso entre o elenco formado por Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner, com a participação da atriz Nash Laila. Os personagens Corifeu, Coro, Édipo, Mensageiro, Tirésias, Creonte e Jocasta coexistem com figuras e dilemas contemporâneos.

O Corifeu convida o público a sair do teatro, sob o pretexto de que precisa filmar tudo novamente. Nesse segundo ato, enfrentamos a tragédia em sua essência. Tirésias, o sábio cego, reitera uma das frases mais lúcidas, belas e devastadoras da dramaturgia de todos os tempos: Nunca digas que uma pessoa foi feliz sem que tenha vivido o último dia de sua vida.

Vinte anos se passaram desde aquela grande festa, das juras de amor e da coroação de Édipo. O clima predominante é diametralmente oposto ao do primeiro ato. A peste se alastrou pela cidade, imperando o medo e a desconfiança. Tudo está à beira do abismo.

Essa tragédia festivo-pestilenta convoca para o teatro temas políticos e morais da nossa era. Questões éticas e suas consequências são abordadas, como o célebre episódio do fotógrafo que registrou a imagem de uma criança esquelética espreitada por um abutre. [2]

Parmera, o Corifeu, que capta as imagens. Foto: Camila Macedo / Divulgação

O Corifeu propondo a dancinha juntos na festa. Foto: Camila Macedo / Divulgação

As interrupções constantes do Corifeu (“Corta!”) e as mudanças abruptas de cena enfatizam a artificialidade da narrativa, tensionando qualquer noção de realidade coerente e unificada. 

A intensa interatividade e o uso extensivo de tecnologia podem, por vezes, obscurecer a fluidez e as questões filosóficas fundamentais da tragédia original. Há momentos em que o espetáculo corre o risco de priorizar o secundário. Já a apropriação da violência e do trauma levanta questões éticas sobre a estetização da barbárie no teatro. Um aspecto com muita possibilidade de discussão.

Embora por vezes corra o risco de se perder em seus  próprios labirintos, Édipo REC é um espetáculo tão provocador quanto potente em suas interpretações plurais e singulares. É a montagem que celebra os 20 anos do Grupo Magiluth, prosseguindo um trabalho de pesquisa importante de uma companhia que tem a coragem criativa para não deixar os clássicos intocáveis e mete a mão nessas obras para buscar a pulsação dos tempos atuais.

Lembrei de um espetáculo que assisti no Festival de Avignon, França, em 2023, que, embora não dialogue diretamente em temática com o trabalho do Magiluth, apresenta aproximações interessantes em dois aspectos: a celebração festiva e o uso inovador de recursos de projeção de imagem.

Extinction, dirigido por Julien Gosselin, apresenta-se como uma produção ambiciosa de cinco horas que desafia as convenções teatrais tradicionais. A peça inicia com um concerto de techno de uma hora, durante o qual cerveja flui gratuitamente e o público recebe convites para dançar.

Há uma radicalidade no uso de tecnologia visual em Extinction. Uma tela gigante exibe imagens em preto e branco, pontuando momentos de intensidade dramática. A transição para a representação principal é marcada por uma mudança na técnica de apresentação: os atores são vistos em parte na presença teatral e em imagens filmadas ao vivo e projetadas em preto e branco, com cinegrafistas invisíveis ao público. Baseado em textos de Thomas Bernhard, Arthur Schnitzler e Hugo von Hofmannsthal, o espetáculo explora temas complexos da sociedade vienense e suas reverberações. 

A alegria do primeiro ato. Foto: Camila Macedo/Divulgação.

A sisudez do segundo ato, quando Tirésias passa a real para Édipo. Foto: Camila Macedo / Divulgação

A dramaturgia de Giordano Castro e a cena de Lubi são ricas em intertextualidade, incorporando referências de filmes como Édipo Rex de Pasolini, Funeral das Rosas, de Matsumoto; Hiroshima, mon amour, de Alain  Resnais com roteiro da poeta Marguerite Duras. Além de filmagens num Recife soturno e desolado. Essas imagens, juntamente com outras, oferecem insights para significações e camadas que podem amplificar a recepção.

Há muito o que desenvolver sobre o diálogo entre o teatro e o cinema elaborado na montagem, especialmente a partir da questão lógica espectral e fantasmática dos que retornam da memória de outros tempos, bem como da sensação de solidão em meio a essa comunidade efêmera. No entanto, no momento, sinto-me exaurida. Registro apenas o desejo de retornar a esses assuntos e revisitar Édipo REC por outra perspectiva. Talvez depois de assistir ao espetáculo uma segunda vez, quem sabe.

O Édipo de Castro é arrogante, tirânico, que ostenta sua a húbris [3]; charmoso como alguns déspotas e meio infantil; reconhece por um lado seus traumas, mas ainda quer fazer valer o seu poder através de palavras e gestos, parecendo não entender que as “massas” abandonam os derrotados.

Por enquanto, encerro por aqui constatando que em Édipo REC o corpo assume a cidade numa pulsação alucinante. Levar a peça para a festa consagra o poder de ruptura com o tempo cotidiano, enquanto manifestação minúscula do encontro trágico na Antiguidade. E mesmo que não haja aqui o “incêndio das consciências”, na expressão de Roland Barthes, Édipo prossegue sendo o próprio enigma.

O Mensageiro (Lucas Torres), o amigo de Laio que testemunhou o assassinato. Foto: Camila Macedo / Divulgação

NOTAS

[1] HOMEM, Maria. Édipo: a encruzilhada fatal. In: SÓFOCLES. Édipo Tirano. São Paulo: Editora Todavia, 2017. E-book
[2] A fotografia “O abutre e a menina”, tirada por Kevin Carter em 1993 no Sudão, durante uma grave crise humanitária causada pela guerra civil, tornou-se um ícone do fotojornalismo e desencadeou um intenso debate ético. Carter acompanhava uma missão da ONU quando capturou a imagem de uma criança desnutrida com um abutre ao fundo. A foto, publicada no New York Times, ganhou o Prêmio Pulitzer em 1994, mas também gerou controvérsia sobre a ação do fotógrafo em não ajudar a criança. Carter enfrentou depressão devido às críticas e ao trauma de suas experiências, culminando em seu suicídio em 1994. Anos depois, descobriu-se que a criança era um menino chamado Kong Nyong, que sobreviveu à fome, mas faleceu adulto em 2006 devido a uma febre.
[3 A húbris ou hybris (em grego ὕβρις, “hýbris”) é um conceito grego que pode ser traduzido como “tudo que passa da medida; descomedimento” e que atualmente alude a uma confiança excessiva, um orgulho exagerado, presunçãoarrogância ou insolência (originalmente contra os deuses)… https://pt.wikipedia.org/wiki/H%C3%BAbris
 Na tragédia grega clássica, húbris era frequentemente uma deficiência fatal que causava a queda do herói trágico. Normalmente, o excesso de confiança levava o herói a tentar ultrapassar os limites das limitações humanas e assumir um status divino, e os deuses inevitavelmente humilhavam o ofensor com um lembrete agudo de sua mortalidade. https://www.merriam-webster.com/dictionary/hubris

Serviço:
Édipo REC
Quando: Até 26/10. Quinta a sábado, 20h. Domingos, 17h. Dia 12/10, sábado, 17h. Dia 23/10, quartas, 20h
Quanto: R$ 60 (inteira), R$ 30 (meia-entrada), R$ 18 (credencial plena)
Onde: Sesc Pompeia – Rua Clélia, 93, Pompeia, São Paulo, SP
Duração: 105 minutos
Classificação etária: 18 anos

Ficha técnica:
Criação: Grupo Magiluth, Nash Laila e Luiz Fernando Marques
Direção: Luiz Fernando Marques
Dramaturgia: Giordano Castro
Elenco: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral, Nash Laila e Pedro Wagner
Design de Luz: Jathyles Miranda
Design Gráfico: Mochila Produções
Figurino: Chris Garrido
Trilha sonora: Grupo Magiluth, Nash Laila e Luiz Fernando Marques
Cenografia e montagem de vídeo: Luiz Fernando Marques
Cenotécnico: Renato Simões
Vídeo Mapping e Operação: Clara Caramez
Captação de imagens: Bruno Parmera, Pedro Escobar e Vitor Pessoa
Equipe de Produção de vídeos: Diana Cardona Guillén, Leonardo Lopes, Maria Pepe e Vitor Pessoa
Produção: Grupo Magiluth e Corpo Rastreado

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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Macbeth mexicano
Crítica do espetáculo Mendoza

Plateia participa na cena dos fantasmas. Foto: Cultura UDG / Divulgação

Rosario e Mendoza. Foto: Fernanda Luz / Divulgação

Mendoza, peça do grupo mexicano Los Colochos Teatro, é uma adaptação ousada de Macbeth de William Shakespeare, transposta para o contexto da Revolução Mexicana. Dirigida por Juan Carrillo, com dramaturgia de Antonio Zúñiga e Carrilo, a obra integrou a programação do 7º MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, após uma década de sucesso em temporadas e festivais internacionais. Estreada em 2014, Mendoza faz parte de uma pentalogia shakespeariana desenvolvida pelos Los Colochos, que inclui adaptações de Romeu e Julieta, Otelo, Rei Lear e Tito Andrônico

O grande trunfo dessa montagem é a intimidade criada com o público, que fica sentado ao redor do palco em quatro bancadas. A disposição cênica e o jogo dos atores permitem que a plateia se sinta testemunha ou até parte da história, com momentos de interação direta, como segurar utensílios ou usar máscaras para encarnar fantasmas.

Assim como Macbeth, José Mendoza, inicialmente um leal escudeiro do Comandante Montaño (análogo ao Rei Duncan), encontra-se com uma santera enigmática, que incorpora as três bruxas originais. Nessa reimaginação, Lady Macbeth reencarna em Rosario Mendoza, Banquo transforma-se em Aguirre, e Macduff assume a identidade de García.

O espetáculo seduz pelo impacto visual e pela força interpretativa do elenco. O cenário minimalista, composto por mesas e cadeiras desmontáveis com logotipo da cerveja Corona e outros artefatos, é utilizado criativamente para criar diversos ambientes.

Marco Vidal interpreta Mendoza com energia e vigor; Mónica del Carmen, por sua vez, brilha nos papéis de Rosario e da santera. O elenco, formado por Erandeni Durán, Leonardo Zamudio, Martín Becerra, Germán Villarreal, Ulises Martínez, Alfredo Monsivais, Roam León e Yadira Pérez, demonstra uma sinergia extraordinária, com cada intérprete complementando o trabalho do outro de forma estratégica. Suas interpretações são marcadas por uma grande entrega emocional.

A peça é permeada por uma energia masculina intensa, com violência e brutalidade palpáveis em cada cena. A ação física é manifestada através de movimentos bruscos e confrontos intensos, coreografados com precisão. A proximidade do público amplifica essa experiência, permitindo que os espectadores vejam de perto o suor, o esforço e a dor nos rostos dos atores.

Mesas e cadeiras desmontáveis com logotipo de cerveja compõem o cenário. Foto: Fernanda Luz / Divulgação

Ao analisar a peça sob uma perspectiva feminista, emergem problematizações sobre a representação de gênero, poder e violência.

Duas cenas específicas chamaram minha atenção por sua aparente demonstração de machismo, desnecessário e equivocado no contexto. A primeira ocorre quando Rosario insiste na trama da ambição, e Mendoza, perdendo a paciência, desafivela o cinto e ameaça agredi-la. Embora não concretize o ato, o gesto em si é bastante perturbador. A segunda, que se segue imediatamente, mostra Rosario abraçando Mendoza para acalmá-lo após o ápice da tensão, uma ação que parece normalizar o comportamento agressivo anterior.

Penso na Lady Macbeth, uma figura emblemática do século 16, que encapsula as tensões e contradições da sociedade elisabetana, projetando as complexidades do reinado de Elizabeth I. Elizabeth, uma monarca poderosa em uma sociedade patriarcal, adotou a imagem de “Rainha Virgem” e se declarou “casada com a nação”, utilizando retórica masculina em seus discursos públicos para afirmar sua autoridade. Esse paradoxo ressoava em uma era onde as normas de gênero eram rígidas e as mulheres geralmente subordinadas aos homens. Lady Macbeth, com sua ambição desmedida e manipulação astuta, desafia essas expectativas femininas. Através dela, Shakespeare oferece uma crítica às limitações impostas às mulheres, analisando indiretamente o reinado de Elizabeth I. Assim, Lady Macbeth materializa as contradições de seu tempo, explorando as nuances do poder feminino e as consequências de desafiar as expectativas sociais.

Então, não reclamo que a personagem de Lady Macbeth/Rosario em Mendoza não esteja atualizada à altura das demandas do século 21. No entanto, é importante notar que houve mudanças consideráveis na representação do feminino no teatro e nas artes em geral nos últimos dez anos. Desde a estreia da peça em 2014, testemunhamos mudanças significativas, entre outras coisas, uma perspectiva mais crítica dos estereótipos de gênero. Essas transformações traduzem movimentos sociais importantes e uma crescente conscientização sobre questões de gênero nas artes vivas. Embora Mendoza não incorpore essas tendências mais recentes, sua interpretação pode ser compreendida dentro do contexto histórico que retrata e do momento em que foi criada.

Mónica del Carmen no papel da santera. Foto: Fernanda Luz / Divulgação

Yadira Pérez e Mónica del Carmen (deitada). Foto: Fernanda Luz / Divulgação

Há, pelo menos, dois momentos que apontam para a perenidade da violência na manutenção do poder: uma referência ao desaparecimento dos 43 estudantes no México em 2013, e a celebração final que tematiza a história oficial com ironia.

O desfecho apresenta uma variação culturalmente relevante: García (Macduff) opta por um método institucionalizado de justiça, ordenando a execução de Mendoza por fuzilamento. A cena final se transforma em uma celebração vibrante, com os personagens sobreviventes entoando uma ranchera ao redor da mesa de Corona. O elenco distribui cervejas ao público. Mas me vem uma inquietação: o que exatamente estamos comemorando? Sabemos? Essa celebração parece refletir as complexas dinâmicas de poder e as trocas de mãos na liderança, um aspecto preocupante nas estratégias de manipulação de massas.

 

 

A jornalista Ivana Moura viajou a convite do Sesc São Paulo

 

 

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Fragmentos da solidão gay
Crítica de Bicha Oca

Rodolfo Lima, como Alceu, em Bicha Oca, Foto: Ivana Moura

A dramaturgia reúne textos de Marcelino Freire

Só conheci a Bicha Oca 15 anos após sua estreia, no Espaço Extranho, situado na rua Barbara Heliodora, na Lapa, São Paulo. Minha curiosidade foi aguçada pela reputação da peça, que  tem como base os textos de Marcelino Freire. Considerando o longo percurso da peça, questionei-me sobre sua relevância em 2024. Afinal, o cenário LGBTQIA+ passou por diversos avanços (e reposicionamentos) desde a estreia do espetáculo. Será que Bicha Oca ainda teria algo a dizer ao público contemporâneo?

A resposta é sim. Bicha Oca mantém sua relevância, trabalhando com franqueza temas cruciais: a dignidade da população LGBTQIA+ idosa e os direitos humanos de indivíduos  em situação de vulnerabilidade econômica. A peça destaca que, mesmo com avanços sociais, a luta por igualdade e respeito continua. Isso é especialmente válido para aqueles que enfrentam uma tríplice vulnerabilidade: idade avançada, orientação sexual divergente da heteronormatividade e situação econômica precária. Em uma sociedade impregnada de preconceitos, Bicha Oca atua como lembrete das batalhas que ainda precisam ser travadas pela comunidade LGBTQIA+.

Criada pelo Núcleo Teatro do Indivíduo e dirigida por Rodolfo Lima, a peça adapta contos homoeróticos de Marcelino Freire, tecendo um relato que explora o universo arredio, impiedoso e aterrorizante da velhice gay. No centro desta trama está Seu Alceu, um homossexual de comportamento arcaico, que revisita seu passado, expondo as crueldades e isolamentos de sua existência.

A adaptação está calcada nos contos A volta da Carmen Miranda, Coração, Meus amigos Coloridos e Os Atores, além do micro conto inédito Seu Alceu. Esta colagem literária reverbera os práticas dos homossexuais, expondo mudanças entre passado e presente.

Alceu emerge como uma figura peculiar e o ator explora com seu físico – calvície incipiente e pelagem esparsa adornando seu torso e abdômen – e gestos as marcas do tempo e das decepções. Sua presença na cena é marcada por um olhar crítico e desencantado sobre a sociedade que o circunda, encarnando a melancolia e a decadência. Sua solidão é amplificada pela ausência deliberada de qualquer trilha sonora reconfortante.

O protagonista cita hábitos da comunidade gay, explorando cenários emblemáticos das rotinas dos encontros furtivos na Praça da República, das interações veladas em salas de cinema e dos contatos efêmeros nos transportes públicos. O conceito da “bicha oca” é personificado de maneira complexa: uma entidade simultaneamente extravagante, cômica e profundamente melancólica.

Como uma ilha de anacronismo, Alceu sustenta o descompasso com o hoje e apresenta um discurso deslocado em uma época onde a comunidade LGBTQ+ conquistou visibilidade e direitos. Sua inadaptação aos novos paradigmas sociais pulsa no confinamento em sua própria casa, que reflete sua alienação do mundo exterior.

Rafael Rudolf, de costas, representa o corpo jovem e desejável. Foto: Ivana Moura

Ao longo de seus 15 anos de trajetória, a peça passou por diversas interações, com Rodolfo Lima trabalhando com vários atores jovens e incorporando suas contribuições à versão final. A atual parceria com Rafael Rudolf traz um teor mais afetivo à produção, explorando a dinâmica complexa entre um corpo jovem e uma “bicha velha”.

A entrada de Rafael – e dos outros atores nas temporadas anteriores – marca um ponto de inflexão crucial no espetáculo. Até então, Alceu havia exposto exaustivamente sua solidão, a nostalgia pelos tempos de juventude e suas críticas mordazes ao comportamento contemporâneo da comunidade gay. Sua miséria existencial e material havia sido esmiuçada a ponto de quase esgotar a paciência do espectador. Neste momento crucial, o jovem Rafael surge como uma aparição quase etérea – uma projeção do desejo de Alceu ou talvez a materialização de um sonho há muito acalentado. Sua presença catalisa uma transformação na narrativa, introduzindo novas camadas à trama.

O relacionamento entre Alceu e Rafael é permeado por contradições que espelham questões profundas do universo LGBTQIA+. Oscila entre momentos de ternura genuína e dinâmicas claramente tóxicas, oferecendo um retrato nuançado das complexidades das relações intergeracionais na comunidade gay. Esse entrosamento poliédrico serve como um microcosmo, refletindo e amplificando diversas questões pertinentes ao mundo LGBTQIA+: o culto à juventude e a marginalização dos mais velhos, a dinâmica de poder em relacionamentos com grande diferença etária, o conflito entre diferentes gerações e suas visões de mundo, e a busca por conexão emocional em um ambiente muitas vezes hostil. Através deste relacionamento contraditório e caleidoscópico, o espetáculo consegue levantar, de forma sutil e impactante, uma miríade de temas relevantes, proporcionando uma reflexão profunda sobre as complexidades e desafios enfrentados pela comunidade LGBTQIA+ em diferentes fases da vida.

Bicha Oca chega ao Recife para apresentações na Escola Pernambucana de Circo nos dias 3 e 4 de outubro, às 20h, em um espaço com capacidade para 80 pessoas. Já no Espaço Cênicas, as apresentações serão nos dias 6 e 7 de outubro, às 18h e 20h, respectivamente, com ingressos a R$50 (inteira) e R$25 (meia), para um público de até 60 pessoas.

Nesses 15 anos de trajetória, Rodolfo Lima já trabalhou com 10 atores jovens. Foto: Ivana Moura

O final dessa versão com Rafael Rudolf tem uma conotação mais afetivas. 

O espetáculo navega por temas como a volatilidade dos relacionamentos, a busca incessante por conexão, o espectro do envelhecimento e as nuances menos glamourosas da experiência homossexual. “Pegação”, encontros casuais, práticas sexuais específicas e a realidade de um corpo em declínio são expostos sem filtros, expondo verdades incômodas, mas necessárias.

Esta produção teatral encara o desconforto, abraça-o, apresentando as mazelas da comunidade gay com coragem. A dramaturgia ousada flerta com o ridículo, com o grotesco.

Em essência, Bicha Oca é um exercício de desconstrução e reconstrução. Desafia percepções, quebra tabus e tece uma narrativa que ressoa profundamente com as experiências vividas e imaginadas da comunidade LGBTQ+. Reflete as camadas mais profundas e por vezes dolorosas da existência gay contemporânea, oferecendo uma experiência teatral que permanece impactante.

Ficha técnica
Bicha Oca a partir do originais de Marcelino Freire
Direção e adaptação: Rodolfo Lima
Elenco: Rafael Rudolf e Rodolfo Lima
Concepção Geral: Núcleo Teatro do Indivíduo
60 minutos
18 anos
Produção local: Rodrigo Dourado
Design Gráfico: Betinho Neto
@teatrodoindividuo

SERVIÇO

Bicha Oca no Recife
Escola Pernambucana de Circo (Avenida José Américo de Almeida, 05 – Macaxeira – Recife)
Quando: 03 e 04 de outubro de 2024, às 20h (ambos os dias)
Ingressos: R$30 (inteira) e R$15 (meia)
Capacidade: 80 pessoas
@escolapecirco
Link para compra antecipada:
03/10: https://www.sympla.com.br/evento/bicha-oca-03-10/2633756
04/10: https://www.sympla.com.br/evento/bicha-oca-04-10/2633785

Espaço Cênicas Rua Vigário Tenório 199 Edf. Álvaro Silva Oliveira 2º andar 201 – Recife Antigo)
Quando: 06 de outubro: 18h e 07 de outubro: 20h
Ingressos: R$50 (inteira) e R$25 (meia)
Capacidade: 60 pessoas
@espacocenicas Link para compra antecipada:
06/10: https://www.sympla.com.br/evento/bicha-oca-06-10/2633760
07/10: https://www.sympla.com.br/evento/bicha-oca-07-10/2633801

 

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