Os personagens do espetáculo Amar é Crime não “andam sobre cadáveres sem nada sentir”, como os criminosos de Kurt Schneider, psiquiatra alemão. As figuras saídas das narrativas de Marcelino Freire e levadas ao palco por Isabelle Barros ardem e reagem às flechas envenenadas enviadas pelo mundo cruel ou por um objeto de amor (mesmo que imaginário). Desprezados ou feridos, eles chegam a um limite humano tolerável para dar o troco. São gritos desesperados de afirmação.
A encenação de Isabelle é despojada. Três atores, bancos, lanternas, e a doação desses intérpretes que materializam as palavras de Freire em expressividade e movimentos, em quatro cenas da peça. São personagens oprimidos. O amor (esse do desejo contemporâneo que é sinônimo de felicidade) aparece como objeto de luxo para os que vivem num universo que lhes nega direitos básicos de alimentação, saúde, transporte, educação. É uma bomba prestes a explodir.
Quatro contos do livro homônimo de Marcelino Freire, lançado pelo autor em 2011, são adaptados para o palco pelo coletivo AMARÉ Grupo de Teatro, criado em 2014 por ex-alunos do Curso de Interpretação para Teatro do Sesc Santo Amaro. Além de Isabelle Barros, a trupe é formada por Natali Assunção e Marcos Medeiros. A atriz Micheli Arantes participa como convidada neste trabalho.
O elenco atua como atores-narradores das cenas escolhidas pelo grupo: Acompanhante, Crime, Mariângela e Vestido longo.
São vultos invisíveis que sob o domínio de pathos ganham um protagonismo temporário. As situações dessa notoriedade são cercadas por elementos cruéis.
Uma saudade, uma fantasia que ficaram na memória afetiva do velho caquético escorrem como opressão em direção à cuidadora, que recebe as ordens humilhantes de uma parente do idoso no quadro Acompanhante. A dignidade cingida da funcionária já feriu o ancião na sua incapacidade de cuidar de si mesmo e precisar de uma estranha para resolver questões íntimas de limpeza e alimentação. Ele tem espasmos em que seca de vontade e a desconhecida escuta as determinações, da outra da família, que beiram o assédio.
“Hoje minha namorada vai me dar valor”, anuncia o protagonista do episódio Crime. Os atores se revezam no papel para criar nunces do desespero do personagem na voz e no corpo, na projeção de revolta contra o mundo. Ao ser golpeado na sua autoestima, um jovem (negro, pobre, periférico) planeja sequestrar e punir a namorada por uma suposta traição. E detalha os passos do ato transitando entre sua dor particular e as contingências da indiferença social para quem vive na base, com a negação do básico. Ele quer ferir o objeto do seu amor e se transformar numa celebridade instantânea sem importância; daquelas que alimentam os programas policialescos, as chamadas sensacionalistas na televisão, a curiosidade mórbida da sociedade. As consequências são imprevisíveis.
“Quem disse que uma gorda não pode voar?”, pergunta a garota obesa em Mariângela. Ela sofre humilhações impostas pela própria mãe, criatura convencionada pelo senso comum como fonte de amor irrestrito. A menina é sugada por um buraco e fica presa no meio da rua, entalada no solo. Os atores narram sua história antes do ocorrido ressaltando o comportamento desmedido como necessidade de sobreviver e se vingar de alguém que negou e interditou o amor.
Uma vida inteira de privação parece traçar o destino da mulher de Vestido Longo, que cresceu sem ter o que comer, muito menos o que vestir. Nos grotões da fome foi apartada da mãe pela morte e encurralada pelo desejo masculino em troca de um tostão ou de um cascudo. Encontra no consumo da peça de roupa cara a compensação para um passado de abusos e carências. É ela quem reflete: “A miséria no Brasil, puta que pariu, é pornográfica”.
Isabelle equaliza para baixo a escala da fúria desses seres. As palavras já são sangrentas, cortantes. As frases queimam, mas a encenadora não apela para o transe. As situações-limite expõem gestos desenfreados; explosões no próprio texto. E a encenadora não tenta se sobrepor ao verbo. Ao não exacerbar o gesto, Barros chama esses dramas profundos para a vizinhança, para a proximidade.
Esses quadros arranham a vida em sua perspectiva mais profunda, ou seja, pathetica. No limite, vulneráveis, sem segurança alguma, essas criaturas parecem dominados pelo pathos grego submetido à discursividade. Mas também afasta-se desse conceito originário de pathos ao se enredar na ideia de passividade, afecção, sofrimento. Mas é também louvável que a encenação não tenha se quedado totalmente ao sentido principal de pathos na atualidade como doença, mal-estar ou anormalidade.
A paixão amorosa em seu sentido mais corriqueiro, sensual se manifesta mais no conto Crime, ao mostrar como a exacerbação pode conduzir a uma fatalidade.
Mas o pathos de Amar é Crime se apresenta em sentido mais amplo, como essência das leis que movem o humano. A intensidade da paixão nos quadros do espetáculo carrega potências que regem a vida do espírito, com suas diferentes durações.
Os atores são jovens e expressam suas possibilidades de criar a partir da bagagem vivenciada. Eles têm um frescor dos que ainda não conhecem o fundo do poço. Mas têm brilho que tende a aumentar. Há uma sutileza na direção, que remete para outro lugar da violência.
Saúdo com alegria a chegada de Isabelle Barros, essa jovem diretora de teatro e o AMARÉ Grupo de Teatro, com seus novatos que transbordam de afeto pelo palco. Isabelle vem com um olhar sensível sobre as dores do mundo, que não se perde em estranhamentos e exageros de só aproximar o pathos da doença. De alguém que trilha a complexidade a partir das frases e intenções roubadas do cotidiano de Marcelino Freire.
SERVIÇO
Amar é Crime
Adaptação teatral do livro homônimo de Marcelino Freire.
Quando: 23, 24, 30 e 31 de julho, às 19h (Ingressos a partir das 18h)
Onde: Espaço Cênicas – Rua Marquês de Olinda, 199. Bairro do Recife (Entrada pela Rua Vigário Tenório).
Quanto: R$ 20 (inteira)/ R$ 10 (meia)
Informações: 81 9 7914 4306
Classificação indicativa: 14 anos
Capacidade do espaço: 60 lugares
Informações: 97914-4306
Promoção – https://www.eventick.com.br/amarecrime
FICHA TÉCNICA
Encenação: Isabelle Barros
Texto: Marcelino Freire com adaptação de Natali Assunção
Elenco: Marcos Medeiros, Micheli Arantes e Natali Assunção
Iluminação: Marcos Medeiros
Figurino e cenografia: Micheli Arantes
Direção musical: Kleber Santana e Isabelle Barros
Produção: AMARÉ Grupo de Teatro