“A minha alma tá armada
E apontada para cara do sossego
Pois paz sem voz, paz sem voz
Não é paz, é medo”
A arte tem mesmo muitos poderes. Desde sempre. De fazer pensar, rir, chorar, ruborizar…Mas aquela que mais dói, quase corta, é a que nos tira da zona habitual de conforto – seja em relação aos procedimentos estéticos, mas principalmente no que diz respeito à mensagem da obra de arte. Rasif – Mar que arrebenta me deixou pequenininha. Com um desconfortável prazer que parecia ecoar e reverberar nas paredes de tijolinhos do Teatro Hermilo Borba Filho.
A montagem, assim como Angu de sangue, primeiro espetáculo do repertório do grupo Angu de teatro, é dividida em quadros. Ambas bebem na língua e escrita afiada do pernambucano de Sertânia, radicado em São Paulo, Marcelino Freire. São pequenos contos que não trazem relação direta de personagens entre si, mas passeiam pelos mesmos espectros de significados.
Desde a confusão de uma tribo de índios canibais que fala uma língua específica – só uma mulher entende e traduz – e ameaça uma atriz; à confusão do trânsito; à dor de uma mãe que não quer acordo com a paz, afinal já lhe tiraram o que ela tinha de mais precioso. O próprio nome do espetáculo – Rasif, extraído da origem árabe do nome Recife, já sugere um ambiente urbano, caótico, fragmentado.
Impossível não fazer uma menção especial ao ator Fábio Caio. A sua propriedade em cena, a capacidade de trazer para junto de si o espectador, de criar um mundo imaginário cruel, irônico, cheio de sarcasmo, riso nervoso ou escancarado. Com ele, entramos num ônibus com destino a algum dos Altos do Recife. Ele é uma velhinha que faz tricô para passar o tempo e é abordada por um sujeito. E o discurso se repete algumas vezes – algo do tipo, ‘não quero chiclete, não quero caneta, você está me pedindo dinheiro pra comprar remédio?’. O final, que eu não vou estragar, faz jus ao percurso circular do diálogo.
“Às vezes eu falo com a vida
Às vezes é ela quem diz
qual a paz que eu não quero conservar
prá tentar ser feliz?”
Fábio Caio é também o menino na manjedoura, no caixote de madeira, nas tábuas duras de um barraco em Santo Amaro ou na Favela da Xuxa. Que conta a história de um amiguinho que se desiludiu com o Papai Noel e queria matá-lo de todo jeito. Também…pedir uma motoca com todas as suas luzes e receber uma bola! Ou ver a irmãzinha ganhando uma boneca horrorosa! Não é pra menos!
Se o talento de Fábio me salta aos olhos, não deixo de notar também a qualidade desse coletivo de atores, o Angu de Teatro, como grupo mesmo, que existe há sete anos. Participaram ainda da encenação no último fim de semana Vavá Schön-Paulino, Ivo Barreto, Arilson Lopes, Tatto Medinni, Márcia Cruz e Ceronha Pontes. No comando disso tudo e ainda nos vocais tão afiados e provocativos quanto o texto, o diretor Marcondes Lima.
As cenas se desenrolam num retângulo branco, que também serve como espelho para as projeções de imagens ou palavras. Às margens, pedras pesam sob os textos que compõem a peça. E a imagem da pedra diz muito sobre tudo que se passa ali. É uma pedrinha no sapato – que parece ser inofensiva, mas deixa um calo feio depois de um dia subindo a Conde da Boa Vista a pé.
Similaridades encaixadas – Rasif – Mar que arrebenta é muito mais provocador aos olhos de quem não viu Angu de sangue e vice-versa. Porque a fórmula cênica é mais ou menos a mesma. Os textos impiedosos de Marcelino, assim como sugerem os próprios livros, em contos rápidos, traduzidos pelo Angu de Teatro em cenas rápidas. A mulher que não quer aprender a ler, interpretada por Vavá Schön-Paulino em Rasif, parece aquela mesma feita por Fábio Caio, que não quer sair do lixão da Muribeca em Angu de sangue. Até nos trejeitos, na fala. E aí entram algumas coisas em questão, como fechar mesmo o ciclo “Marceliniano”, inovar ou não em relação ao espetáculo anterior (o grupo tem ainda a montagem Ópera, mas que é baseada em texto de Newton Moreno); e até que ponto não é válido se renovar mesmo apostando num mesmo formato. Não tenho as respostas. Só restam dúvidas e o amargor na boca, mesmo que a risada não se faça de rogada.
“As grades do condomínio são pra trazer proteção
Mas também trazem a dúvida se não é você que está nessa prisão
Me abrace e me dê um beijo,
Faça um filho comigo!
Mas não me deixe sentar na poltrona
No dia de domingo, domingo!
Procurando novas drogas de aluguel
Neste vídeo coagido….
É pela paz que eu não quero seguir admitindo” (Minha Alma/ Marcelo Yuka)
Serviço:
Rasif estreou em 2008 e agora está fazendo uma série de 20 apresentações
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho (Bairro do Recife)
Quando: de quinta a domingo, às 20h
Ingressos: R$ 10 e R$ 5
Belo texto, Polly.
Beijo.
Ivana
ADOREI O ESPETÁCULO! VEJO O GRUPO E A DIREÇÃO COM MUITA COMPETÊNCIA, CREIO QUE DEVE EXISTIR ARTE PARA TODOS OS GOSTOS. CONSEGUI APROFUNDAR CERTOS ENTENDIMENTOS SOCIAIS COM MAIS CLAREZA APÓS O ESPETÁCULO QUE TRATA DE COTIDIANOS URBANOS.
CONTUDO DISCORDO DO COMENTÁRIO DO CARO COLEGA VULGO ED, POIS ARTE NÃO TEM A FUNÇÃO DE AGREDIR AO PÚBLICO. A ARTE É ENTRETENIMENTO! NÃO SEJAMOS DITADORES DE CONCEITOS. A HUMANIDADE É MUITO PLURAL. PESSOAS QUE POSSUEM A INTENÇÃO DE AGREDIR O STATUS QUO DE OUTREM BASTA APENAS SAIR DE CASA (MUITAS VEZES NEM PRECISA!!!, NÃO É VERDADE?), NESTE CASO NÃO SE FAZ NECESSÁRIO IR AO TEATRO.
Assisiti aos dois espetáculos do coletivo Angu e ambos me encantaram, mas partilho da mesma impressão – “similaridades encaixadas” .
abraços
ana elizabeth
Que bela apreciação, Pollyanna. Vi domingo retrasado e sai do Teatro como se tivesse tido um orgasmo. E foi. Beijos.
Só de ler dá vontade de ir correndo pro teatro! Não vou perder!
Parabéns, Polly!
😉