Um circuito de artes cênicas que engloba 126 cidades nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal. Os números de dimensões continentais são do Palco Giratório, programa idealizado e bancado pelo SESC, que se revela não só um quebra-cabeças logístico, mas também um recorte significativo do que se produz em artes cênicas no Brasil. Este ano, 20 grupos, companhias e coletivos de todo o país estão no projeto. Há espetáculos do Acre, do Piauí, da Bahia, do Rio Grande do Sul. Além da circulação, também são promovidos debates ao final dos espetáculos, oficinas e rodas de conversa intituladas Pensamento Giratório. No Recife, há o festival Palco Giratório, que acontece durante todo o mês de maio, a Aldeia Velho Chico – mostra de cultura em Petrolina -, e ainda a circulação de vários espetáculos por unidades do Sesc no interior. “Nenhum grupo passa incólume no Palco Giratório”, acredita Galiana Brasil, a representante pernambucana na rede de 32 curadores que idealizam essa programação do Palco anualmente. Conversamos com a atriz, professora e gestora cultural sobre como se dá esse processo de escolha, a participação dos artistas pernambucanos no projeto e a força do programa como política cultural.
Entrevista // Galiana Brasil
Como foi o processo de escolha dos espetáculos para a circulação nacional este ano? Podemos dizer que alguma linguagem se destacou?
O processo é, via de regra, marcado pelo atrito, pelo debate caloroso. É sempre assim, por conta da escolha do SESC em apostar no seu corpo técnico. Vez por outra surge alguém (desavisado) que propõe a criação de um edital. De fato, seria menos complexo, mas a maioria dos técnicos do SESC – principalmente aqueles que tiveram a chance de ver esse processo nascer-, criou gosto pela coisa. É outra política, outra prática discursiva. Todo artista que se submete aos processos seletivos, via editais, conhece o gosto amargo da burocracia, ver um projeto ser excluído por conta da ausência de uma, entre dezenas de assinaturas, uma certidão negativa vencida. Acho muito importante numa época assim existir alguma forma diferente de praticar política cultural. Ademais, é um paradoxo tão significativo uma instituição extremamente burocrática, como o SESC, investir num corpo curatorial de técnicos. Dá muito mais trabalho para quem seleciona, acredite, mas, para quem não está ali de forma burocrática, apática, é um exercício político sofisticado, um espaço de aprendizado incrível. Quanto aos “destaques”, penso que mais que algum gênero, a grande força foi a da diversidade geográfica, a resposta à lógica perversa da hegemonia das regiões Sul/Sudeste. Este ano tivemos grupos oriundos de diferentes estados do Nordeste – Pernambuco, Paraíba, Ceará, Bahia, Piauí; da região Norte há grupos do Acre, Tocantins; há o Centro-Oeste com o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul. Para quem é dado à pesquisa histórica, sugiro uma visada no catálogo do Palco Giratório, na sessão “grupos e espetáculos que passaram pelo Palco” – ali consta o registro ano a ano. A virada do projeto se deu com a criação dessa curadoria nacional, a partir da gestão compartilhada do projeto, em todas as suas fases. Como num grito de guerra, bradamos, em 2006, em meio à euforia do recorte emblemático que se deu na seleção dos grupos daquele ano, o bordão “mudamos o sotaque do Palco Giratório”, e isso se deu, porque assumimos que o Brasil não tem sotaque oficial – muito menos o teatro! Ele é múltiplo, misturado e diverso. E gostamos disso.
Conhecer as indicações feitas por cada curador e discutir essas propostas deve ser, talvez, um dos momentos mais interessantes do Palco. Será que você poderia lembrar grupos que conheceu, ou teve mais informações, através dessas discussões, e que te marcaram, te surpreenderam, ou continuam fazendo coisas interessantes até hoje?
As indicações acontecem em um processo que antecede o encontro presencial que chamamos de “Análise Prévia”. É quando cada representante dos estados indica até cinco grupos/espetáculos, que podem ser de qualquer lugar do Brasil – ou seja, o curador não está limitado a indicar espetáculos apenas de seu estado, contanto que ele tenha visto o trabalho presencialmente, pois essa é condição primeira para uma indicação. Até o ano passado, esses espetáculos eram distribuídos para todos os curadores em vídeos, e suas informações em cds (também projetos, folders e clippings impressos) que deveriam ser previamente analisadas antes do encontro nacional. A partir deste ano, inauguramos uma ferramenta virtual, e a análise prévia se dará a partir desse canal. Quando nos reunimos para o encontro de curadoria – que dura cerca de dez dias -, já assistimos quase tudo em vídeo, mas sabemos o quanto se perde assistindo teatro em vídeo, por isso que a “defesa” de quem está indicando pesa muito, é o que define a aposta coletiva. Daí o SESC investir na ida de grupos de curadores a diversos festivais ao longo do ano, para que mais gente possa assistir aos trabalhos que estarão circulando nas indicações. Por isso também nosso investimento, aqui no SESC Pernambuco, em trazer curadores dessa rede para o Janeiro de Grandes Espetáculos – para que conheçam a produção pernambucana; daí também assistirmos, durante o encontro, a uma média de 08 a 10 espetáculos presencialmente. Só nesse processo, de análise prévia, com média de oitenta trabalhos de todos os cantos do país, temos acesso a uma cartografia de grupos luxuosa. Eu sempre soube da potência dos grupos em São Paulo, por exemplo, mas foi nessa curadoria que conheci a força do teatro catarinense. Ano passado fui chamada para participar da comissão de seleção de um prêmio estadual do governo de Santa Catarina e fiquei perplexa: simplesmente conhecia quase toda a produção que estava concorrendo e é conseqüência, exclusivamente, da minha ação junto ao Palco Giratório. Porque o edital era estadual, então, além dos grupos de Florianópolis, havia muitos grupos do interior e eu reconheci inúmeros trabalhos, grupos de Chapecó, Criciúma, Jaraguá do Sul.
Qual a força do Palco para a trajetória de um grupo? Quais exemplos poderíamos dar?
Penso que nenhum grupo passa incólume no Palco Giratório. Ou ele potencializará sua energia criadora – inferindo mudanças, inspirando criações, friccionando as relações pessoais, ou ele revelará suas mais profundas fragilidades – inferindo mudanças, friccionando as relações pessoais… Porque o contato humano é por demais intensificado. São contatos com diversos públicos, de forma quase ininterrupta. O grupo se apresenta e já senta pra uma roda de bate-papo. No dia seguinte, provavelmente terá uma oficina, um pensamento giratório, ou seja, mais contato com outros públicos, com os artistas locais, e depois o grupo entra numa esfera de convivência tão intensa que, de alguma forma, gera algum estranhamento. A privacidade nesse circuito é quase zero. Por conta dos custos do projeto, as hospedagens precisam ser coletivas (duplos ou triplos), com algumas exceções devido à condição física, ou limitações de saúde, obviamente. Vi um grupo cuiabano recém criado, cheio de som e fúria, chegar de forma estrondosa, com um trabalho lindo apresentado na mostra Cariri e, no ano seguinte, ganhar o Brasil pelo Palco Giratório. Não resistiu e acabou junto com a circulação. Sempre digo isso aos grupos selecionados, porque tem gente que fantasia. É muita transpiração, não há glamour. O Sesc não é a CVC e o Palco não é a Rede Globo, não é uma viagem de férias e muito menos um circuito de estrelas. De vez em quando, entram uns coletivos meio “desavisados”, às vezes é um diretor, um técnico. Lembro que, há alguns anos, no Festival Palco Giratório de Fortaleza, uma coreógrafa queria cobrar cachê quando soube que o projeto previa um bate-papo após cada apresentação. Antigamente, eu ficava pra morrer, hoje acho até engraçado! Porque, no primeiro “choque de realidade” – e ele vai se dar, afinal, estamos no Brasil -, ou a pessoa se transforma, ou “pede pra sair”. Tempos atrás, um artista questionou a acomodação de um hotel, argumentando que não estava à altura de um “doutor da USP”. A gente ainda escuta coisas desse tipo. E olha que é mais que sabido o perfil de grupo que interessa a esse projeto. Mas, afinal, trabalhamos com o humano, e também nos equivocamos, temos, em todas as esferas, muito o que aprender. Lembrei de um grupo que se desfez depois da circulação, gostaria de ressaltar aqui outros que, durante a circulação, tiveram inspiração para novos trabalhos, entraram em gestação durante o projeto – como o Pedras, do Rio de Janeiro, que teve inspiração para o Mangiare, a partir da diversidade de sabores que experimentaram enquanto cruzavam o Brasil; e a cia. Munguzá, que circulou ano passado com o Luis Antonio Gabriela e também ficou bastante contaminada para nova cria… vamos aguardar o que vem por aí.
Quais os argumentos utilizados para a defesa do Magiluth e do Peleja, grupos que representam Pernambuco na circulação nacional este ano? Como foi a recepção dos outros curadores?
São dois grupos completamente diferentes do ponto de vista funcional e de suas linguagens poéticas. Fato que somou muito para o retrato final dos grupos dessa seleção 2014 e que revelou uma diversidade de trabalho de grupo bastante significativa da produção pernambucana. O Magiluth vinha de um ano de bastante exposição, o que ajudou muito, pois muitos curadores tinham assistido a mais de um trabalho deles, tanto na semana de curadores do Janeiro de Grandes Espetáculos 2013, como numa curta temporada que fizeram no Rio de Janeiro. A leitura deles do Viúva, porém honesta foi o grande trunfo, a abordagem libertadora, a coragem de assumir os “erros”, os desvios. A confusão ordenada na poética do caos despertou, nas pessoas, uma possibilidade de ver Nelson trabalhado de uma forma diferente, o que gerou a vontade de ver esse grupo desafiado em outras praças, medir seu fôlego em uma circulação de grandes contrastes como é o Palco Giratório. Uma aposta na irreverência planejada. O grupo Peleja tem todo o “perfil” para o projeto – o que nem sempre quer dizer muita coisa, visto que a quantidade de grupos com qualidade de trabalho é sempre maior do que o projeto pode abarcar-, porque tem um trabalho de pesquisa de linguagem obsessivo, persistente, não “atira para todos os lados”, não trabalha por edital, como tantos coletivos da atualidade. Venho acompanhando o trabalho deles há um certo tempo, as possibilidades de ação formativa são extremamente relevantes, necessárias ao projeto. Cada artista tem sua pesquisa individual e isso é posto à prova. Já vi o grupo em apresentações, já vi seus artistas em mesas de discussão, ministrando oficinas e a forma com que encaram o ofício é digna de nota. Penso que contribuirão bastante tanto para o crescimento da cena como para o fortalecimento das relações éticas intrínsecas a um projeto dessa monta.
Como você seleciona essas indicações aqui em Pernambuco? Existe uma “pressão” dos grupos? Como é o relacionamento com eles? Você tenta assistir a tudo? Algum grupo já ficou “na agulha” ou na “repescagem” desde o ano passado? Já tem uma ideia do que vai levar este ano para a roda de debates?
Sim, houve grupos que foram selecionados, mas ficaram no stand-by, no caso de alguma desistência/impossibilidade de algum dos grupos, assim como houve grupos que entraram depois de mais de um ano de defesa. Às vezes, não é o momento, tem que saber recuar, tem que saber se vale a pena repetir a indicação. Tem que entender quando não dá mais. É um jogo, há que se conceber estratégias. A seleção é processual. Antes de tudo, entendo que todo grupo queira participar de um projeto como o Palco Giratório, mas não acredito em grupo que faça trabalho para o Palco Giratório. Enxergado por essa lente o projeto fica muito menor. É ele quem está a serviço do teatro, o teatro é muito maior. Às vezes, vejo que o grupo tem potencial e fico observando, acompanhando a postura, a atuação, o repertório. Mas tem uma questão delicada que se impõe: não existe o ofício de curador no quadro de SESC, de nenhum SESC do Brasil. Com exceção de São Paulo, que envia os técnicos (principalmente para fora do país) para festivais e mostras o ano inteiro – independentemente do Palco Giratório, em que eles passaram a trabalhar um dia desses-, com o intuito de identificar, negociar e trazer grupos, todos nosotros somos estimulados a acompanhar a programação cênica de nosso estado como “mais uma atribuição” do cargo – de técnico de cultura, de gerente de cultura, de assessor de teatro, ou de Professor de Teatro, como é o meu caso hoje, no SESC – PE. Não há uma gratificação ou algum acréscimo salarial. Porque, sabemos, o papel do curador, sua função na contemporaneidade, é algo relativamente novo, que vem sendo bastante debatido e, dentro do SESC, é um processo inaugural. Penso que temos crescido muito, conseguido um espaço de discussão e de escuta privilegiado na instituição, temos alcançado ganhos importantes, como um suporte financeiro para compra de ingressos de espetáculos de teatro e dança, ou o acompanhamento a festivais nacionais de grande relevância, ao menos uma vez por ano. Mas ainda não é o suficiente para estar na obrigação de acompanhar toda a programação do estado. Temos uma gama de serviços e ações práticas e burocráticas ligadas a diversas outras ações de que precisamos dar conta. Toda a análise prévia dos espetáculos do palco, eu faço na minha casa, durante as noites, nos fins de semana, e essa super hora extra não é computada, não faz parte de minha carga de trabalho no SESC, que comporta 40 horas semanais, das 8h da manhã às 17h, de segunda a sexta-feira. Quem está em temporada nesse horário?
Como você avalia a força do Palco pelo país? Pergunto isso porque aqui em Pernambuco, sabemos o quão importante é o projeto. Mas quando converso, por exemplo, com amigos de Belo Horizonte ou Curitiba, é como se o Palco não fosse tão significativo. Você acha que isso tem a ver com a relação dos festivais específicos de cada cidade?
Acho que quase nada no Brasil se efetiva de forma homogênea. Ainda bem, não? O projeto tem papel, força e impacto completamente diverso em cada praça. Existe há 17 anos, e, no início, era composto por cinco ou seis estados que, junto ao Departamento Nacional, aderiram ao projeto. Literalmente “compraram” a ideia, pois aderir significa repartir os custos. Pernambuco está nisso desde o primeiro ano. Todas essas cidades que você mencionou, pertencem a estados que entraram anos depois (há menos de 4 anos). Os Departamentos Regionais do SESC, em todo o Brasil, trabalham com o princípio de autonomia de gestão. E quanto mais construção e menos imposição, tanto melhor. Ressalte-se o poder de sedução do projeto que hoje, no ano de 2014, arrebanhou todos os estados para, juntos, trabalharem na composição desse caleidoscópio transgressor.
O que norteou a escolha dos espetáculos convidados para o festival deste ano?
Além da seleção de representantes da curadoria nacional que assistiram à semana de curadores no Janeiro de Grandes Espetáculos, houve um recorte curatorial defendido por técnicos do Sesc de Casa Amarela, Santa Rita, Piedade e Santo Amaro – a partir de trabalhos que participaram de mostras e projetos do Sesc-PE-, além de grupos que sabíamos estar em processo conclusivo e convidamos para estrear o espetáculo no festival.
Sentimos que a programação este ano está menor em número. Apesar de a qualidade do festival não ser medida absolutamente por números, o que aconteceu de fato? Tivemos menos dinheiro? Porque ações como a Cena Bacante e a Gastrô não vão acontecer?
O Palco Giratório é um projeto (um dentre centenas) financiado integralmente pelo SESC, gerido pela instituição até quando ela entender que ele é importante, necessário. Minha opinião quanto a isso importa bem pouco, eu procuro sempre seguir as diretrizes da instituição, e estou subordinada a gerências e direções, em âmbito regional (jargão do SESC para nos referirmos à administração nos estados) e nacional. Ações como as que você citou foram criações exclusivamente nossas. A Cena Bacante foi inspirada no “Horário Maldito”, que acontecia a partir da meia-noite, na mostra Cariri (CE). Já a Gastrô, uma tentativa minha de criar novos públicos para o festival, de explorar as possibilidades poéticas e seu diálogo com os sentidos, além de aproximar os criadores da gastronomia – arte que pessoalmente admiro bastante-, dos criadores da cena. O percurso de sair do teatro para comer – geralmente em grupo-, é uma ação habitual que pode ser encarada como ritualística. Afinal, e se os pratos, o vinho, o doce, também tivessem relação com a cena? Eu sonhei em ver isso potencializado. Então, essas ações (assim como o Jornal Ponte Giratória, a Cena Fotô), foram criações nossas, e têm um custo significativo que não faz parte da esfera cênica, habitual do projeto.
De que forma você pensa o Palco nos próximos anos?
Eu espero que ele continue, porque ainda se faz muito necessário.
Adorei a matéria. Muito franca e esclarecedora.