Eugenio Barba, o principal nome da antropologia teatral, autor de diversos títulos, diretor do Odin Teatret, esteve no Recife na semana passada pela primeira vez. Um lindo sorriso, simpático, simples, ele conversou com a imprensa no hotel em que estava hospedado – sempre, claro, acompanhado pelos olhares e palavras de sua esposa, a atriz Julia Varley.
No dia seguinte, na sexta-feira, no Teatro Apolo, Julia fez a demonstração de trabalho O eco do silêncio, que foi seguida por uma palestra de Barba. Disponível, depois ele respondeu inúmeras perguntas da plateia. De mansinho, falou coisas muito caras – que merecem ser registradas. E vamos fazer isso aqui no blog. Está aí a primeira parte da palestra de Eugenio Barba no Recife. A transcrição é de pouco mais de 15 minutos de fala. Ainda temos muito material (inclusive a entrevista para a imprensa), mas vamos divulgar aos pouquinhos, para que o tempo não se passe sem que registremos as palavras de um mestre. (Ah, antes de começar a palestra, ele pediu para que as pessoas levantassem e dissessem um texto como se estivessem acariciando o outro. Depois, todos sentaram e ele começou).
PALESTRA // EUGENIO BARBA
Vocês vieram aqui para escutar, para serem inspirados, pelo que Julia podia fazer, pelo que eu poderia contar. Para ver a maneira de como ser eficaz com o espectador. O que eu quero como ator? Como diretor? Quero que o meu ator seja eficaz em aguardar, provocar ressonância nos meus espectadores. Sei que os meus espectadores não são um público único. Cada um de vocês chegou aqui de diferentes lugares da cidade, de diferentes famílias, com uma história, uma biografia. Cada um chegou aqui com uma expectativa diferente. Cada um de vocês tem uma fome diferente de aprender, de compreender. Assim que, para mim, isso da unicidade do espectador foi um dos meus problemas como diretor. Como é possível que o ator possa dirigir-se a esse nível? A esse animal mitológico que está constituído de duzentos e cinquenta destinos humanos? Cada um possui saudades, nostalgias, ambições, feridas, vitórias. Isso do “como” poderia também chamar-se técnica, o que se aprende. E nos damos conta de que a primeira experiência que temos que enfrentar no nosso ofício é uma experiência de impotência. Porque cremos que se possa absorver um conhecimento. E esse conhecimento não se absorve. Apesar de que alguém pode ir a uma escola teatral, fazer cursos e seminários. Mas aí se dá conta que o resultado, que a conseqüência dessa relação didática, pedagógica, não é automática. Você tem a sensação de marchar no mesmo lugar todo tempo. Essa era a minha sensação quando eu fui à Escola Teatral de Varsóvia. Depois de um ano, tinha a consciência que não tinha aprendido nada, que estava perdendo o meu tempo. Que o que era para mim fundamental, era um ofício imaginário, que existia só na minha cabeça, nos meus sonhos ou nas minhas necessidades. Tudo que estava aprendendo, tudo que me ensinaram na escola, não funcionava.
A demonstração da Julia é um típico exemplo. Ela chegou a um grupo de teatro, o Odin e começou a fazer toda a aprendizagem, que no Odin se faz através de exercícios, de treinamento. Mas ela, ao contrário de ir adiante, de desenvolver suas capacidades sonoras, vocais, ela perdia a voz. Ela tinha que fazer todo o caminho solitário dentro do grupo para encontrar sua identidade. Que é muito diferente da identidade profissional, técnica, dos seus companheiros. Assim, quando começamos, a primeira pergunta é: como? Como poder encontrar um ambiente, uma pessoa, alguém que, na verdade, podemos chamar de mestre? Porque o mestre é só alguém que nasceu antes da gente e conhece um pouco mais. Como encontrar esse mestre que nos ajude a encontrar nosso caminho?
Mas, depois de alguns anos, quando já há certo costume em ser ator, em resolver suas dúvidas, seus problemas, quando já há adaptação ao ofício, à rotina, quando isso conquistou parte da gente, outra pergunta fica importante: porque estou fazendo tudo isso? Que coisa mais engraçada é que, às vezes, nem eu ganho o suficiente, tenho que ter outro emprego para poder fazer isso. E porque estou fazendo isso?
Quando começamos, no meu caso, eu manipulava, criava ilusões. Só depois de alguns anos me dei conta do porquê de ter escolhido o teatro. Mas no começo eu disfarçava tudo isso com um álibi, uma justificação solene e nobre: eu queria fazer teatro para poder mudar a sociedade. Era um período. Comecei nos anos 1950, do século, do milênio passado. Quando existia uma luta de classes, uma guerra fria. Quando todo tempo, de verdade, havia o medo de uma guerra atômica. Então a participação ativa dos cidadãos na Europa era muito, muito presente. Assim que o teatro foi também um dos fóruns, dos instrumentos, dos canais, que o jovem podia, ou imaginava poder, usar para lutar contra algo que ameaçava uma cultura humanística.
E isso foi o que, essa tensão dos anos 50 e 60, que se criou em todo planeta, que provocou a grande mudança das quais vocês, os mais jovens, são os filhos. 1968, apesar de que todo processo começou antes, é um ano em que toda a estrutura de pensamento, de comportamento, de expressão, a maneira de se vestir mudou. Não existia jeans! Imaginem o que significa hoje uma sociedade sem jeans! Hoje os professores de universidade também vão de jeans. Antes, o professor de universidade, você podia reconhecê-lo. Tinha quase um uniforme, extremamente solene. A maneira de cantar! Pensem em toda a expressão da juventude através dos grupos, dos Rolling Stones. E tudo isso na verdade mudou profundamente. Mas, em tudo isso, existia como uma bola de fogo incandescente, irracional, que não podia ser lógica, que era raiva e o desejo da juventude de não aceitar um mundo que o sufocava.
A reação dos que não estavam de acordo foi muito dura. Vocês, no continente de vocês, foram os primeiros a vivê-la. Em 1964, vocês sabem o que aconteceu no Brasil. O que aconteceu nos anos 1970 no Chile, Argentina, Uruguai. Assim que não foi só uma grande revolução de alegria, de hippies. Foi uma sacudida que provocou mortos. Muitos mortos. Mas hoje isso se conquistou: em parte, há essa possibilidade de exprimir-se livremente.
Foi durante toda essa luta que o porquê do teatro era muito claro. As pessoas sabiam que se criavam grupos pela primeira vez na história do teatro do Ocidente e do Oriente, se criou algo muito estranho. Antes, tinham as companhias onde os atores estavam contratados, um período curto, alguns meses, uma temporada, às vezes. Hoje se chama isso de projeto. Nesse tempo, tudo isso era profissional. No sentido que os atores viviam disso. Os atores tinham que chegar às salas para viver. Não existiam subsídios, não existiam Sesc, Ministério da Cultura, que pagavam os atores. Os atores haviam de inventar, no século 16, na Europa, uma estranha indústria, um estranho ofício, onde as pessoas pagavam e, ou de pé ou sentados, deveriam ser entretidos, uma diversão. Os atores e as atrizes também proporcionavam isso, representavam. Isso era o teatro. Tenho que lembrá-los sempre: nosso ofício nasce de um acordo, de uma convenção, entre espectadores e atores. “Eu pago”, diz o espectador. “E você tem que entreter-me. Não me aborrecer. É isso”. Essa é uma das faces do teatro. A outra é que as relações no nosso ofício, não duram muito.
Como explicava antes, o profissionalismo consistia em firmar um contrato de alguns meses e, depois, cada um partia. Por isso é importante lembrar, porque em 1968, surgiu uma geração que pensava em outras categorias. Pensava em categorias em que o grupo era como uma micro sociedade. Era como uma nova maneira de socializar. Indo de encontro aos princípios que existiam na sociedade lá fora. Assim que os grupos de teatro não eram só uma resistência à ditadura, contra um teatro burguês, contra uma maneira de ver a sociedade comandada pelos capitalistas. Era também uma maneira de viver. Pela única vez existiu nesse planeta uma geração que, de maneira consciente ou inconsciente, através dos grupos teatrais, imaginou que, através do teatro, o teatro tinha uma dupla, profunda função. Não só deixar que algo aconteça na mente, no intelecto, nos sentidos, na vivência dos espectadores. E que saindo do teatro cada espectador possa refletir, viver, estabelecer um diálogo com a sua história pessoal, e confrontá-la, enfrentá-la. Medi-la com o que se passava na história. Não só isso. Também era o teatro como um processo de mudança pessoal. Daqui surgem as grandes lições do Living Theatre, anarquista puro. Que, através de sua existência, do seu processo de trabalho, tenta dar vida a essas relações e a também proclamar isso no momento do espetáculo. Dessa visão, que é uma reação contra os limites imposto pela sociedade, na história.
Parabéns, Pollyanna! Transcrição irreprovável.
Agora, um desabafo: acho estranho o silêncio da nossa classe diante das matérias como esta publicadas aqui no blog. O Eugênio Barba está corretíssimo no seu subtexto! Tenho a impressão que a única coisa que move nossos companheiros de ofício são “as picuinhas”. Um post como este, penso, era para ser compartilhado, elogiado, lido, relido, etc., etc. …
Mas, o Mestre João Denys já disse em outra opoetunidade: – “Pensar, construir conhecimento, dá trabalho!”
Feliz, fico no aguardo de ler a entrevista e o restante do material. Viva as YOLANDAS!
Muito importante essa publicação!!! Amei o que li…espero receber o que falta ser transcrito. Grande abraço e parabéns pela iniciativa.
Sim, Chico! Vou tentar transcrever o resto, pode deixar! 😉