As fotos em preto em branco reportam ao passado, de outras explorações e segredos familiares que poderiam fazer ruir um império. Enquanto espera, o público ouve o diálogo entre duas adolescentes. A plateia logo era convidada a entrar no espaço erguido no Nascedouro de Peixinhos para alojar a temporada de Memória da cana, montagem do grupo Os fofos encenam. Todo o arcabouço da casa é feito de cana-de-açúcar, o que provoca uma viagem por cheiros doces e azedos.
Dividido em quartos, o espectador compartilha da intimidade dessa família. O texto é adaptado de Álbum de família, de Nelson Rodrigues, e as referências realçam as ideias de Gilberto Freyre. O pai Jonas (Marcelo Andrade), abusa das negrinhas, de preferência de 12, 13 anos, com a ajuda da cunhada solteirona, Tia Ruthe (Kátia Daher), e ambos humilham Senhorinha (Luciana Lyra). Dos seus cômodos, cada personagem revela um pouco de seus desejos, enquanto Nonô, o filho de Senhorinha e Jonas que enlouqueceu (Carlos Ataíde), ronda a casa. Glória (Viviane Madu)é vista pelo pai como santa e também é alvo de desejo do irmão Guilherme (Paulo de Pontes).
Daquela cana, das violências do homens contra jovenzinhas em flor, da ira da mulher branca, do máximo de exploração do humano está calcada essa sociedade orgulhosa de sua tradição. O dramaturgo e diretor pernambucano Newton Moreno e seu grupo provocam investigações estéticas em várias frentes. Uma delas é essa memória da formação brasileira e pernambucana em particular. O som dos brincantes do maracatu chega mais forte na segunda parte do espetáculo. O vento uivando lá fora e as mortes maculando o nome da família e fazendo ajustes com o destino.
A sensualidade transborda na movimentação dos personagens e ganha um relevo especial a atuação do elenco feminino. Luciana Lyra está estupenda como Senhorinha e ousa um caminho diferente das muitas representações dessa figura rodrigueana. Apesar de humilhada, é mais corajosa e carrega uma dança de vida, impregnada por baixo de tantos panos.