A Peleja da Mãe nas Terras do Senhor do Açúcar, encenação de Carlos Carvalho que vincula brincantes da cultura popular e atores me fez pensar sobre a amplitude do contemporâneo. Há muito que falar sobre a montagem. Mas antes de qualquer outra coisa, é preciso reforçar que é uma investida corajosa de Carvalho, e espelha um pouco das inquietações do criador. Ele aposta num teatro político (não partidário, é bom ressaltar) e num teatro popular. Nesse último ponto, ele é herdeiro das ideias do dramaturgo Hermilo Borba Filho, de quem Carlos já montou alguns textos.
Desta vez, Carvalho foi buscar mais do que inspiração na Zona da Mata pernambucana. Requisitou de lá os próprios intérpretes-criadores. Entre eles, Mestre Grimário, Grimário Filho e Dielson José. Se por um lado essa iniciativa traz em si a possibilidade de enriquecimento em todos os aspectos (pessoal, estético, de inovação, ético), também produz dificuldades para harmonizar o universo dos folgazões com os dos atores de várias formações.
O espetáculo estreou no Recife no dia 28 de janeiro, sexta-feira, no Teatro Apolo, com casa lotada, em única récita. A peça já havia sido exibida na Zona da Mata.
No palco, a montagem tem força, beleza. É poderosa, às vezes alegre às vezes triste, em alguns momentos inquietante. Mas também apresenta problemas. Da dramaturgia à interpretação, do tempo dilatado a escolhas da direção.
A Peleja da Mãe nas Terras do Senhor do Açúcar é inspirada no texto A mãe, do russo Máximo Gorki.
Lá, a obra literária está contextualizada na Rússia do início do século XX, inspirada em manifestações reais do primeiro de maio de 1902. O rebatimento da revolução de um povo no seio de uma família.
Cá, o território é a Zona da Mata canavieira da década de 1970. A vida no campo. O homem aguenta a violência do meio em que vive. Trabalha na terra que não lhe pertence, casa, tem filhos, enterra os seus, bebe, brinca, é espancado, espanca e parte dessa para outra dimensão.
Em Gorki, quando o serralheiro Mikhail Vlassov morre, restam a mãe viúva e o filho. Uma relação quase desconhecida: falavam pouco e quase não se viam. Em Peleja da Mãe, depois que o pai Miguel (Mestre Grimário) morre sem atendimento médico, o filho (Paulo Henrique, do Maracatu Piaba de Ouro) se aproxima ainda mais do movimento sindicalista, no momento do país em que vigorava a ditatura militar com todos os seus tentáculos de repressão e violência.
Os camponeses se exprimiam pouco, sentiam e entendiam o que se passava, mas tinham medo. A pressão, a injustiça, um pensamento diferente que chega dos livros vermelhos e a vontade de ser livre. A Mãe teme pelo filho, mas depois até ela acha inevitável ter um posicionamento mais crítico perante a vida.
Mas o encenador também traça intertextualidades dramatúrgicas com Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Ao parodiar o poema cabralino, Carvalho empobrece o texto, que perde sua poética no deslocamento.
O espetáculo começa com festa. O elenco dança, Catirina faz suas acrobacias, os mestres se desafiam. Uma projeção sobrevoa a Zona da Mata pernambucana até chegar ao canavial. Há um desfile de movimentos coreográficos pujantes inspirados no cavalo-marinho. As imagens são poderosas, o som contagiante.
Depois da festa, da dança, da embriaguez, a volta para casa, para a realidade, que alguns se recusam a aceitar. A Mãe se entretém com seu radinho. O mestre pensa no seu maracatu.
Mas da passagem do universo lúdico das brincadeiras populares para o drama dos canavieiros algo se solta, os elementos se desencaixam. Catirina com sua presença constante tenta fazer a ligação. Arrumando o cenário de pequenas casinhas (marca do diretor).
O discurso mais político do texto beira o panfletário. O texto no geral precisa ser revisto para não virar um arremedo de poema.
A atuação do elenco é bastante irregular no seu conjunto. Alguns atores são bem imaturos no trabalho, o que fica gritante nas cenas com diálogos. O ponto alto da interpretação fica por conta do ator Flávio Renovatto, que se desdobra nos papeis de capataz e um dos canavieiros.
A grande atriz Auricéia Fraga oscila em sua atuação. Mas ela traz uma força que alguns ensaios a mais deve resolver. E até mesmo suas precariedades, como na dança, ela pode reverter a favor dela própria.
O tempo dilatado também precisa de equalização, para não parecer que é um apenas um buraco.
Por outro lado, a decisão de juntar esses dois universos pode gerar bons frutos. Vale lembrar que toda a renovação musical pernambucana passou pela cultura popular e pelo som dos tambores do maracatu.
O espetáculo tem méritos. É ousado, busca uma linguagem própria sem se preocupar em imitar ninguém ou seguir modismos, estabelece suas bases, e conquista seus participantes. Precisa de ajustes internos. Mas, como avisou o diretor Carlos Carvalho, o espetáculo vai mudar e muito. Torcemos que para melhor.