Crítica de As Mulheres de Nínive

Mulheres de Nínive

No domingo, 24 de novembro, no Teatro Hermilo Borba Filho, uma situação inesperada transformou um contratempo técnico em uma experiência singular. O atraso em uma hora e meia do espetáculo Mulheres de Nínive, devido a problemas na mesa de luz, poderia ter sido motivo de frustração geral. Alguns espectadores  partiram para outra. No entanto, para quem ficou, a sessão  se tornou um momento de cumplicidade energética entre a artista, sua equipe criativa, os técnicos do teatro e o público. Essa conexão não planejada gerou uma atmosfera de solidariedade e expectativa compartilhada.

A permanência do público, que decidiu apostar na apresentação, demonstrou uma disponibilidade e abertura, além da aceitação do imponderável de um evento ao vivo, marcado por uma magia rara. O erro, a falha e o imprevisível, às vezes, têm esse poder de transformar e unir, criando uma experiência e memorável para os envolvidos.

A atriz Nínive Caldas, ao concluir a sessão, expressou uma gratidão genuína que ressoou em cada canto do teatro lotado. Essa gratidão foi um reflexo da ligação afetiva que se formou naquele espaço, onde a arte foi além da cena, transformando-se em uma experiência coletiva de empatia, inspiração e beleza.

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Mulheres de Nínive, se posiciona contra o apagamento sistemático das mulheres ao longo da história. Concebido e protagonizado pela atriz, apresentadora e produtora cultural Nínive Caldas, sob a direção da atriz, psicóloga e diretora teatral Hilda Torres, a obra desafia ativamente a narrativa histórica dominante ao entrelaçar figuras como Maria Madalena e as Eufames para questiona as estruturas de poder que determinam quais histórias são preservadas e quais são apagadas. Esta perspectiva alinha-se com teorias feministas contemporâneas que argumentam que a história não é neutra, mas sim um campo de batalha ideológico. Teóricas como Joan Scott, Gerda Lerner e Michelle Perrot têm enfatizado essa perspectiva, destacando como a narrativa histórica tradicional frequentemente marginaliza ou exclui as experiências das mulheres.

Através de uma estrutura não-linear, o espetáculo cria um diálogo entre passado, presente e futuro, sugerindo que as experiências de opressão e resistência das mulheres formam um continuum histórico de padrões de violência e silenciamento.

Em essência, “Mulheres de Nínive” se apresenta como um ato de arqueologia feminina, um conceito que se refere ao processo de desenterrar e reinterpretar a história das mulheres que foi frequentemente ignorada ou distorcida pela historiografia tradicional.

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A inspiração para “Mulheres de Nínive” nasce de uma singular intersecção entre a autobiografia da atriz Nínive Caldas e eventos históricos marcantes. O nome da atriz serve como catalisador para uma exploração da história e do mito.

Nínive, a antiga capital do Império Assírio situada na Mesopotâmia, hoje parte do Iraque moderno, compartilha seu nome com a atriz. Célebre por seus jardins suspensos e mencionada em textos bíblicos e registros históricos, a cidade torna-se o eixo central da narrativa do espetáculo.

No espetáculo “Mulheres de Nínive”, o massacre de Nínive é apresentado como um evento simbólico que representa a violência sistemática contra as mulheres ao longo da história. Embora não existam registros históricos específicos de um massacre de mulheres em Nínive, o espetáculo utiliza essa narrativa como uma poderosa metáfora para abordar questões cruciais sobre a representação feminina na história.

A peça retrata Nínive como um importante centro místico administrado pelas Eufames, mulheres guardiãs do conhecimento sagrado feminino. A narrativa sugere uma perseguição sistemática a essas mulheres, culminando em um massacre simbólico que resulta na morte de inúmeras Eufames e na fuga das sobreviventes.

Este massacre metafórico não representa apenas um ato de violência física, mas simboliza um apagamento cultural e espiritual mais amplo. Ele serve como uma representação da supressão do conhecimento feminino, das tradições matriarcais e do poder das mulheres nas sociedades antigas e modernas.

A ausência de registros históricos sobre esse suposto massacre de mulheres em Nínive é, na verdade, um ponto crucial do espetáculo. Essa lacuna na história é utilizada para levantar questões fundamentais sobre como a história tem sido tradicionalmente escrita e por quem. O espetáculo argumenta que a história foi predominantemente registrada e interpretada por homens, resultando em uma narrativa que frequentemente marginaliza ou omite as experiências e contribuições das mulheres.

Ao posicionar o massacre das mulheres de Nínive como um evento central na narrativa, mesmo que fictício, o espetáculo faz uma declaração política poderosa. Ele chama a atenção para a necessidade de questionar as narrativas históricas estabelecidas e buscar as histórias não contadas das mulheres ao longo dos séculos.

A história de Jonas na Bíblia começa com Deus ordenando que ele vá à cidade de Nínive para pregar contra sua maldade e chamar seus habitantes ao arrependimento. No entanto, Jonas decide desobedecer e foge na direção oposta, embarcando em um navio para Társis. Durante a viagem, uma tempestade violenta ameaça o navio, e os marinheiros, ao descobrirem que Jonas é o responsável, o lançam ao mar para acalmar a tempestade. Jonas é então engolido por um grande peixe, onde permanece por três dias e três noites, período em que ora a Deus, expressando arrependimento.

Após ser vomitado pelo peixe, Jonas finalmente obedece a Deus e vai a Nínive, pregando a mensagem de arrependimento. Os habitantes da cidade, desde o rei até os cidadãos comuns, acreditam na mensagem e se arrependem, jejuando e vestindo-se de pano de saco. Deus, vendo o arrependimento genuíno dos ninivitas, decide poupar a cidade da destruição. Embora Jonas inicialmente fique descontente com a misericórdia divina, Deus lhe ensina uma lição sobre compaixão e perdão, destacando a importância do amor e da misericórdia.

Contexto Histórico da Queda de Nínive
Nínive, como capital do Império Assírio, representava o auge do poder e da influência assíria no mundo antigo. Este império era notório por suas campanhas militares implacáveis e pela capacidade de dominar vastos territórios através de uma combinação de força bruta e administração eficiente. A cidade de Nínive, com suas muralhas imponentes e palácios magníficos, simbolizava a grandeza e o poderio dos assírios. No entanto, no final do século VII a.C., o império começou a mostrar sinais de declínio. Fatores como revoltas internas, dificuldades econômicas e a pressão crescente de inimigos externos contribuíram para o enfraquecimento do domínio assírio.

Cerco e Destruição de Nínive
Em 612 a.C., uma coalizão formada por babilônios, medos e outros grupos insurgentes se uniu para sitiar Nínive. Este cerco foi um dos eventos mais significativos e violentos da história do Oriente Médio antigo. Após um prolongado período de resistência, as defesas de Nínive foram finalmente rompidas, e a cidade caiu nas mãos dos invasores. A captura e subsequente destruição de Nínive marcaram o fim do Império Assírio como uma potência dominante na região. A violência do ataque foi tal que a cidade foi praticamente obliterada, e seus habitantes, massacrados. Nínive deixou de ser habitada e, por séculos, permaneceu esquecida, até ser redescoberta por arqueólogos no século XIX.

Impacto e Significado
A queda de Nínive simbolizou o colapso de um dos impérios mais formidáveis da antiguidade, abrindo caminho para o surgimento do Império Babilônico sob a liderança de Nabucodonosor II. Este evento alterou significativamente o equilíbrio de poder no Oriente Médio, com os babilônios e medos emergindo como as novas potências dominantes. Apesar de sua destruição, Nínive deixou um legado cultural e histórico significativo. As ruínas da cidade, quando finalmente escavadas, forneceram insights valiosos sobre a civilização assíria, suas práticas culturais, artísticas e administrativas. A história da queda de Nínive serve como um exemplo clássico de como grandes impérios podem sucumbir a forças internas e externas, lembrando-nos das constantes mudanças no cenário político e militar ao longo da história.

ATUAÇÃO

A atuação de Nínive Caldas em “Mulheres de Nínive” se destaca por sua presença cênica poderosa, alinhando-se com o conceito de “presença forte” desenvolvido pela teórica teatral Erika Fischer-Lichte. Esta abordagem enfatiza a capacidade do ator de criar uma conexão imediata e intensa com o público, transcendendo a mera representação para estabelecer uma experiência viva e transformadora.

Caldas incorpora este conceito através de uma performance que combina intensidade física e emocional. Sua presença no palco é magnética, capturando a atenção do público não apenas através do texto, mas também por meio de sua corporeidade e energia. Esta presença forte se manifesta na forma como a atriz ocupa o espaço cênico, na modulação de sua voz e na precisão de seus gestos, criando uma experiência teatral que engaja o público em múltiplos níveis sensoriais e emocionais.

A performance de Caldas também se destaca por sua abordagem à beleza e sensualidade femininas. A atriz utiliza estes elementos como ferramentas de empoderamento, desafiando noções convencionais que frequentemente inferiorizam ou objetificam as mulheres. Sua atuação apresenta uma feminilidade complexa e multifacetada, reivindicando a beleza e a sensualidade como aspectos integrais da força feminina, não como características limitantes.

A direção de Hilda Torres é fundamental na construção desta narrativa visual e performática. Torres orquestra os elementos cênicos e a atuação de Caldas de forma a criar um espetáculo coeso e impactante. Sua direção parece focar em extrair o máximo da presença da atriz, criando momentos de intensidade dramática equilibrados com nuances sutis. A abordagem de Torres permite que a performance de Caldas flua entre diferentes personagens e épocas, mantendo uma linha narrativa clara e emocionalmente ressonante.

O trabalho corporal desenvolvido por Lili Rocha é um componente crucial da performance. A preparação física evidencia-se na fluidez e precisão dos movimentos de Caldas, que emanam de uma profunda consciência corporal. Este trabalho se estende à forma como a atriz habita seu corpo em cena, utilizando-o como um instrumento expressivo capaz de comunicar complexas camadas de emoção e significado.

A combinação destes elementos – a presença forte de Caldas, a direção sensível de Torres e o trabalho corporal meticuloso de Rocha – resulta em uma performance simultaneamente poderosa e nuançada. A atuação desafia estereótipos através de uma encarnação viva e multidimensional da experiência feminina. O resultado é uma performance que não apenas representa, mas encarna a resistência e a resiliência das mulheres através da história, convidando o público a uma reflexão profunda sobre gênero, poder e identidade.

Esta abordagem integrada cria uma experiência teatral que transcende a narrativa convencional, oferecendo ao público uma jornada imersiva através da história e da psique feminina. A performance de Caldas, guiada pela visão de Torres e apoiada pelo trabalho corporal de Rocha, torna-se um veículo poderoso para explorar e questionar as complexidades da experiência feminina ao longo do tempo e das culturas.

ELEMENTOS CENICOS

Os elementos cênicos em “Mulheres de Nínive” são essenciais para a construção da narrativa visual e simbólica do espetáculo. O figurino, com destaque para a imponente saia que se torna um personagem por si só, é um elemento central da produção. Esta saia monumental serve como uma metáfora multifacetada, representando as águas da vida, o fluxo do tempo e a vastidão da experiência feminina através da história. Sua versatilidade permite que Nínive Caldas a manipule de diversas formas, criando diferentes espaços cênicos e representando múltiplas personagens e situações.

A escolha do tecido, sua textura e movimento adicionam camadas sensoriais à performance, criando uma experiência auditiva e visual que complementa a atuação. As cores e o design do figurino carregam significados simbólicos profundos, refletindo diferentes aspectos da jornada feminina retratada no espetáculo. A interação íntima entre o corpo da atriz e o tecido enfatiza a conexão entre o físico e o simbólico, um tema recorrente na obra.

A iluminação desempenha um papel crucial na criação de atmosfera e na condução da narrativa. Através de esquemas de luz cuidadosamente planejados, o espetáculo transita entre diferentes épocas e locais, apoiando a estrutura não-linear da história. O uso de contrastes entre luz e sombra cria tensão dramática e destaca momentos-chave, enquanto focos específicos guiam a atenção do público para detalhes importantes da performance de Caldas.

A paleta de cores da iluminação é escolhida para evocar diferentes estados emocionais e atmosferas, complementando a atuação e reforçando os temas do espetáculo. A interação entre a luz e os elementos do figurino, especialmente a saia, cria efeitos visuais que amplificam o simbolismo e a narrativa. Mudanças na iluminação são sincronizadas com a performance para criar ritmo e dinamismo, apoiando a estrutura complexa da obra.

Elementos específicos de iluminação são usados metaforicamente, como feixes de luz representando esperança ou conhecimento em meio à escuridão da opressão. Esta abordagem à iluminação não apenas complementa a performance de Nínive Caldas, mas também se torna um elemento narrativo por si só, contribuindo significativamente para o impacto emocional e intelectual do espetáculo.

A combinação destes elementos cênicos – o figurino emblemático centrado na saia simbólica e a iluminação cuidadosamente planejada – cria um ambiente visual rico e dinâmico. Juntos, eles formam uma parte integral da narrativa de “Mulheres de Nínive”, elevando a performance para além do texto falado e criando uma experiência teatral imersiva e profundamente impactante.

O uso destes elementos cênicos não é meramente decorativo, mas funciona como uma extensão da narrativa e da performance. A saia, por exemplo, pode representar o peso da história carregado pelas mulheres, enquanto suas transformações ao longo do espetáculo podem simbolizar as mudanças e adaptações que as mulheres enfrentaram através dos tempos. A iluminação, por sua vez, pode ser vista como uma manifestação visual das emoções e experiências das personagens, criando um diálogo silencioso, mas poderoso, com o público.

Além disso, a interação entre estes elementos cênicos e a performance de Caldas cria uma linguagem teatral única, onde o visual e o performativo se fundem para contar uma história que transcende as palavras. Esta abordagem holística à cenografia não apenas enriquece a experiência do espectador, mas também amplia as possibilidades narrativas do espetáculo, permitindo que temas complexos e nuançados sejam explorados de maneira visceral e impactante.

O QUE PODE SER MELHORADO

“Mulheres de Nínive” é uma produção teatral de inegável força e impacto. No entanto, como em qualquer obra artística, há sempre espaço para refinamento. Um aspecto que merece atenção é a apresentação dos nomes das mulheres retratadas no espetáculo. A riqueza e complexidade da narrativa, por vezes, podem obscurecer a identidade específica de cada personagem, potencialmente limitando a compreensão plena do público. Uma ênfase mais pronunciada nos nomes e identidades das mulheres representadas poderia enriquecer ainda mais a experiência do espectador, permitindo uma conexão mais profunda com cada história individual e fortalecendo o impacto coletivo da obra.

Esta sugestão de aprimoramento, contudo, não diminui o brilhantismo geral da performance. Um dos aspectos mais notáveis de “Mulheres de Nínive” é a vitalidade inegável que Nínive Caldas traz à sua atuação. Sua presença no palco é marcada por uma espontaneidade que infunde nova vida às narrativas históricas e contemporâneas que ela encarna. Esta frescura se manifesta na forma como Caldas aborda cada personagem com uma energia renovada, evitando clichês ou interpretações previsíveis.

A atriz demonstra uma habilidade impressionante de manter cada momento vivo e pulsante, como se cada história estivesse sendo contada pela primeira vez. Sua abordagem traz uma imediatez e relevância às narrativas antigas, fazendo com que ressoem profundamente com o público contemporâneo. Esta vitalidade na atuação é particularmente eficaz na forma como Caldas transita entre diferentes épocas e personagens, mantendo cada uma distinta e vibrante.

Além disso, a espontaneidade de sua performance se estende à maneira como ela interage com os elementos cênicos, especialmente a saia simbólica. Cada manipulação deste elemento parece orgânica e descoberta no momento, adicionando uma camada de autenticidade à performance que é tanto cativante quanto emocionalmente impactante.

A combinação desta vitalidade na atuação com a profundidade do material apresentado cria um contraste poderoso. Caldas consegue abordar temas pesados e histórias de opressão com uma leveza que não diminui sua gravidade, mas as torna mais acessíveis e ressonantes. Esta abordagem fresca e vital é fundamental para manter o público engajado ao longo de uma performance que aborda temas complexos e por vezes dolorosos.

Em suma, enquanto a clarificação dos nomes e identidades das mulheres representadas poderia fortalecer ainda mais a narrativa, a vitalidade inegável da atuação de Nínive Caldas é um dos pontos altos do espetáculo. Sua capacidade de trazer espontaneidade e imediatismo a histórias antigas e contemporâneas é um testemunho de seu talento como atriz e da força da direção de Hilda Torres. Esta frescura não apenas entretém, mas também serve como um veículo poderoso para transmitir as mensagens cruciais do espetáculo, garantindo que as vozes das mulheres de Nínive ressoem com clareza e urgência para o público moderno.

A performance de Caldas, em sua vivacidade e autenticidade, consegue criar uma ponte entre o passado e o presente, tornando as experiências das mulheres através da história tangíveis e relevantes para o público contemporâneo. Esta abordagem não apenas honra as histórias das mulheres representadas, mas também convida o espectador a refletir sobre como essas narrativas se conectam com as realidades atuais.

PADRE ANTONIO VIEIRA

No “Sermão da Sexagésima”, Padre Antônio Vieira faz referência à cidade de Nínive como parte de sua argumentação sobre a eficácia da pregação e a conversão. Vieira utiliza a história de Nínive, que é mencionada na Bíblia no livro de Jonas, para ilustrar o poder transformador da palavra de Deus quando transmitida de forma eficaz.

Contexto Bíblico:
Nínive era uma grande cidade assíria que, segundo a narrativa bíblica, estava destinada à destruição devido aos seus pecados. Deus enviou o profeta Jonas para pregar a mensagem de arrependimento aos ninivitas. Surpreendentemente, a cidade inteira, desde o rei até os cidadãos comuns, se arrependeu de seus maus caminhos e, como resultado, Deus poupou Nínive da destruição.

Análise de Vieira:
Até o Padre Antônio Vieira, no Sermão da Sexagésima, faz referência à cidade de Nínive como parte de sua argumentação sobre a eficácia da pregação e da conversão. Vieira utiliza a história de Nínive, que é mencionada na Bíblia no livro de Jonas, para ilustrar o poder transformador da palavra de Deus quando transmitida de forma eficaz.

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