Podia ser o carro do ovo anunciando promoção nas ruas do bairro. Não! Era Romildo Moreira divulgando a primeira edição do Janeiro de Grandes Espetáculos. Em 1995, apesar de já contar com propaganda na televisão, o projeto – que ainda não era chamado de festival – criado pela Prefeitura do Recife, tinha como um dos objetivos popularizar o teatro e a dança. “Não lembro exatamente quanto era o ingresso, mas era muito mais barato do que cinema. Saíamos no carro de som, dizendo ‘se você não conhece o Teatro de Santa Isabel, chegou a hora’. Íamos nos pontos de ônibus, no Centro, no Derby, na Encruzilhada, em Água Fria, em Afogados”, relembra Moreira, hoje diretor do Teatro de Santa Isabel.
Corta para 2021, 27ª edição do festival, que desde 1998 passou a ser realizado pela Apacepe (Associação de Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco) e se tornou uma das principais mostras do estado. Pandemia de coronavírus, teatros fechados ou vazios durante meses, grupos e artistas enfrentando crises em diversos âmbitos. Durante 22 dias, 48 espetáculos participaram da programação do JGE Conecta, sendo 35 deles on-line e o restante apresentados presencialmente, nos teatros do Recife.
Para um festival que sempre teve no público – e na bilheteria – um dos seus esteios, uma programação no meio de uma pandemia foi um desafio. No Teatro de Santa Isabel, por exemplo, a ocupação normal é de 570 lugares. Com as restrições, apenas 140 espectadores podem ser recebidos.
E, como estamos desde março de 2020 vivendo a realidade das restrições da pandemia, passada a euforia das primeiras experiências de teatro on-line e de quase um ano de sessões realizadas quase que exclusivamente pelas plataformas digitais, há uma sensação de cansaço das telas. Não que o formato esteja com os dias contados, que não seja teatro, que não tenha a mesma importância, que não tenha público. Nada disso! Mas a impressão, por exemplo, é de que os grupos têm muito mais dificuldade de “lotar” suas plateias virtuais do que há alguns meses, um movimento semelhante ao que aconteceu com as lives, retomadas agora no carnaval.
Ainda assim, para quem está resistindo, cumprindo as medidas de isolamento social, interagir numa comunidade, mesmo que virtualmente, faz muita diferença. Tanto é que continuamos acompanhando um movimento de conversas e debates pós-espetáculos bastante interessante. Temos visto um interesse genuíno dos espectadores de dialogar sobre o que viram, de partilhar a recepção. A experiência de estar junto a outras pessoas, no mesmo momento, assistindo ao espetáculo, é diferente de ver algo sozinho no YouTube.
Num dos frames de divulgação do festival, antes de cada espetáculo on-line, o público lia: “Esperamos que aprecie, esteja sozinho ou junto de quem você gosta”. Mas o festival perdeu a oportunidade de promover a construção dessa comunidade de maneira efetiva. Cada espectador estava por si, não houve interação, não sabíamos quantas pessoas estavam assistindo ao mesmo tempo e o espectador tinha, inclusive, a facilidade (entendemos que, nessas circunstâncias, era uma facilidade) de abrir o link no horário informado, mas de assistir algumas horas depois, enquanto o vídeo não expirasse.
Houve uma série de conversas ao vivo, geralmente pela manhã, chamadas de Palavração. Foi um conteúdo importante, significativo, onde havia essa dimensão de comunidade. Mas essa programação não foi divulgada com a mesma antecedência dos espetáculos. A crítica – que, durante anos, foi parte muito importante do festival – também não teve espaço nos debates.
Mesmo com o Palavração, quando pensamos que um dos trunfos do Janeiro é justamente a capacidade de agregar as pessoas, que vão ao teatro para ver os espetáculos, mas também para se encontrar, para estarem juntas, parece haver um descompasso entre os princípios do digital e do presencial, para além da materialidade propriamente dita. Nem sempre vamos ao teatro durante o Janeiro de Grandes Espetáculos especificamente pela peça. O encontro faz parte desse contexto.
No mesmo sentido, a experiência da feitura ao vivo também é completamente diferente de ver um espetáculo pré-gravado. Acompanhar uma montagem sendo levantada em tempo real, ver que os atores assumiram os riscos, a experimentação da linguagem. Se “teatro é ao vivo”, como gosta de repetir Paulo de Castro, diretor geral do festival, não foi isso que aconteceu no digital. Essa foi a principal fragilidade do JGE Conecta. O festival optou por uma edição de arquivo – praticamente todos os grupos participaram da programação com gravações de espetáculos de seus acervos.
Não ignoramos que essa opção pode ter sido feita principalmente por questões técnicas, pelas ausências de garantia de conexão, de capacidade estrutural dos grupos de realizarem seus experimentos. As dificuldades são motivos justos.
Mas, como um dos resultados, tematicamente, foi um festival que, com algumas exceções, pouco discutiu nos seus espetáculos a realidade que estamos vivendo. Não foi isso que vimos refletido nas telas. Estávamos descolados temporalmente. Não quer dizer que os espetáculos não tenham sido relevantes, não tragam em si questões pertinentes e atemporais, mas não estavam necessariamente conectados com esse momento tão crítico.
De qualquer maneira, a atuação de José Manoel Sobrinho como gerente de programação foi um ganho indiscutível. Observando de fora, parece ter sido ele que deu unidade ao trabalho da comissão de seleção, formato que existe há muito tempo. Cada edição tem uma nova comissão. A deste ano foi composta por Gheuza Sena, Genivaldo Francisco, Djaelton Quirino e Clara Isis Gondim.
Os contornos da programação foram delimitados de uma maneira mais clara – espetáculos nacionais ligados a grupos de pesquisas ou pessoas vinculadas às universidades ou a instituições como o Sesc, espetáculos do interior do estado e espetáculos da recém-criada Mostra de Escolas Independentes de Teatro, Dança e Circo.
Nesse movimento, perdemos a chance – sem as barreiras do deslocamento, das passagens de avião caríssimas na alta temporada, das dificuldades de produção – de ver espetáculos de grupos mais consagrados na programação. Por outro lado, houve a oportunidade de enveredar por produções de grupos que estão fora dos eixos mais tradicionais, que têm uma dificuldade de circulação maior. São escolhas, caminhos que sempre têm seus ônus e bônus.
Nesse cenário, fizemos a crítica de nove espetáculos da programação: um internacional (À um endroit du début/Senegal), dois nacionais (Caipora quer dormir/DF e Pele negra, máscaras brancas/BA), dois pernambucanos (Sentimentos Gis/Petrolina e Cachorros não sabem blefar/Caruaru) e quatro trabalhos ligados a escolas (Experimento Multimídia: Um jogo dialético/Sesc Santo Amaro, Processo Medusa/Núcleo Biruta de Teatro, Ubu, o Rei do Gago/Escola João Pernambuco e Contos em Dor Maior/Escola Fiandeiros de Teatro).
Nessa programação mais enxuta, o peso da Mostra de Escolas Independentes de Teatro e Dança foi bastante relevante. É uma mostra importante, que pode ter um espaço de destaque no festival. Mas numa edição presencial – ou mesmo numa futura edição híbrida – talvez isso tivesse que ser equilibrado de uma melhor maneira. O festival não é de escolas. Não é nem justo dar essa “responsabilidade” aos experimentos cênicos, que possuem caráter didático fundamental, não estão necessariamente focadas na encenação propriamente dita, nos resultados artísticos.
Sem dúvidas, um dos ganhos foi uma presença maior dos espetáculos do interior no festival, uma demanda antiga. Mas uma expectativa – que também não é recente – é de que o Janeiro pudesse contribuir de uma forma mais efetiva e perene para a cena pernambucana. O Janeiro poderia ser o espaço para a proposição de intercâmbios, de trabalhos em conjunto, de trocas que talvez pudessem abrir novos caminhos estéticos. Em alguns momentos isso aconteceu, mas não com a força e a constância que poderia. Seja entre grupos do interior e da capital, entre grupos ou artistas nacionais e grupos pernambucanos, entre grupos brasileiros e estrangeiros. Não numa perspectiva colonizadora, mas numa ideia de troca, de construção de laços e de possibilidades conjuntas.
Mesmo assim, neste ano tão difícil, a resistência de realizar o festival precisa ser comemorada. E, mais ainda, já que foi levado ao espectador com competência, da equipe técnica, da equipe curatorial, da equipe de produção. Todas essas áreas pareciam muito mais bem resolvidas entre si, como se o trabalho estivesse fluindo numa harmonia maior.
Outra impressão importante é a de que a classe, ou parte dela, voltou a se envolver de forma um pouco mais próxima. Por sua trajetória, o festival sempre teve muita importância para os artistas pernambucanos, mas a censura ao espetáculo O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, em 2018, acarretou uma cisão. O festival, naquele momento, não mais representava a classe, que ajudou a construí-lo e mantê-lo. Essa relação parece estar sendo tecida novamente. Com cautela, com respeito e com afeto. Em prol da arte.