Greves históricas – primeiros apontamentos

Helena Albergaria faz Joana Paixão / João Batista em O pão e a pedra. Foto: Lenise Pinheiro / Divulgação

Helena Albergaria faz Joana Paixão / João Batista em O pão e a pedra. Foto: Lenise Pinheiro / Divulgação

Há muitas entradas para leituras do espetáculo O pão e a pedra, da Companhia do Latão, escrita e dirigida por Sérgio de Carvalho, em cartaz até domingo, no Teatro Hermilo Borba Filho, às19h, dentro da programação do 18º Festival Recife do Teatro Nacional. O mosaico complexo de contradições sociais é explorado pelo grupo em camadas e fissuras e problematizações. A greve dos operários do ABC Paulista em 1979 e os espelhamentos da crise política atual tencionam o embate no palco dos peões com o cruel mundo do capital, a invisibilidade da mulher, da luta dentro da luta dos nordestinos no mapa da ditadura civil-militar brasileira.

É denso. E não permite simplificações de heróis, salvadores da pátria, bonzinhos versos vilões. Os paradoxos da realidade atual se desdobram no palco a partir da greve histórica do final da década de 1970, que projetou para o Brasil como força política a figura de Luiz Inácio da Silva, o Lula, na época líder do Sindicato dos Metalúrgicos.

A investigação do autor diretor Sérgio de Carvalho passa pelas “dificuldades do aprendizado político daqueles trabalhadores que enfrentaram a polícia da ditadura e o aparato midiático patronal, num processo que durou 60 dias (15 dias de máquinas paradas e 45 dias de “trégua” com mobilização dentro e fora das fábricas). Sob relativa influência do imaginário desses grupos contraditórios, o novo sindicalismo, a Igreja progressista e o movimento estudantil de esquerda, os operários de O Pão e a Pedra travam um embate com a própria vida coisificada” [1].

Lá para o meio da peça, um ator explica que a encenação foi erguida nos tumultuados primeiros meses deste ano e que Lula não será representado. Uma ausência que se faz presente como uma sombra do passado, no presente.

O sumiço do líder sindical que por dois dias saiu de cena em 1979 abre brechas para muitas especulações que pairam no ar do teatro. Desde negociações isoladas com os patrões, até a possível blindagem para não quebrado pela polícia. Entre um ponto, muitas possibilidades expressadas por personagens da cena.

O cenário em que forças regressivas da política brasileira que se alinharam com a grande imprensa e com o judiciário e suas estranhas razões para depor um governo eleito democraticamente invade em ondas de pensamento enquanto acompanhamos a trajetória daquele grupo de trabalhadores fabris de São Bernardo do Campo, no ABC paulista. Na espiral do tempo, a conta do arranjo vai ser paga pelos trabalhadores cada vez mais acossados por uma realidade surrealista.

Há muitos caminhos para chegar ao coração da greve. Não é possível abarcar muitos em tão pouco tempo. Assisti ao espetáculo ontem e as imagens, as palavras, os procedimentos estão ruminando na minha cabeça, os sentidos se erguem e assustam, são desfeitos, comungam com muitas questões. Preciso de dias, semanas, meses, para desembarcar a bagagem marxista do espetáculo.

É muito. É tanto. É eletrizante. Às vezes parece choque no nervo. A imagem da personagem Luísa (Sol Faganello), uma militante universitária que adentra no campo dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo com a ambição de politizar os peões. O movimento mostra uma amazona montada em cavalo trêmulo, num ritmo frenético, ao som percussivo. É um quadro potente inspirado no conto Na galeria, um texto curto de Franz Kafka, publicada no Brasil no livro Um médico rural. A narrativa do escritor tcheco é visual e de tirar o fôlego. E é incrível como esse “poema em prosa”, como chama o tradutor Modesto Carone, carrega questões importantes para a montagem. O conto expõe uma hipótese, cria uma oposição; anula a primeira disposição, apresenta outra. Dinâmica semelhante faz a montagem.

“Se uma amazona frágil e tísica fosse impelida meses sem interrupção em círculos ao redor do picadeiro sobre o cavalo oscilante diante de um público infatigável pelo diretor de circo impiedoso de chicote na mão, sibilando em cima do cavalo, atirando beijos, equilibrando-se na cintura, e se esse espetáculo prosseguisse pelo futuro que se vai abrindo à frente sempre cinzento sob o bramido incessante da orquestra e dos ventiladores, acompanhado pelo aplauso que se esvai e outra vez se avoluma das mãos que na verdade são martelos a vapor – talvez então um jovem espectador da galeria descesse às pressas a longa escada através de todas as filas, se arrojasse no picadeiro e bradasse o basta! em meio às fanfarras da orquestra sempre pronta a se ajustar às situações.

Mas uma vez que não é assim…”

Foto: Sérgio de Carvalho

Os atores Rogério Bandeira (Fúria Santa) e Ney Piacentini (Arantes). Foto: Sérgio de Carvalho

O círculo do cenário instalado no centro do palco é nomeado de espaço da fábrica – da linha de montagem ao banheiro-, estádio da Vila Euclides palco das assembleias sindicais e outros locais onde os trabalhadores se encontravam, de bares à igreja.

Os peões da lida vão fazer a máquina parar. Na sua luta eles estão sempre ameaçados a serem marcados pelo ferro quente do capital. Nesse cenário masculino, a voz feminina está diluída ganhando um salário menor, carregando em silêncio o filho na barriga. E ganha destaque na metamorfose de personagem Joana Paixão, papel defendido por Helena Albergaria, que se disfarça de homem para poder receber os mesmos salários que seus pares em situações semelhantes.

No elenco da peça estão Míriam (Beatriz Bittencourt), ocupada no início com o bronzeamento; Irene (Érika Rocha), o Fúria Santa (Rogério Bandeira) e Arantes (Ney Piacentini) impõe um ritmo lento a peça, que me pareceu calculado para causar um efeito estético de incômodo no espectador.

Vou assistir novamente ao espetáculo.

O texto vai continuar…

[1] Companhia do Latão, Um tempo diferente, In: Programa O Pão e a Pedra – espetáculo da Companhia do Latão, 2016.

 

Serviço:
O pão e a pedra
Onde:Teatro Hermilo Borba Filho, (R. do Apolo, 121 – Recife)
Telefone: (81) 3355-3320
Quando: De 23 a 27 de novembro, às 19h; de quarta a domingo.
Quanto: R$ 10 e R$ 5
Indicação etária: 16 anos

Ficha técnica:
Autoria e Direção: Sérgio de Carvalho
Elenco: Beatriz Bittencourt, Beto Matos, Érika Rocha, Helena Albergaria, João Filho, Ney Piacentini, Rogério Bandeira, Sol Faganello e Thiago França.
Assistência de direção: Beatriz Bittencourt
Direção musical, composição e execução: Lincoln Antonio
Cenografia e figurinos: Cassio Brasil
Iluminação: Melissa Guimarães e Silviane Ticher
Direção de produção: João Pissara
Assistência de produção: Olívia Tamie
Núcleo de divulgação: Marcelo Berg

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