Diante do bombardeio de imagens sobre toda sorte de violência criamos camadas protetoras. As dores dos outros são flechas das quais procuramos desviar, mesmo que catástrofes e tragédias eclodam na esquina e do outro lado do mundo. Quando não estamos envolvidos buscamos passar incólumes. Mais insensibilizados, como se o destino da humanidade não nos dissesse respeito. Uma arte potente, no entanto, grita: acorde. Uma arte urgente rasga as capas impermeáveis e religa uma luz de dentro.
O segundo solo que Tadashi Endo trouxe ao Recife – Fukushima Mon Amour – é ainda mais impactante que o outro Ikiru – Um Réquiem para Pina Bausch (que ele apresentou em 2013, também na Caixa Cultural Recife). Mas esse impacto não está associado a grandiloquência e sim às sutilezas. Ele dança motivado pelos horrores de um desastre nuclear ocorrido no Japão em 2011, que vitimou milhares de pessoas.
Um foco está nesse passado recente, da destruição, de imagens de corpos mutilados, cadáveres, danos e perdas. E outro no devir mais promissor, num futuro mais harmonioso, construído a partir da solidariedade, da fraternidade.
Fukushima Mon Amour foi erguido em parceria com o músico Daniel Maia, que compôs a trilha sonora original. O som é fundamental nessa partitura cênica. Para criar o clima, arrancar sentimentos adormecidos do espectador. Há o som de risos de crianças, de algo que parece água, da contemplação do bailarino duplicado. Há o som forte de ruína e desespero.
O bailarino e diretor Tadashi Endo tem 68 anos e dança leve como um pássaro, explorando sua técnica de encenação Butoh MA. Ele cria desenhos de uma beleza comovente com seu corpo magro, que ora ele investe frágil ora realça a vida em fúria. Em Fukushima Mon Amour, Tadashi traça o ser humano em situações-limite.
A vida e a morte tomam conta de seus gestos. Precisos, elegantes, quase espirituais. Ele dança com ternura. Faz reverência aos que se foram. Patina pelo palco nas asas da música. Suas indumentárias esboçam mudanças de sentimentos, do preto e do cinza da dor ao colorido da esperança.
Tadashi Endo enche e desmancha essas imagens, ocupando todo o palco.
A encenação conta com outros recursos potentes que contribuem para elevar a obra. São as projeções, que traçam trevas, sombras, relâmpagos e por outro lado, clarões.
Se por algum tempo – como está escrito nas projeções “Now I am become death” – a morte predomina, ela cede lugar a algo luminoso. A vida que insiste em vingar, as flores de cerejeira em projeção e uma vontade incomensurável de que o mundo seja melhor.