Ao explorar cenicamente uma condição de intervalo entre ser homem e mulher, a atriz Camila Sosa Villada, potencializa a poética do seu espetáculo confessional Carnes Tolendas: Retrato Escénico de un Travesti com trechos da vida e obra de Federico Garcia Lorca. No início da encenação, uma figura toca um tango. Uma outra se multiplica em várias identidades, mãe, pai, facetas da sociedade e o filho travesti. A tocadora de acordeon, que também é a diretora María Palacios, sai. A atriz Camila Sosa Villada se debulha física e emocionalmente e se mistura aos personagens lorquianos.
A atriz trouxe das experiências do passado o material para a construção desse documentário cênico. Mas esses fatos reais recebem camadas de ficção na cena. Seja pela inclusão do universo do poeta e dramaturgo espanhol; ou pelo distanciamento temporal dos episódios, que faz um “ajuste” nessa memória.
É uma narrativa fragmentada em várias vozes. Mas tendo como posto de enunciação a protagonista. Camila transita entre personagens com o seu gestual e o registro vocal, que delimita cada um. São cenas fortes e palavras duras, repressões e ofensas da sociedade. “Eu sangrei em beijos”; “Sois a essência da merda em pó”; “Nesta casa eu não quero travestis”; “Lubrificador transsexual sujo”.
A família rejeita a personagem, e a atriz expõe esses confrontos com as frases ditas como navalhas, para ferir. É uma performance dinâmica e com poucos gestos a intérprete se transforma no pai violento, na mãe submissa, nos exploradores sexuais.
Seu cavalo é bem treinado e exibe excelente técnica teatral. E vai se transformando. Se distanciado daquele ambiente caseiro, para um mundo nada acolhedor.
A atriz leva ao palco roupas do menino que foi: “Faz muito tempo eu estive dentro destas roupas”, constata num melancólico suspiro sobre a impossibilidade de ter filhos e numa alusão também a Yerma, de Lorca.
O figurino e o cenário são minimalistas. O que dá ainda mais destaque às palavras, aos gestos, à atuação.
O Grupo Banquete, de Córdoba, faz uma procissão dos deuses destronados. A carnavalização da cena para sobreviver ao insulamento, aos amores clandestinos, ao autoritarismo. Na concepção de Bakhtin, a carnavalização possibilita a inversão, com os marginalizados se apoderando do centro simbólico.
Essa subversão em Carnes Tolendas vem em torrentes de ironia, apontada para uma sociedade que nega, renega, despreza, diminui, desqualifica. Ao se maquiar, se travestir, ela fala: “Eu tenho nojo dos gordos. Eu tenho nojo dos judeus. Eu tenho nojo das pessoas que limpam os vidros e os sinais. Eu tenho nojo da empregada que limpa a minha casa. Eu tenho nojo dos meninos com síndrome de Down. Eu tenho nojo das prostitutas. Eu tenho nojo dos drogados. Eu tenho nojo dos ladrões”, e conclui dizendo que tem nojo de todos e de cada um da plateia. O público aplaude.
Carnes Tolendas é um espetáculo com dramaturgias textual e cênica fortes, que articula questões importantes da contemporaneidade, com uma poética que destaca as sutilezas humanas e suas frágeis condições. Para fechar sua atuação esmerada, a atriz se expõe em nu artístico num flash, numa imagem fugidia.
* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo