Eu não desejei fogo algum
Por Ana Carolina Marinho – Antro Positivo
Antes que o desejo surja, Prometeu o satisfaz. Ele subverte a lógica da bondade e desloca o sujeito para a gratidão. E todos nós o saudamos, afinal, sua teimosia é inspiradora e, como visionário, ele entrega a nós o fogo e a bem-aventurança. Dizem de Prometeu como o herói civilizador, e ele se afirma em seu gesto – é que o fogo iluminou a arte, a cultura e o pensamento e somos gratos, então. Mas é preciso atentar-se, não existe nenhum virtuosismo em roubar o fogo e entregar à humanidade. Desconfio dos que assim insistem. Nem existe humanidade, o que existem são homens. É preciso discorrer sobre essa lógica de um deus que entende a entrega do fogo como um ato de amor e duvidar desse ato como sacrifício, pois proponho que talvez resida ai uma cruel compaixão. E assim começo a dizer da força que me arrebata em Anti-Prometeu, do Studio Oyunculari.
Não seja Anti-Prometeu uma ode ao deus, um retorno a sua teimosia primeira, um arauto ao sacrifício, mas uma tomada de consciência do fogo também como um elemento coercitivo. Satisfazer o desejo antes que ele surja é também reflexo de uma perversidade colonizadora, de uma cruel compaixão. Prometeu impôs a necessidade da luz e a concepção de escuridão ao homem. Como tirar isso das costas? O fardo de Prometeu é pesado e inútil e sou obrigado a carregar, começo até a me acostumar, mas os joelhos e a coluna sentem. Posso tirar isso das costas? O pensamento retarda e fragmenta-se com o corpo oprimido, sou domesticada. O fogo de Prometeu é uma espécie de obstinação intrusa, uma voz em off que deseja a minha reação. Preciso reagir, afinal, Prometeu agiu para mim – ou contra mim? Diante do breu, silencio. Diante do fogo, me queimo. É que o deus o entregou e foi embora, levou as cartilhas, os dizeres e os quereres. Deixou-nos apenas com o legado: isso é preciso pra vocês mortais, afinal é indispensável a nós deuses.
Prometeu sempre foi, pra mim, o símbolo da atitude incansável e da longa obstinação em entregar à humanidade o que a ela faltava. Mas Şahika Tekand provoca esse desejo inculto pelo fogo. Como se devesse alterar os vetores dessa imagem prometeica, ao oferecer suporte para que o desejo surja antes que o deus o satisfaça – e suspeito que resida no desejo a capacidade de interferir no mundo! -, e um desconforto com a ideia de herói civilizador comum a Prometeu. Qualquer ideia de salvação é, por si mesma, um aniquilamento. É preciso alimentar o anti-Prometeu para, enfim, superar esse olhar apiedado de quem perversamente me desloca para a escuridão para, então, dizer-me que é preciso a luz. Há um tanto de crueldade nessa bondade que escapa aos olhos, mas não ao estômago. Se profanar é devolver o que está consagrado ao uso comum dos homens, como diz Giorgio Agamben, profanar é assumir a vida como jogo. E Anti-Prometeu é, portanto, um exercício de profanação, que nos afasta do domínio do mito e nos aproxima do rito e desse campo de tensões a que se insere o jogo – e aqui ele é rigoroso e bem orquestrado, em que os homens (atores) estão a serviço de Prometeu (luz, som e legenda), é ele quem dita as regras e quem começa e termina qualquer ação. A cena, com a potência do profano, é de uma intensidade arrebatadora. Ouvi, porém, que a muitos a legenda estava ofuscada e ilegível, o que torna parte dessa reflexão impraticável, já que o texto na cena é tensão indispensável para o desenrolar do jogo.
Anti-Prometeu é, pois, o jogo da profanação, que adensa a capacidade de interferir no mundo. Não há enobrecimento nenhum na atitude do deus. Não se pode valorar o fogo, pois retira dele sua potência primeira e o destina a uma exibição e posse espetaculares. Tekand provoca em mim essa desconfiança que atenta para uma ação abusiva, que desloca as forças da esperança para o desespero e isso diz um tanto das ações abusivas a que estamos inseridos no convívio. É preciso suspeitar, inclusive das boas ações.
Sem fígado e sem fogo
Por Daniele Avila Small – Questão de Crítica
Em Anti-Prometeu, espetáculo da encenadora Şahika Tekand, da Turquia, os atores se movimentam e falam alternada e simultaneamente, obedecendo a uma gramática regida pelos comandos de som e pela dinâmica do dispositivo cenográfico, uma espécie de tabuleiro de luz. Dividida em três partes, a dramaturgia apresenta diferentes momentos da lida destes jogadores-peões com as demandas impostas por estímulos externos. Em um ritmo vertiginoso, o jogo ganha cada vez mais intensidade, desafiando a prontidão dos corpos na cena e das mentes na plateia.
Como em qualquer jogo, as metas e regras fazem parte de um pacto estabelecido entre as partes. O que há de trágico no homem contemporâneo, como apresentado no espetáculo, é a impossibilidade de rever os termos do pacto: a cada jogada, ele faz o que pode. O ritmo da vida urbana atual não abre espaço para o questionamento das regras, muito menos para uma revisão das metas.
Uma questão interessante a ser pensada do ponto de vista da poética da cena é que o estatuto do texto também é parte do jogo. Na segunda parte, os atores começam a responder com movimentos combinados a estímulos sonoros específicos. Por exemplo: quando os participantes que ficam na mesa de som ao fundo do palco dizem “um”, o ator que está em um quadrado iluminado fica de pé; quando o comando é “dois”, ele se vira para a direita; quando é “três”, ele apoia um joelho no chão. São cerca de dez comandos sonoros que fazem cada ator deitar, ajoelhar, levantar e virar freneticamente. (O fato de estes participantes que emitem comandos estarem em um patamar mais elevado evidencia a verticalidade da relação hierárquica.)
Quando se acende o quadrado de luz sobre o qual o ator está, ele deve começar a falar, ao mesmo tempo em que obedece à movimentação. Assim a fala é articulada como movimento, como uma tarefa física, não apenas como instrumento para a expressão de um discurso. A verbalização é um esforço a mais no virtuosismo das atuações.
No entanto, o conteúdo da fala não é aleatório nem vazio; talvez seja até ilustrativo, na medida em que os atores comentam sua condição. Se não me engano, há em algum momento uma referência a Io (personagem da mitologia grega que enfrentou uma longa jornada de esforços e provações para reaver sua condição humana). Diante desse ponto, faz-se necessário pensar a legenda, um elemento que não faz parte do espetáculo na sua criação original, mas que passa a ser uma questão estética na situação de apresentação em um país de outra língua. A relação com o texto legendado é completamente diferente, porque exige do espectador um movimento que pode ser cansativo a ponto de levar a desistência. Se ele desiste da legenda, o texto passa a ser apenas uma consequência do movimento da fala, formando uma paisagem sonora abstrata – que não deixa de ter a sua graça.
A presença da legenda também exclui a possibilidade do espectador acreditar que, em alguma medida, o jogo acontece ao vivo, que os atores estão respondendo a comandos no calor da hora. A fala também poderia parecer fragmentada pelo jogo físico, mas a legenda revela que sua intermitência é prevista e ensaiada. Enfim, a legenda evidencia o fato de que se trata da representação de um jogo, não do acontecimento de um jogo performativo de fato.
Do ponto de vista temático, a peça nos lembra o quanto nossa vida cotidiana pode ser parecida com a situação daqueles corpos que apenas respondem a estímulos, agarrados às suas cadeiras-rochas. Como Prometeu, oferecemos nosso fígado aos abutres todos os dias. Mas sem ter feito nada parecido com apresentar o fogo à humanidade.