Críticas: Bem vindo a casa

Espetáculo de grupo uruguaio é dividido em dois episódios. Foto: Lígia Jardim

Espetáculo de grupo uruguaio é dividido em dois episódios. Foto: Lígia Jardim

O convívio teatral em frente, verso e de permeio
Por Valmir Santos – Teatrojornal

A criação da companhia uruguaia Pequeño Teatro de Morondanga resplandece o todo em cada uma de suas partes. Somos convidados a acionar o espírito lúdico e cotejar os mínimos detalhes com a disponibilidade de um ourives. Há um engenhoso paroxismo de unidade nos sujeitos, cenas, objetos e espaços descentrados de Bem-vindo a casa (2012), composição de dois espetáculos umbilicais que pedem para ser vistos em sequência, episódios um e dois, por plateias e em horários distintos, ainda que plantados no mesmo lugar. Unidade porque impressiona como tudo funciona, até os tempos mortos pulsam na gangorra entre o que é e o que assim nos parece ser.

Estamos diante de uma experiência que elabora o convívio público-artista em seu sentido estrito, reflexão cara à arte contemporânea atenta às vicissitudes do viver junto. O princípio da coabitação vaza para as ruas, a comunidade. Palco abolido, a proximidade no espaço multiuso implica plateia aninhada com os atuadores no mesmo cômodo. Parede-meia, janela, persiana e portas induzem sonoridades e frestas do que poderia ocorrer simultaneamente do outro lado. Dentro e fora em contato: um achado de geografia cênica paulatinamente afetiva ao longo das duas sessões.

A dramaturgia coletiva e a direção de Roberto Suárez são lapidares na apropriação cinematográfica que as movem e no modo como não abrem mão da materialidade teatral, do inefável que está por trás dessa linguagem deliciosamente promíscua em sua sofisticação artesanal.

A inutileza que graça no nome do grupo – “morondanga” é uma expressão depreciativa em castelhano – condiz com a plataforma do precário da qual o projeto extrai beleza. É a vitória do remendo, da sujeira, do tosco e do avesso como solução formal bem sustentada. Transgressões sutis para dar luz ao efeito que não tem nada de especial e, uma vez exposto, torna-se singular e ancestral sem o menor conflito. O roteiro saúda o teatro dentro do teatro que Pirandello legou no início do século passado e a atmosfera de Lynch no filme O Homem Elefante (1980), baseado na história real de um cidadão britânico vítima de doença congênita. Dispensa-se, para tanto, projeções. O audiovisual está a serviço da palavra e das espacialidades físicas, sonoras, além da luz.

Deformações corporais e morais atravessam a dramaturgia do texto e da cena com lampejos do “esperpento” na literatura do espanhol Ramón del Valle-Inclán (1866-1936), distorcendo da realidade os atalhos para o grotesco e o absurdo. Esmiuçar o díptico à guisa de sinopse empobreceria a jornada do espectador. O mistério é uma estratégia decisiva nos espetáculos complementares. O subtexto é mais importante do que a nesga de fábula.

O brasileiro decerto encontra um pouco de dificuldade em compreender o rasqueado de uma fala ou outra, porque a língua, espanhola ou alhures, também é macerada conforme o sofrimento e a alegria impressos. Há um travo nostálgico na celebração de uma despedida assimilada como eterno retorno: quem sabe o coração do teatro resida aí. Montar, desmontar. Fazer, desfazer, ensaiar. Fazer e desfazer melhor ainda.

A narrativa golpeia por meio de paisagens da alma, do ambiente e da memória. Apoia-se no estranhamento permanente e no carisma inconcessível transfigurado na presença de cada ator: uma sobrancelha erguida fisga com a mesma intensidade de uma canção a capela. Esses criadores emanam convicção apesar do aparente desalinho. A técnica desaparece. Sobressai uma poética vesga: o campo de recepção infiltrado pelo que é enigma, suspense, interdito, sub-reptício. Não fossem esses bravos atores, a epifania de Suárez jamais se cumpriria.

Segundo episódio dá uma guinada na montagem

Segundo episódio dá uma guinada na montagem

A realidade como fracasso possível
Por Ruy Filho – Antro Positivo

O teatro é um acontecimento presencial, disso sabemos. E o que é presenciado não é de fato a verdade de uma realidade, visto ser a construção de uma ação para oferecer ao outro uma experiência e/ou narrativa. Apenas uma ficção. Então, a realidade ali compreendida é, antes, uma convenção de sua exibição, um processo estético de apresentação de uma possibilidade escolhida para um determinado objetivo. Há, ainda, o teatro que se apoia no argumento de ser a representação de outra narrativa. O tal metateatro.
Aparentemente, é o que se poderia acreditar ser esse espetáculo. Contudo, Bem-vindo a casa, de Roberto Suárez, não pode ser compreendido nem como teatro nem metateatro. Apresentado em duas partes, subverte o sentido vetorial comum da realidade que se constrói ao espectador, ampliando o procedimento teatral ao ponto de tornar a ambiência ficcional a realidade em si. O que se encontra, portanto, não é apenas a teatralização de uma segunda narrativa, mas o fracasso do teatro compor a manifestação plena do real.

Também sabemos que o teatro se realiza sobretudo na presença humana, ainda que possamos discutir outras tantas qualidades de presença à cena. Mas, mesmo o signo que lhe serve de estímulo se coloca em reconhecimento na sua relação com o homem. Portanto, é nele, pelo espelhamento, maior ou menor identificação, que sua presença se consolida. Ocorre, no espetáculo, o mesmo procedimento em relação a presença. A perspectiva do fracasso se acumula ao desenvolvimento dos personagens, suas incapacidades, faltas e derrotas.

São criaturas que passam a ter desconfigurados os elementos mais ordinários de seus reconhecimentos. Corpos caricaturados pela escolha em potencializar mínimos aspectos, desejos igualmente vitimizados na limitação literal de suas vontades, consequências mínimas tornadas argumentos para derrotas plenas. Da mesma maneira que a cena revela o fracasso do real, os atores confirmam o sentimento também em relação ao humano.

Desta maneira, responder ao teatro de Suárez é buscar argumentos que possam dar conta de reencontrar um e outro, ou a complementariedade de ambos, já que muito da realidade constrói nosso entendimento de humanidade, e muito de nossa humanidade estabelece os preceitos de construção do real.

Compreender o fracasso em relação ao humano implica em determinar como ambos se relacionam. Afinal, é essencialmente o fracasso uma condição humana ou o fracasso é uma resposta que poderia ter sido evitada? Como expõe o espetáculo, ambas as questões são consequentes à impossibilidade da superarmos a realidade como sendo um estado de ficção. Não há como mudar o destino trágico ao homem, visto não ser sua a ação de construção da realidade, assim como não há como ser outro ao homem que não apenas humano. Mesmo no hibridismo simbólico e real oferecido ao personagem deformado, chamado por Homem Elefante, em uma clara alusão à distância fisiológica do reconhecido por padrão à aparência humana, a presença de sua singularidade se assume pela escolha em compreendê-lo por sua ficcionalização.

O teatro, então, já incapaz de traduzir a dimensão humana em sua realidade. Faz-se, no contemporâneo, a narrativa de estratégia de um real possível, e não mais sua exibição como uma segunda camada. Assim como ao espectador é revelada sua função e limite ficcional como existência em sua própria realidade.

Bem-vindo a casa convida a todos a visitarem uma família. E não só. O teatro desse existir familiar. E mais. Ao próprio teatro como possibilidade familiar. Mais ainda… Convida a cada um à descoberta incômoda e fundamental de que talvez estejamos todos em pleno delírio, enquanto dormimos com a cabeça respirando o gás que foge do forno, e a realidade se esvai feito o oxigênio que lentamente acaba. O teatro de Roberto Suárez serve como a chama do fósforo que explode e nos obriga, enfim, a acordar. Portanto, prenda sua respiração e prepare-se.

Elenco fez últimas apresentações do espetáculo, que deve sair de repertório

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