A Cia do Sopro anuncia promover reflexões críticas acerca da condição da mulher nos dias de hoje com sua montagem de Medea, em sessões presenciais ainda neste domingo no Teatro do Sesc Pompeia, e em temporada online de 29 de novembro a 7 de dezembro. Infelizmente não percebo esse debate pelo viés crítico e político na cena. A versão contemporânea para o clássico de Eurípides, escrita em 2012 pelo escritor e dramaturgo inglês Mike Bartlett, 41, se mostra um pálido capítulo de novela.
Cruel, melancólica, ambígua, vingativa, apaixonada, monstruosa, desesperada, impulsiva, passional, traiçoeira, estranha. Todos esses adjetivos não dão conta da miríada de possibilidades, de nuances, de profundidade, de insondável que pauta a poesia de Eurípedes.
O propósito inflexível que move Medeia na vingança contra Jasão é esvaziada de sua essência da tragédia grega. Honra e reputação estão ligadas a questões públicas mais do que ao circuito privado.
A tragédia de Eurípedes amplia nosso entendimento sobre o páthos e a tímoria (a vingança) e o filicídio dessa personagem do século V a.C.. Naquela época, a mulher estava excluída da participação social no sistema democrático grego masculino, sem nenhuma possibilidade de ascender ao kléos (glória).
Medeia ajudou Jasão a conquistar o velocino de ouro, que para ele significava recuperar o trono aos descendentes usurpado pelo rei Pélias, tio de Jasão. Para isso ela matou o próprio irmão e abandonou do seu reino para seguir com o seu homem.
A princesa Medeia, divina e humana, feiticeira com poder da cura, comete sua hýbris (desmedida do herói) quando transforma o dom da magia em instrumento de vingança. Ao matar os filhos ela tirava de Jasão tudo que ela lhe proporcionou: descendência, fama e glória. Confiscava o futuro.
O páthos de Medeia é um caminho sem volta. Ao ser traída ela perdera os amparos legais; na lei grega, a mulher não tinha direito sobre os filhos. E como estrangeira (bárbara) ela era uma ameaça.
Bem, conhecemos a história de Eurípedes e sabemos que existem milhares de interpretações dessa peça grega sob perspectiva das mais diversas, da psicanálise às questões de gênero. Então vamos à produção da companhia paulistana.
Do dramaturgo Mike Bartlett, aplaudimos com entusiasmo as montagens das peças Contrações (2013) com as atrizes mineiras Débora Falabella e Yara de Novaes, dirigidas por Grace Passô e Love, Love, Love (2018), do Grupo 3 de Teatro com direção de Eric Lenate, e elenco formado por Débora Falabella, Yara de Novaes, Augusto Madeira, Mateus Monteiro e Alexandre Cioletti.
Muitas obras clássicas têm versões contemporâneas trazendo o coração da peça para propor outras questões. Em Medea de Mike Bartlett o alicerce mitológico desmorona. Bartlett faz um deslocamento da trama para um bairro inglês da periferia, um conjunto habitacional com as casinhas todas iguais. A protagonista é uma mulher difícil, de poucos amigos, destroncada da sua origem.
Com tradução de Diego Teza, a peça tem no elenco Fani Feldman (Medea), Daniel Infantini (Jasão), Juliana Sanches (Pam), Maristela Chelala (Sarah), Plínio Meirelles (Andrew), Bruno Feldman (Nick Carter) e Zé Henrique de Paula como diretor convidado.
A produção da peça opta por um cenário e figurino inspirados no londrino periférico, mas isso não acrescenta camadas à montagem.
As ótimas Juliana Sanches (Pam), Maristela Chelala (Sarah) iniciam o jogo de palavras, um embate verbal com um humor ferino e muito sarcasmo de Bartlett, que arranca algumas risadas da plateia. As duas personagens se alfinetam mutuamente e parte do público achou isso bem engraçado, estreia. Elas preparam o terreno falando da mulher que está prostrada após ter sido largada pelo marido.
A Medea de Fani Feldman tem cabelos vermelhos, um jeito desleixado de se vestir, uma fala meio confusa, com argumentos pouco consistentes. Os diálogos entre as três faíscam e acende a falsa cumplicidade feminina. A poesia de Eurípides foi embora na troca de farpas entre as mulheres.
Essa Medea perturbada, deseducada, instável que jura vingança inspira pouca empatia. E reforça um antigo clichê de desequilíbrio feminino diante de conflitos. A peça fica menor e Medea é diminuída.
Jasão também encolhe nesse texto de Bartlett. O herói conquistador, no sentido de vencedor, vira um mulherengo, um motoqueiro de meia idade metido a boyzinho, guiado pelo pênis, um estereótipo do homem que troca a companheira por uma noiva rica mais jovem.
Em Eurípides Jasão tem suas razões – ao se casar com a filha do rei de Corinto, Jasão afiança o futuro real para os filhos -, mesmo que não concordemos. A cena em que Jasão sucumbe a luxúria sexual, diante da sedução da protagonista é risível vergonha alheia.
Nick Carter, de Bruno Feldman, não parece o poderoso do pedaço, mas uma figura temerosa com as ameaças de uma inquilina. O ator David Uander, que faz Tom, o filho emudecido pela separação de Medea e Jasão, é uma graça.
Os cigarros utilizados na peça me parecem totalmente dispensáveis. Fuma Jasão, Andrew e Medea sem que esse gesto pareça essencial ao desdobramento da ação e ainda fazendo da plateia fumante passiva. Pelo amor…
O poder das personagens é diluído. Falta a grandeza do clássico. Medeia é filha de um rei. Ela é uma bruxa, uma feiticeira bárbara. Quando Medea de Bartlett se diz uma bruxa não funciona, e ela ostenta outras inconsistências.
Há um protofeminismo na peça de Eurípides. Nela, Medeia é perigosa e força vital de cada cena. Ela desafia as leis gregas que exigia que a mulher se escondesse e calasse diante do infortúnio.
A ação descritiva nas últimas cenas do espetáculo de Juliana Sanches, para contar o aconteceu no casamento, não tem a mesma força que as iniciais. Sua febril movimentação não reforça o horror do episódio, mas pode ser ajustada.
O final da peça parece problemático. Medéia de Eurípides é neta do deus Sol. O dramaturgo grego utiliza a estratégia do deus ex machina para salvar a protagonista. Uma carruagem de fogo leva Medeia a um santuário. A solução de Bartlett de apelar um deus chega como pouco criativo.
Essa tentativa de discutir as questões de opressão feminina não funcionou nesta produção de Medea. Pelo menos não para mim.
Medea
Ficha Técnica
Texto: Mike Bartlett
Tradução: Diego Teza
Idealização: Fani Feldman e Cia. do Sopro
Direção: Zé Henrique de Paula
Elenco: Fani Feldman (Medea), Daniel Infantini (Jasão), Juliana Sanches (Pam), Maristela Chelala (Sarah), Plínio Meirelles (Andrew) Bruno Feldman (Nick Carter) e David Uander (TOM)
Preparação: Inês Aranha
Trilha Original: Fernanda Maia
Assistência de direção: Marcella Piccin
Iluminação: Fran Barros
Cenário: Bruno Anselmo
Figurino e visagismo: Daniel Infantini
Direção de vídeo, montagem e fotografia: Murilo Alvesso
Direção audiovisual – Murilo Alvesso | Câmeras – Murilo Alvesso, Jorge Yuri e Ju Lima | Som Direto – Tomás Franco | Assistênica de câmera e Grafismos – João Marcello Costa | Produção Audiovisual – Assum Filmes
Concepção do projeto: Fani Feldman e Bruno Feldman
Produção: Quincas e Cia. do Sopro
Direção de Produção: Fani Feldman e Rui Ricardo Diaz
Assistente de Produção: Laura Sciulli
Realização: ProAc | Quincas I Cia. do Sopro
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio
Agradecimentos e apoios: Teatro do Núcleo Experimental, Teatro Santa Cruz/ Raul Teixeira, teatro FAAP/ Cláudia Hamra, Cláudia Miranda, Tati Marinho/ Casa dos Achados – Brechó, Refúgios Urbanos/ Bárbara Tegone, Una Muniz Viegas/ Cristiane Viegas, Jairo Leme, Marina Feldman, e Ariel Moshe.
Cia. do Sopro: Fani Feldman, Rui Ricardo Diaz, Plínio Meirelles, Osvaldo Gazotti e Antonio Januzelli.
Serviço
Presencial:
Estreia 26 de novembro
SESC Pompeia
26, 27 e 28 de novembro. (Sexta e Sábado 21h e domingo 18h)
Rua Clélia, 93 – Pompéia, São Paulo – SP.
Temporada online:
29 de novembro a 07 de dezembro, com sessões diárias, sempre às 21h00. (ingressos pelo Sympla)
Haverá bate-papo após as transmissões, nos dias 29/11 e 07/12. O link do Zoom estará disponível para acesso no Canal da Cia. do Sopro no YouTube.